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Psiquiatria e sociedade

Opinião | Sofrimento não é um tipo de doença que deve ser combatida

Autoengano é um dos fatores por trás das modas diagnósticas. E deve-se evitar cair vítima de ilusões

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Atualização:

No mundo tereis aflições. Não sou eu que estou dizendo, foi o próprio filho de Deus que nos tirou a esperança de uma vida idílica ao fazer tal afirmação. E, se nos esquecemos disso, caímos vítimas de ilusões perigosas.

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A primeira é acreditarmos que o sofrimento será vencido um dia. Buscar alívio é o motor por trás de todo avanço tecnológico, da roda ao ChatGPT, e ao testemunharmos avanços mitigarem dor após dor, podemos nos convencer de que uma hora não sobrará sofrimento a ser debelado. E é quando estamos assim desapercebidos que os golpes nos atingem de forma mais dolorida.

A segunda ilusão é crer que todo sofrimento é um tipo de doença que deve ser combatida. A ideia de doença paradoxalmente se apresenta como uma forma de esperança ou, no mínimo, de alívio. Esperança porque, se estou sofrendo, é em virtude de alguma condição clínica que, quando for diagnosticada, poderá ser curada. E alívio porque, mesmo que não haja cura, encontra-se uma explicação.

É ilusão acreditarmos que o sofrimento será vencido um dia Foto: Freepik

Esse autoengano é um dos fatores por trás das modas diagnósticas. Sim, tudo o que cerca a atividade humana é influenciado por modas – inclusive os diagnósticos. Há 20 anos, quando eu começava minha carreira como psiquiatra, estava na moda o diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. Tendo passado recentemente por um rebranding, abandonando o assustador nome de psicose maníaco-depressiva, ele se prestava muito bem a explicar os altos e baixos da vida.

A moda tem um lado positivo, não nego, já que muitas pessoas com essa condição que deixariam de ser diagnosticadas acabaram buscando tratamento. Mas passadas duas décadas a vida segue sendo essa montanha-russa com picos e vales, e o entusiasmo pelo diagnóstico passou.

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Antes dele havia sido a síndrome de pânico a estrela da vez. Depois vieram outros: déficit de atenção, personalidade borderline e mais recentemente, burnout e transtorno do espectro do autismo.

Não me entenda mal: todos esses problemas existem de fato e causam muita dor se não tratados. Mas quando eles viram moda perdem o rigor e ampliam indevidamente sua aplicação; em vez de classificar condições clínicas, passam a descrever situações de sofrimento inerentes à condição humana. Deixam de ser diagnósticos e se tornam adjetivos.

Se por um lado essa moda ajuda a divulgar o conhecimento e permite que mais pessoas se tratem, ela invariavelmente leva a distorções e exageros. O que é ruim para as pessoas com as reais condições, cujo sofrimento acaba desqualificado ao ser equiparado a situações corriqueiras, e inútil para a sociedade, que não se verá livre do sofrimento de qualquer forma.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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