Tempos difíceis estes que vivemos: o Legislativo executa, os políticos conversam através de cadeiradas e rinocerontes deverão ter muitos votos. O Banco Central americano diminui os juros, enquanto o brasileiro os aumenta. O antropoceno está definindo que o futuro da Terra será um tosco pedaço de carvão circulando em torno do Sol.
Apesar da avalanche de más notícias, temos uma que deve ser entendida e comemorada. Trata-se de uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF), elaborada pelo ministro Gilmar Mendes – e que foi encampada pela unanimidade do tribunal. É o Tema 1.234.
Em resumo, o STF definiu critérios para as situações em que a União e os Estados deverão ser responsáveis por fornecer medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS), como informado nesta reportagem do Estadão. Como o fornecimento não é obrigatório, muitos pedidos iam parar na Justiça.
Assim, finalmente, o artigo 196 da Constituição Federal começa a ser cumprido: o acesso à saúde é dever do Estado e direito do cidadão, construído através de políticas públicas. Reestabelecer direitos é o papel do Judiciário, mas não pode ser alcançado através de desenho de políticas – essa é a atividade do Executivo. E, se não existe a política pública que dá nexo ao desejo do constituinte, o Judiciário deverá exigir do Executivo que se estabeleça tal política. Não cabe ao Judiciário desenhar políticas públicas.
O caminho para acesso a um remédio
Se um medicamento foi registrado pela Anvisa, e recomendado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), portanto seu acesso deve ser garantido pelo Estado – e o guardião da lei é o Judiciário. A Anvisa analisa o medicamento do ponto de vista da segurança e eficácia, enquanto a Conitec realiza a análise do ponto de vista da avaliação da tecnologia para decidir se recomenda (ou não) sua incorporação – como é o caminho adotado na maioria das nações civilizadas hoje em dia. Com o aval positivo, o Ministério da Saúde deve, então, incorporar tal remédio com a efetivação de uma política a ser desenhada e implementada. Nessa rede de decisões, também se discute com a indústria o preço do medicamento.
Acontece que existe uma judicialização excessiva para que o sistema público financie remédios que não passam por esse rito e, portanto, não chegam ao SUS – para os ministros, essa situação pressiona todo o sistema, que já trabalha com recursos limitados, e traz um clima de insegurança jurídica. Agora, com a decisão do STF, os critérios para obrigar União e Estados a fornecer medicamentos ficam mais claros. É uma decisão que tem alguns pontos dignos de serem dispostos.
Quando um paciente acionar a Justiça em busca de um medicamento que não tem registro no País ou cujo uso não é aprovado no Brasil (o que chamamos de uso off label), o ônus da demonstração de segurança, eficácia e superioridade do produto caberá ao proponente e deverá ser confirmado e apoiado na medicina baseada em evidências – ou seja, por meio de estudos duplo-cego randomizados e/ou meta-análises.
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Decidiu-se ainda como os gastos com as decisões judiciais deverão ser enfrentados, ficando a maior parte deles sob responsabilidade federal – mas com uma proposição a ser discutida e implementada sobre como será a participação dos Estados e municípios nessa cobertura.
Deverá ser criado também um banco de dados único com as decisões para orientar melhor o Judiciário – assim, os entes federativos, em governança colaborativa com o Poder Judiciário, implementarão uma plataforma nacional de fácil consulta para o cidadão. Ela vai centralizar todas as informações relativas às demandas administrativas e judiciais de acesso a fármacos.
O avanço dessa decisão do STF é fantástico no sentido de colocar um mínimo de ordem no chamado processo de judicialização da saúde no País, mas ainda sobram questões a serem resolvidas.
A primeira delas diz respeito ao funcionamento da Conitec – para melhor desempenhar suas funções, ela deveria ser um órgão autônomo em relação ao Ministério da Saúde. Mal comparando, deveria ser um Banco Central da aprovação de novas tecnologias para o SUS – semelhante ao NICE, do serviço de saúde britânico.
A segunda questão diz respeito à parte complementar aos medicamentos: os produtos para saúde, ou seja, os medical devices e os exames subsidiários. Vale citar, por exemplo, as válvulas cardíacas implantáveis sem cirurgia aberta, os stents mais modernos, o uso de ECMO – oxigenação por membrana extracorpórea –, a indicação de cirurgia robótica e a radioterapia menos invasiva. Esses itens, atualmente disponibilizados em poucos centros de excelência, também são fruto de judicialização e deverão ser objeto de decisão semelhante.
Assim, o MS deverá expor um processo de aprovação da incorporação de novas tecnologias e técnicas que, após serem aprovadas, irão compor os serviços a que todos os cidadãos brasileiros terão acesso.
E, quando falo “todos”, devem ser todos mesmos. Assim, esse novo órgão, essa nova Conitec, não deve atuar apenas para o SUS, mas também para a medicina suplementar, resultando em uma única forma de colocar à disposição dos cidadãos a tecnologia que melhorará a condição de prestar assistência à saúde.
A Suprema Corte da Justiça do País está de parabéns e devemos reconhecer a importância da decisão proposta pelo ministro Gilmar Mendes. Tentei, de forma simples, descrevê-la aqui, mas recomendo sua leitura, particularmente aos operadores do direito. Trata-se de uma peça valiosa do ponto de vista do conhecimento jurídico e que será fundamental para o futuro do SUS, que é um dos instrumentos mais poderosos da nação para a construção de uma sociedade melhor e mais igualitária.
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