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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Perspectiva de finitude muda a maneira de enxergarmos o mundo e as nossas relações

Pensar na possibilidade de morte tende a transformar o jeito com que levamos a vida

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Foto do author Daniel Martins de Barros

Imagino que você já tenha sido influenciado pelo conselho de alguém. As palavras têm tanto poder que são capazes de interferir com o curso da nossa história. Eu passei por isso muitos anos atrás: na época eu estava às portas de um relacionamento (que viria a se tornar meu casamento), naquela fase em que temos dúvidas se vale seguir em frente – e, com isso, renunciar às infinitas possibilidades da falta de compromisso. Foi quando uma grande amiga, Alessandra, me disse: “Dani, eu perdi meu pai muito nova e aprendi que a gente não tem tempo para gastar com que não gosta de nós – temos que ficar com pessoas que gostem da gente e de quem a gente goste”.

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Influenciado pelo conselho fui adiante e, tempos depois, me casei – tendo a Alessandra e meu grande amigo Douglas, seu marido, como padrinhos.

Essa perspectiva da finitude humana de fato muda a nossa forma de olhar para as coisas. Como se a morte desse colorido à vida. Mas nós precisamos despertar para isso: nossa rotina, o dia a dia, existe para nos distrair desse fato – quem quer pensar na morte, afinal? Tendo passado a perda precoce e trágica do pai na juventude, Alessandra estava desperta.

Lembrar da finitude da vida muda nossa percepção diante das coisas Foto: natthapol/Adobe Stock

Nos últimos tempos, essa amiga novamente me fez encarar a urgência da vida. Há poucos anos ela fora diagnosticada com um raro e agressivo câncer, com prognóstico desfavorável. Ao longo do tratamento manteve-se esperançosa e, ao mesmo tempo, realista; optou por viver o quanto e como pudesse todos os dias que ainda tivesse pela frente.

Infelizmente, os tratamentos falhavam sucessivamente, e cada falha reduzia a esperança de que algum remédio modificasse os rumos da doença e nos lembrava da importância do agora. Com isso em mente, decidimos celebrar juntos as festas de fim de ano.

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Comprovamos, então, que a vida é uma mistura de emoções, alegria, tristeza, ansiedade, tranquilidade, tudo ao mesmo tempo. Num momento particularmente agridoce, após a ceia de Réveillon, Alessandra agradeceu a presença dos seus irmãos, da nossa família e da família de minha irmã – todos havíamos alterado os planos de fim de ano para estar ali. Disse saber da gravidade de sua condição, da perspectiva de morrer em breve, mas estava feliz com nossa presença, com as celebrações que fizemos. “Não tenho mágoa, não tenho amargura”, tranquilizou-nos.

A lição que aprendera muito jovem, ao experimentar em primeira mão a finitude, permitiu-a viver de forma que sua partida não lhe parecesse angustiante. Uma semana depois dessa conversa, dia 8 de janeiro de 2024, ela faleceu. E a paz com que foi embora transmitiu essa mesma lição a todos nós.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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