Devemos ensinar nossos filhos a identificar amigo em risco, diz mãe que perdeu filha de 13 anos

Após morte da adolescente, Cynthia Costa descobriu que menina já havia avisado colegas e até mostrado carta de despedida a amigos na escola

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Foto do author Fabiana Cambricoli
Por Fabiana Cambricoli
Atualização:

Alerta: a reportagem abaixo trata de temas como suicídio e transtornos mentais. Se você está passando por problemas, veja ao final do texto onde buscar ajuda.

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Após a filha tirar a própria vida, aos 13 anos, a comerciante Cynthia Monique da Costa passou os primeiros dias depois da tragédia sem nenhuma pista do que havia levado a adolescente a cometer ato tão extremo. Não havia notado nenhum sinal de anormalidade nem observado na menina comportamentos depressivos e autodestrutivos ou qualquer ato que demonstrasse ideação suicida.

Na noite em que tudo aconteceu, uma segunda-feira em maio de 2021, a menina foi à escola, voltou para casa, tomou banho, jantou e deu boa noite aos pais antes de pôr um fim precoce à própria vida.

“A única coisa que havia mudado depois que ela entrou na adolescência é que ela ficava mais tempo no quarto e nas redes sociais, mas achávamos que era algo normal da idade. E ela continuava conversando abertamente com a gente, viajando, se divertindo. Uma semana antes, estávamos em Cabo Frio (RJ) dançando, brincando, andando de patins”, conta Cynthia, que mora no Rio.

Ao tentar entender o que havia motivado o ato da filha, a comerciante descobriu, olhando o celular da menina e conversando com amigos dela, que a adolescente seguia e interagia nas redes sociais com páginas e grupos que incentivavam automutilação e suicídio. Também soube que ela mandou mensagens para amigos, mais de uma vez, avisando que se mataria, e que levou uma carta de despedida à escola no dia do suicídio para mostrar aos colegas.

Como a garota já havia dito coisas semelhantes antes a amigos, eles não levaram a sério a ameaça e não avisaram nenhum responsável. “Disseram que não acreditavam que ela realmente ia fazer. Muita gente pensa que quem ameaça não faz, mas isso não é verdade. Levar a carta de despedida no dia foi um pedido de ajuda”, diz Cynthia.

A mãe lamenta não ter sido avisada por outros jovens sobre as intenções da menina, mas reconhece que as discussões sobre prevenção do suicídio ainda não estão em todos os ambientes. Segundo especialistas, não devemos minimizar possíveis sinais de alerta de pessoas com ideação suicida e é preferível alertar familiares do que perder a chance de evitar a tragédia.

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Cynthia afirma considerar fundamental que todos os pais conversem com seus filhos sobre o tema não só para evitar tentativas de suicídio na família, mas para que outros jovens saibam identificar quando um amigo esteja passando por problemas psíquicos.

“Ela não deu sinais claros para a família, mas deu para alguns amigos. Devemos ensinar nossos filhos a identificar um amigo que esteja nessa situação para que possam avisar os pais, tentar ajudar. Assim a gente tem mais chance de prevenir.” Óbitos como o da filha de Cynthia vêm se tornando mais comuns no País. Como mostrou o Estadão, o número de suicídios entre crianças e adolescentes vem crescendo e hospitais relatam estar recebendo pacientes cada vez mais jovens que tentaram tirar a própria vida.

Cynthia diz ainda considerar insuficientes as ações de moderação e regulação de postagens nas redes sociais pelas plataformas, em especial no TikTok. “Depois da morte dela, descobri um mundo de coisas. Tem muitos vídeos depressivos, com jovens mostrando que fizeram carta de despedida, uma coisa bem ‘down’. E, nos comentários, gente combinando dia para se matar. Imagina um adolescente que está nessa fase, cheio de dúvidas. Eu tentava monitorar o que ela via nas redes, mas soube que ela instalava e desinstalava aplicativos. Deveria haver filtros das próprias plataformas.” A plataforma diz ter diretrizes que coíbem esse tipo de conteúdo e auxiliam os pais no monitoramento (leia mais abaixo).

Cynthia Costa perdeu a filha de 13 anos Foto: Pedro Kirilos/Estadão

A comerciante diz que já denunciou à plataforma vários vídeos que fazem apologia ao suicídio e muitos deles não foram tirados do ar até hoje, mais de dois anos após a morte da filha. Ela defende ação proativa e contundente do TikTok na remoção desse tipo de conteúdo.

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“Para os amigos e nas conversas online, ela dizia que não se achava bonita, que ninguém gostava dela, que a vida era chata. Acho que essa dor interna foi sendo alimentada por esses conteúdos”, diz.

Cynthia passou a usar seu Instagram para falar do tema como forma de alertar outros pais. “Muitos começaram a me procurar depois do que aconteceu querendo saber o que fazer, pedindo orientação e então comecei a postar dicas para eles não serem pegos de surpresa como a minha família foi.”

Ela defende ser importante monitorar o que crianças e adolescentes consomem na internet e falar sobre transtornos mentais e suicídio com os filhos. “A gente conversava abertamente sobre tudo, mas esse tema nunca surgiu, nunca me passou pela cabeça que havia esse risco. E não imaginava que existiam esses conteúdos nas redes sociais. Não adianta proibir o uso de redes, mas é preciso monitorar mais a fundo”, diz.

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O TikTok foi procurado e questionado pelo Estadão sobre os vídeos citados por Cynthia, mas não se pronunciou especificamente sobre isso, apenas sobre suas diretrizes gerais. A plataforma disse remover “conteúdo que retrata, promove, normaliza ou glorifica atividades que podem levar ao suicídio ou autolesão”. A empresa afirma que usa combinação de tecnologia e moderação humana para identificar e tomar iniciativas contra conteúdos ou perfis que violem as diretrizes da comunidade e que suas equipes especializadas em moderação “recebem treinamento, o que inclui processos para escalar emergências, alertando e cooperando com as autoridades locais caso identifiquem alguém com riscos de autolesão”.

O TikTok diz ainda facilitar o processo para que a comunidade denuncie o conteúdo para revisão da plataforma, disponibilizando o botão “relatar”, e afirma trabalhar com especialistas em saúde mental “para melhorar continuamente as políticas e abordagem”.

A plataforma diz que, no segundo trimestre de 2022, removeu proativamente mais de 96% dos vídeos que violam diretrizes relacionadas a suicídio, autolesão e atos perigosos. Afirmou ainda que tem como prioridade “a segurança e o bem-estar da comunidade do TikTok”.

Nesse sentido, a empresa diz oferecer recursos para apoiar pessoas que estejam com dificuldades, como um guia de bem-estar digital. A plataforma afirma também oferecer recursos de sincronização familiar para pais e responsáveis por adolescentes.

Bullying não é brincadeira, diz pai de adolescente vítima de suicídio

A dor pela perda da filha de 13 anos também tem motivado o engenheiro Marcello Cunha a pensar em ações para alertar pais, educadores e toda a sociedade sobre os impactos do bullying na saúde mental de crianças e adolescentes.

A menina tirou a própria vida em junho do ano passado. O pai a encontrou morta na escola quando foi buscá-la. Segundo Cunha, ela sofreu episódios de bullying ao longo dos últimos anos no colégio. A polícia e o Ministério Público investigam o caso (leia mais abaixo).

“Reportamos vários casos para a escola, o primeiro em 2017”, afirma o pai. Segundo ele, a escola “tratava esses casos como brincadeira de criança, mas não são”.

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O Colégio Porto Seguro, onde a garota estudava, nega que ela sofria bullying e diz manter há anos uma equipe de profissionais habilitados para tratar de questões socioemocionais dos alunos. Também afirma ter empregado “esforço máximo” para acolher a comunidade escolar após a morte (leia mais abaixo).

“Não se trata de querer apontar um culpado, mas de alertar as instituições de ensino a dar mais importância a essas queixas e conflitos e tomarem medidas efetivas para coibir outros casos. Hoje foi minha família, mas amanhã pode ser outra”, diz Cunha, que lançará um instituto em homenagem à filha e focado em ações contra o bullying no início de 2024.

Marcelo Cunha, que perdeu filha de 13 anos, defende que as instituições de ensino estejam mais atentas a episódios de bullying Foto: Alex Silva/Estadão

Especialistas apontam que o suicídio costuma ter múltiplas causas e orientam que casos individuais passem por análise abrangente. Mas alguns estudos já mostraram que adolescentes que sofrem bullying têm mais risco de manifestarem comportamentos suicidas.

Artigo publicado em 2018 no Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry, que analisou dados de 132 mil adolescentes de 12 a 15 anos em 48 países, concluiu que jovens que sofreram bullying ao menos uma vez nos últimos 30 dias têm risco três vezes maior de tentar suicídio.

O Centro para o Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC) publicou em 2014 documento sobre a relação entre os dois fenômenos, destacando que, embora a maioria dos alunos que sofrem bullying não cometa suicídio, jovens vítimas de intimidação sistemática são mais propensos a tentar isso.

“Qualquer envolvimento com comportamento de bullying é um estressor que pode contribuir significativamente para sentimentos de impotência e desesperança que aumentam o risco de suicídio”, destaca a entidade.

Especialistas alertam, porém, que um único episódio de intimidação ou ofensa dificilmente levará a um ato extremo. Na maioria dos casos, a tentativa de suicídio ocorre após acúmulo de situações e sentimentos negativos ao longo de anos.

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“O evento isolado pode ser o gatilho, mas não é a causa. O gatilho é a gota d’água em um copo que já estava cheio. Pode ser coisa pequena, mas que tem por trás sensações de perda e abandono e outros sentimentos negativos”, diz Silvana Palmeiro Marcantônio, supervisora da residência de pediatria do Hospital Moinhos de Vento, de Porto Alegre.

Colégio nega bullying e afirma ter ações preventivas

O Colégio Porto Seguro afirmou, em nota, respeitar “verdadeiramente o momento de dor pelo qual a família vem passando”, mas nega que a aluna sofresse bullying. Questionado pelo Estadão sobre o episódio e as queixas da família, a instituição afirmou que “para configuração do bullying, é necessário que o ato seja intencional, repetitivo e sem motivação evidente, o que não se verificou nas situações apontadas pelo pai”.

Disse ainda que “oferecer apenas uma explicação para o suicídio, que possui um viés multifatorial, é ser reducionista”. E afirmou que “o sofrimento psíquico, por inúmeras vezes atrelado ao suicídio, pode estar presente na vida de uma pessoa há muitos anos, mas, nesse caso específico, o colégio nunca teve conhecimento de ideações suicidas da aluna”.

O colégio disse ter “ativo programa que visa a prevenir e combater o bullying, buscando evitá-lo por meio de diversas ferramentas e ações para orientação, acolhimento e integração dos alunos e respectivas famílias”.

Afirmou ainda que, após a morte, empenhou “máximo esforço” para acolher a comunidade escolar e aprimorar os procedimentos existentes. “Buscamos uma consultoria especializada no tema para, dentre outras atividades de capacitação, ministrar treinamentos aos nossos colaboradores e aumentar nossa capacidade de prevenção e assistência”, disse.

A Polícia Civil e o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) investigaram, na esfera criminal, as circunstâncias em que a estudante tirou a própria vida para apurar se houve negligência do colégio. A Secretaria da Segurança Pública informou que “o inquérito policial foi relatado ao Poder Judiciário em agosto deste ano e arquivado pelo Fórum em outubro”. O MP-SP não informou detalhes sobre o inquérito na Promotoria criminal alegando que ele está em segredo de Justiça.

Na esfera cível, foi aberta apuração pelo Grupo de Atuação Especial de Educação (Geduc) do MP-SP da capital para averiguar se a escola segue boas práticas de prevenção ao bullying e se será necessário propor adequações. A investigação ainda está em andamento.

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Em setembro, o MP-SP afirmou ao Estadão que o procedimento cobra “o aprimoramento das medidas pedagógicas e administrativas de prevenção e combate ao bullying e encaminhamentos a alunos em situação de sofrimento psíquico” e que aguardava relatório da supervisão escolar sobre a efetiva institucionalização de tais providências pelo colégio. Procurado novamente em dezembro, o MP-SP disse que não houve novidades no processo.

“É um caso individual, mas que a gente passa a apurar numa perspectiva de direito coletivo. Primeiro, (temos de) verificar se a instituição tem algum projeto pedagógico de prevenção do bullying. Se a gente perceber que tem falhas, podemos formalizar um inquérito civil ou termo de ajustamento de conduta”, disse João Paulo Faustinoni e Silva, promotor de Justiça do Geduc, no fim de 2022, logo após a apuração ser iniciada.

Para ele, as escolas devem atuar de forma mais ampla na educação e proteção dos estudantes. “É importante que tenham escuta aberta, um trabalho de transformar o conflito em diálogo e cultura de paz e de valorização da diversidade, pensando menos nas pressões de desempenho, prestando atenção também no bem-estar e na singularidade dos alunos e criando espaços de convivência saudável”, afirma. /COLABOROU THAÍS NUNES

Onde buscar ajuda

Se você está passando por sofrimento psíquico ou conhece alguém nessa situação, veja abaixo onde encontrar ajuda:

Centro de Valorização da Vida (CVV)

Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.

Canal Pode Falar

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Iniciativa criada pela Unicef para oferecer escuta para adolescentes de 13 a 24 anos. O contato pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.

SUS

Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infantojuventis e é possível buscar os endereços das unidades nesta página.

Mapa da Saúde Mental

O site traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais.

NOTA DA REDAÇÃO: Suicídios são um problema de saúde pública. Antes, o Estadão, assim como boa parte da mídia profissional, evitava publicar reportagens sobre o tema pelo receio de que isso servisse de incentivo. Mas, diante da alta de mortes e tentativas de suicídio nos últimos anos, inclusive de crianças e adolescentes, o Estadão passa a discutir mais o assunto. Segundo especialistas, é preciso colocar a pauta em debate, mas de modo cuidadoso, para auxiliar na prevenção. O trabalho jornalístico sobre suicídios pode oferecer esperança a pessoas em risco, assim como para suas famílias, além de reduzir estigmas e inspirar diálogos abertos e positivos. O Estadão segue as recomendações de manuais e especialistas ao relatar os casos e as explicações para o fenômeno.

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