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Psiquiatria e sociedade

Opinião|De volta à realidade

‘A Olimpíada trouxe a possibilidade de desligar a mente dos problemas’

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Adeus, Tóquio. Foi bom enquanto durou. Como tudo nessa vida, não foi só bom. Existem várias críticas à realização dos Jogos em meio à pandemia, e já há evidências de que em grande parte estavam certas: os casos dispararam, houve uma disseminação como o país não vira até então, levando uma sobrecarga para o sistema de saúde local. E ainda vêm aí os Jogos Paralímpicos. A coisa ainda vai piorar.

E esse nem é o único custo. Vários estudos mostram que os gastos com a organização dos Jogos sempre extrapolam o planejamento e os ganhos financeiros para a cidade-sede, tão sonhados, raramente são suficientes para cobrir o rombo. O grande impacto de marketing mundial não é acompanhado usualmente por um impacto positivo duradouro nas cidades.

Rayssa Leal conquista medalha de prata em Tóquio Foto: Wander Roberto/ COB

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Ainda assim, o encerramento traz certa nostalgia. Problemas à parte, fazia muito, muito tempo que as manchetes de jornal, rádio e TV não traziam motivos de alegria. Ao contrário, parece que abríamos o noticiário com olhos semicerrados, rosto meio de lado, como quem assiste a um filme de terror antecipando o susto a qualquer instante. O mesmo nas redes sociais. Há quanto tempo as timelines só vinham provocando desgosto diante de tanta coisa ruim, tanto dissenso, tanta polarização? Correr os olhos pela tela do celular nas últimas semanas, por outro lado, era garantia de se surpreender com sorrisos, vibração, torcida. O choro, quase sempre de alegria.

Essa Olimpíada trouxe para nós a possibilidade de fazer algo que desde o início da pandemia sabíamos ser necessário, mas nem sempre conseguíamos: desligar a mente dos problemas. Ficar ligado o tempo todo nas notícias ruins, passar o tempo todo discutindo, brigando com os outros ou com a própria realidade, tem um custo emocional muito grande. Pergunte à sua volta: assim como provavelmente está acontecendo com você, a maioria da pessoas chega ao fim do primeiro semestre com aquele cansaço de fim de ano. É preciso descansar. E os Jogos de Tóquio ajudaram (a descansar a mente, no caso, porque muitos perderam horas de sono acompanhando partidas madrugada adentro).

Percebi esse efeito junto com o País inteiro ao ser apresentado a Rayssa Leal, a skatista de 13 anos que ganhou a medalha de prata. As redes explodiram de alegria. O entusiasmo contagioso da atleta pôs a mídia em polvorosa. Notei que depois disso eu não olhava mais de soslaio para as telas, fosse do celular, da TV ou do computador. Não tinha mais frio na barriga ao abrir o jornal. Bem o oposto: passei a buscar mais e mais notícias. Mesmo as derrotas não vinham carregadas daquela energia negativa que por tantos meses nos perseguiu.

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Tudo isso sem falar do espetáculo em si. Como tive a oportunidade de escrever para o caderno Esportes ao longo desses dias, os atletas de elite são o que de mais próximo existe de super-heróis da vida real. Eles voam, saltam, lançam, correm, suspendem as leis da física a seu bel-prazer (com todos os custos associados a isso, como ilustrou o caso da Simone Biles – outra notícia que marcou os Jogos). Ter o olhar e a mente assim envolvidos por um show de imagens reunindo estética e ética particulares foi como dar férias à nossa cabeça.

Por isso me despedi com tristeza da Olimpíada. Talvez fosse melhor não ter sido realizada, dada a pandemia. Talvez ela exponha mazelas ocultas do País ao revelar o sacrifício pessoal dos atletas que penam por falta de incentivos. Provavelmente os custos de sua realização não se pagam para quem a sedia. Tudo isso é verdade. Mas eu estava precisando dessa folga.

Agora é voltar pé ante pé a abrir o jornal, devagar porque estou desacostumado e não quero desanimar logo no primeiro dia. Mas é preciso seguir, encarando de frente mesmo o que de pior existe para ser enfrentado, porque olhar o que está ruim é o único jeito de tentar fazer as coisas melhorarem, afinal. E se fica o aprendizado, que tenhamos compreendido que encontrar ilhas de paz e tranquilidade mental em meio ao nosso corrido e cansativo dia a dia não só é importante, como também é possível.

É PROFESSOR COLABORADOR DO DEPARTAMENTO DE PSIQUIATRIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP. 

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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