O número de casos prováveis de dengue registrados até final de outubro deste ano já é 17% maior do que o observado no ano passado. Com mais de 1,63 milhão de casos, conforme o painel de monitoramento do Ministério da Saúde, 2023 fica marcado, por enquanto, como o segundo ano com mais notificações desde 2000, perdendo apenas para 2015, com 1,69 milhão. Em números absolutos, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Espírito Santo lideram o ranking de notificações.
Foram mil óbitos registrados até o momento, contra 1.051 de 2022. De acordo com o último boletim epidemiológico da pasta da Saúde, que traz os dados até 3 de setembro (semana epidemiológica 35), tivemos 21.624 casos de dengue com sinais de alarme e de dengue grave, o que representa um aumento de 16,4% em relação ao mesmo período do ano anterior, e já supera o registro total de 2022, que foi de 20.201, de acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), tabulados pelo Estadão. Os maiores números desse tipo de quadro foram registrados em 2015 (23.759) e 2019 (22.015).
Especialistas ouvidos pelo Estadão destacam que o pico de infecções deste ano já passou, mas que, com o calor de uma primavera atípica, os casos devem seguir em alta. As últimas semanas deste ano serão importantes para entender o que enfrentaremos na próxima temporada, que já preocupa os médicos. Isso porque o calor e a chuva devem persistir, puxados pelas mudanças climáticas e pelo El Niño, o que favorece a reprodução do mosquito Aedes aegypti, que transmite o vírus. Além disso, voltou a circular, após dez anos, o sorotipo 3 da dengue, para o qual menos pessoas estão imunes.
“Realmente estamos com uma tendência de aumento de casos acima daquele esperado para este período em vários Estados”, conta Alda Maria da Cruz, diretora do Departamento de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, ao Estadão. Segundo ela, isso já ocorre desde o final de setembro, e, por isso, a pasta preparou nota às unidades federativas, levando o alerta e pedindo que preparem o sistema de saúde para que profissionais estejam atentos aos sinais da doença, além de intensificar as medidas de controle do mosquito. Além das notificações feitas por profissionais de saúde, o que pode demorar, o ministério também usa modelos matemáticos para acompanhar o cenário.
“O que causa isso? As mudanças climáticas e esses extremos que estamos tendo no País podem estar colaborando. Temos uma seca intensa nas regiões Norte e Nordeste, e uma situação de altas médias de pluviosidade no Sul. Isso tem um efeito direto na biologia do inseto. O calor extremo aumenta a replicação do vírus no interior dos mosquitos e, com as regiões alagadas, aumentam os criadouros”, diz Alda.
Em duas décadas, o número de casos anuais registrados no Brasil aumentou 12 vezes. Em 2000, foram pouco mais de 135 mil registros, por exemplo. Em um País de dimensões continentais, um único fator não consegue explicar sozinho o desenho dessa emergência. No entanto, os especialistas associam o avanço explosivo da doença a medidas pouco eficazes no seu controle e as alterações no clima citadas por Alda, que, com calor e chuvas, dão aos mosquitos um ambiente propício para se proliferarem e chegarem a novas áreas.
Para eles, precisamos de medidas urgentes para controlar a transmissão da doença pelos mosquitos e oferecer a vacina principalmente à população mais vulnerável, ou seja, os idosos e as pessoas com comorbidades. Até o momento, não existe um tratamento específico para a doença. O paciente pode recorrer a certos remédios para trazer alívio aos sintomas – mas isso precisa ser discutido com o médico. O primordial é se hidratar, uma medida capaz de salvar a vida do indivíduo.
Epidemia
A ocorrência de epidemias da dengue no Brasil é intercalada por anos não epidêmicos, quando se observa a alternância de sorotipos predominantes, segundo o Ministério da Saúde – o que não significa que poucos casos sejam registrados, mas que eles estão dentro do esperado (endemia). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), na região das Américas, os períodos epidêmicos ocorrem a cada três ou cinco anos.
O último boletim epidemiológico da pasta da Saúde mostra que, neste ano, a dengue ultrapassou a linha endêmica, o que indica comportamento de epidemia entre o final de fevereiro (semana 9) e início de junho (semana 22). Depois disso, diz o documento, a incidência voltou aos níveis esperados.
“O número de casos em 2023 realmente está acima do esperado”, afirma o infectologista Antonio Carlos Bandeira, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e do Laboratório Central (Lacen) da Bahia.
A região Sul do País teve um papel importante, apontam especialistas. Veja: antes, o mosquito não sobrevivia muito tempo nesses três Estados por causa do frio e, por isso, tinha dificuldade de colonizá-los. Mas as mudanças climáticas mexeram nesse panorama. “Nós estamos com um corredor climático forte, que piora mais ainda com o El Niño, que é um corredor de altas temperaturas no Centro-Oeste, no oeste do Sudeste até a região Sul. Isso facilitou a migração do mosquito”, explica Bandeira.
Desde 2020, a região Sul tem ajudado a inflar as estatísticas de dengue. Neste ano, os três Estados representam mais de 27% de todos os casos do País. Em 2014, a mesma taxa era de apenas 3%, de acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), tabulados pelo Estadão. Para ter ideia, durante muitos anos Santa Catarina registrou apenas centenas de casos e, na epidemia de 2015, não passou dos 5 mil. Já em 2022, ultrapassou 85 mil e, do início do ano até agora, notificou mais de 144 mil.
Essa tendência de o mosquito se estabelecer em áreas historicamente mais frias é global – países europeus começaram a registrar aumento de caso de dengue. E, chegando nesses espaços, a transmissão do vírus da dengue triunfa, já que encontra uma “população despreparada imunologicamente”, segundo o infectologista Celso Granato, professor livre-docente aposentado de infectologia do Departamento de Medicina da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Os dados mostram que, de fato, o mosquito tem ganhado área no Brasil. Neste ano, 4.943 dos 5.570 municípios brasileiros (88%) registraram ao menos um caso de dengue. Em 2022, infecções foram notificadas em 4.973, o recorde até o momento. Em 2015, quando o maior número de casos da história foi registrado, houve notificações em 4.710 municípios. Em 2014, foram cerca de 4 mil cidades com algum registro de dengue.
Como já mencionamos, a situação climática pode ajudar o mosquito a se reproduzir e a aumentar sua densidade populacional, o que impacta diretamente no sobe e desce de casos de dengue ao longo do ano. “O número de casos permaneceu alto até julho deste ano, coisa que era impensável em outros anos. Começou a cair praticamente a partir de agosto. A gente sempre viu dengue de fevereiro até maio”, aponta Bandeira.
“A quantidade de dias em agosto com temperatura acima de 30°C foi absurdo. É um mês que é tipicamente de inverno. Acho que tudo isso contribuiu para que a gente tivesse uma sazonalidade da dengue diferente”, acrescenta Granato.
Segundo o virologista Maurício Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, outro fator que contribui para o cenário atual da dengue tem a ver com a pandemia de covid-19. “Em 2018 e 2019, tivemos uma circulação de uma nova variante da dengue 2 (o genótipo cosmopolita) no Brasil, e isso aumentava o número de casos, com tendência de causar uma grande epidemia no Brasil. Mas ela foi basicamente abortada pela pandemia (de coronavírus) e pelo menor deslocamento das pessoas entre as cidades.”
“Podemos dizer, de certa forma, que a gente estava um pouquinho ‘atrasado’ na circulação de dengue dentro do Brasil e, com o relaxamento e a volta das viagens, o vírus se expandiu”, fala.
O que vem pela frente
Prever o cenário da dengue, no geral, é muito difícil. Mas, segundo especialistas, fica ainda mais complicado quando se trata de um País de dimensões continentais que, ainda por cima, enfrenta um processo de alterações climáticas. Ainda assim, as próximas semanas deste ano podem ser cruciais para dar pistas do que esperar da nova temporada da doença. Os médicos destacam que é preciso de esforços de vigilância local para antever problemas e se antecipar para solucioná-los.
Algo que preocupa, segundo eles, é o retorno do sorotipo 3 da dengue ao Brasil após dez anos. Em maio, a Fiocruz divulgou estudo que detectou o vírus no Norte do País. Por ora, a reintrodução parece não estar bagunçando o cenário. De acordo com o Sinan, até julho, dos poucos casos em que foi investigada a tipagem, apenas 12 eram DENV-3. No momento, DENV-1 e DENV-2 circulam concomitantemente em vários Estados, segundo o boletim do Ministério da Saúde. Além disso, a região Norte registrou pouco mais de 29,5 mil notificações (2,15% dos registros do País).
Os especialistas temem uma epidemia sustentada de casos com o estabelecimento da dengue 3, visto que, por não circular há anos por aqui, praticamente toda a população estará vulnerável. Nogueira diz que não é um caso de “se”, mas de “quando” isso acontecerá, o que exige alerta nos próximos anos. “Não há dúvida que nós teremos um epidemia de dengue 3″, crava.
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Alda, do Ministério da Saúde, destaca que o retorno do sorotipo é uma preocupação da pasta também. “Ele vai encontrar uma população de indivíduos suscetíveis muito elevada.”
O professor também está apreensivo com a circulação de outro vírus transmitido pelo Aedes Aegypti, o chikungunya – que, inclusive, pode estar inflando os dados de dengue por uma sintomatologia semelhante, segundo ele. “Me preocupa muito, porque ele não causou uma epidemia de grandes proporções ainda no interior do Centro-sul, interior de São Paulo, interior de Minas, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, que são regiões extremamente povoadas.”
“O problema é que é uma doença grave e com capacidade de gerar sequelas importantes, como artrites crônicas”, completa.
De acordo com o último boletim da Saúde, foram notificados 143.739 casos prováveis de chikungunya no País. Isso representa uma redução de 41% quando comparado com o mesmo período de 2022, quando foram notificados 243.347.
Frente a esse cenário, Alda relata que, além de antecipar o alerta e pedir que os Estados comecem o trabalho de controle vetorial mais cedo, o ministério se esforça para aumentar o cardápio de opções para isso. “Classicamente, temos o controle dos criadouros e o uso de larvicidas.”
Neste ano, conta, a grande novidade é a borrifação residual intradomiciliar, quando agentes usam uma bomba para borrifar inseticida, que, segundo ela é utilizada principalmente em prédios públicos, locais de grande circulação de pessoas e em locais de concentração de idosos.
Outra aposta são estações disseminadoras. “Mecanismo onde o vetor pousa e dissemina inseticida através das patinhas”, explica Alda. Segundo a Fiocruz, a técnica consiste em um pote plástico com água para atrair os mosquitos Aedes, recoberto com tecido preto umedecido, no qual é impregnado um larvicida em pó muito fino.
Alda também fala no uso de ovitrampas, que são como vasos que simulam o ambiente para a procriação do Aedes Aegypti, para que ovos sejam ali colocados, com eles agentes de saúde monitoraram onde há maior número de criadouros.
“Também estamos introduzindo o método Wolbachia, inicialmente em um número restrito de municípios, porque não temos ainda uma capacidade produtiva para atender a todos os municípios que foram ranqueados”, destaca. Na técnica inovadora, mosquitos ou ovos alterados em laboratório para conter a bactéria Wolbachia, que bloqueia transmissão de arboviroroses, são soltados no ambiente para competir e substituir os selvagens. A técnica tem colhido resultados surpreendentes pelo mundo.
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Grupos vulneráveis
Frente a esse cenário, os especialistas destacam que é preciso também redobrar os cuidados com os grupos mais vulneráveis, que são os idosos e as pessoas com comorbidades, como hipertensão e diabetes. Embora, historicamente, os casos (63%) e as hospitalizações (51,2%) se concentrem na faixa etária dos 20 aos 59 anos, mais da metade (50,3%) das mortes são de idosos com 60 anos ou mais.
Os médicos listaram algumas ações que podem ser tomadas:
- Atenção aos sintomas: Quem convive e/ou cuida de pessoa de grupo de risco precisa estar atento aos sintomas. “Se ela tiver febre, dor no corpo, dor de cabeça ou qualquer outro sintoma que lembre dengue, a medida mais importante é levá-la a uma unidade de saúde”, diz Granato. Ali, será possível iniciar de forma mais cuidadosa um tratamento de hidratação. “Quanto mais cedo começar a hidratar, maior é a chance de sobreviver.”
- Uso de repelentes: Priorize aqueles à base de icaridina. É preciso ler com atenção as instruções para fazer a reaplicação no período de tempo correto.
- Uso de roupas compridas: Camisa de manga longa, calça comprida e meias ajudam na proteção contra picadas.
- Vacina: Tomar as vacinas disponíveis na rede privada. Ainda não há uma vacina disponível na rede pública.
O que precisamos fazer para controlar a dengue de uma vez por todas?
Avançando ano a ano, no Brasil e no mundo, a dengue se torna um problema de saúde pública cada vez maior. Na avaliação de especialistas, hoje não temos medidas eficazes de controle da doença. A conscientização sobre a necessidade de acabar com criadouros do mosquito e o uso de inseticidas (fumacê), embora importantes, não têm sido suficientes.
“Isso é preocupante, porque o impacto econômico e social da dengue é muito alto”, diz Nogueira. Por um lado, os sintomas da doença são bastante intensos e causam desconforto. “Você fica miserável”, descreve. Por outro, as milhares de internações representam “um custo ao sistema de saúde absurdo”, afirma. “Além do impacto econômico indireto de perdas de dias trabalhados.”
Em anos com menos casos, as internações por casos prováveis de dengue ficam entre 10 mil e 20 mil. Em anos com mais casos, entre 30 mil e 50 mil. Neste ano, até julho, o Sinan indicava 40.011, o que é 19,7% menor do que o total de 2022. O maior número de pessoas internadas no País ocorreu em 2019 (56.053).
Para especialistas, o enfrentamento da dengue deve ter múltiplas frentes. O primeiro é oferecer vacina à população, em especial aos grupos mais vulneráveis. Neste ano, chegou ao mercado a primeira vacina de uso amplo para a dengue, da farmacêutica Takeda, com eficácia de 80%, mas por enquanto ela só está disponível na rede privada, com custo médio de R$ 400 a dose (o esquema de proteção é feito com duas doses).
Outro imunizante, do Instituto Butantan, está na última fase de testes clínicos, que deverão terminar em 2024. Os resultados preliminares são animadores e, caso se confirmem, podem significar o acesso a uma vacina de menor custo, por ter produção nacional.
Em segundo lugar, é preciso intensificar o combate ao mosquito, de preferência com abordagens novas, dado que as conhecidas não foram capazes de controlar as epidemias. Nesse cenário, entram estratégias como o mosquito geneticamente modificado com a bactéria Wolbachia. Por fim, é importante manter o investimento nas pesquisas de remédios para tratamento da dengue, que estão em desenvolvimento pela indústria farmacêutica.
Quando tivermos essas três ferramentas ao mesmo tempo, algo que provavelmente acontecerá nos próximos anos, viveremos outra realidade em relação à dengue, acreditam os especialistas.
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Vacina
Em março deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o registro de uma nova vacina para a prevenção da dengue, a Qdenga, da Takeda, que protege contra os quatro diferentes sorotipos do vírus causador da doença. Segundo os estudos clínicos, ela confere proteção de 80% contra a infecção e 90% contra casos graves e morte.
É a segunda vacina contra a doença a receber registro no Brasil, mas a primeira que pode ser usada independentemente de o paciente ter ou não registro de infecção prévia pelo vírus da dengue. Isso porque a primeira, do laboratório francês Sanofi Pasteur e aprovada no País em 2015, só pode ser aplicada em quem já contraiu algum sorotipo da dengue porque aumenta a ocorrência da forma grave da doença em pessoas nunca antes infectadas pelo vírus.
A vacina da Takeda chegou ao mercado em junho. A empresa informou ao Estadão que, desde então, “foram demandadas aproximadamente 80 mil doses da vacina” pelo mercado privado, onde ela está sendo comercializada. A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS (Conitec) analisa a incorporação da vacina ao Sistema Único de Saúde (SUS). “O Ministério tem interesse na aplicação de qualquer vacina que se mostre custo efetiva”, afirmou Alda ao Estadão.
“Em 28 de julho, fizemos então uma proposta a Conitec, com uma redução de preço muito significativa em relação ao aprovado pela CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos). Submetemos uma proposta de faixas etárias, em crianças e adultos de acordo com a indicação aprovada pela Anvisa”, informou Vivian Kiran Lee, diretora executiva de Medical Affairs da Takeda, durante evento da empresa nesta semana.
“A Conitec teve uma reunião no dia 5 de outubro, em que discutiu a nossa vacina, e ontem, 13 de novembro, recebemos um ofício com dez perguntas adicionais”, completou. Por lei, o Conitec tem 180 dias para a conclusão de pedidos, prorrogáveis por mais 90 dias. Após a publicação de portaria de incorporação, ainda existe um prazo máximo de 180 dias para que esta seja ofertada no SUS.
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