Não tem como falar da relação entre avós e netos sem pensar na sua experiência pessoal. Quando recebi a missão de escrever sobre esse tema, lembrei imediatamente da ligação que tenho com meu avô materno, Alexandre, de 89 anos, e como ela influencia em minha vida.
Sempre tivemos uma relação muito próxima, especialmente na época do Ensino Médio, quando moramos juntos. Passava horas conversando com ele sobre minhas provas, contando histórias e compartilhando sentimentos e sonhos. Hoje, ele mora em outra cidade, então esses papos acontecem frequentemente via telefone ou videochamada – mas os encontros pessoais ocorrem todo mês. Quando fico um dia sem escutar sua voz ou saber sua opinião sobre algo do noticiário, bate uma tristeza. E esse sentimento, para minha surpresa, é corroborado pela ciência.
De acordo com uma pesquisa de 2016, publicada no jornal científico The Gerontologist, a afinidade entre avós e netos, definida como uma proximidade emocional entre eles, resultou em uma melhora nos sintomas depressivos para ambos. Os autores inclusive apoiam a afirmação de que os chamados relacionamentos intergeracionais são “um novo recurso valioso para as famílias no século XXI”. Já um estudo de 2012, da South Dakota State University, afirma que avôs que estão ativamente envolvidos na vida dos netos possuem melhor bem-estar do que os que são mais passivos.
“O ser humano é uma das espécies que nascem mais prematuras”, informa Fellipe da Cruz, psicólogo especialista em saúde da pessoa adulta e da pessoa idosa. Prova disso é que, em geral, ele precisa do suporte de outros adultos até pelo menos os 18 anos. Só depois disso vem alguma autonomia e independência para tocar a vida sozinho.
“Por sermos assim, os cientistas percebem que temos uma predisposição maior ao apego. O que significa que precisamos ter necessidades básicas emocionais supridas pelos primeiros cuidadores”, completa. Daí porque, segundo o especialista, conflitos com essas pessoas tendem a gerar muito mais impacto na saúde mental. E os avós estão cada vez mais presentes nesse cenário. Pesquisas indicam que, atualmente, as famílias brasileiras contam com mais avós do que no século passado. Muitas vezes, isso implica em uma mudança estrutural nos cuidados das crianças, fazendo com que os avós ajudem na criação dos netos.
“Na casa de vô pode tudo”
Sempre tinha uma caixa de chocolates esperando os netos na casa do meu avô. A gente não só tinha passe livre para comer os doces como também podia correr livremente pela sala e tocar piano alto, mesmo que fosse extremamente irritante – afinal, ninguém sabia realmente tocar. A farra durava até os pais chegarem. Ao mesmo tempo, até os momentos difíceis pareciam mais leves com o meu avô. Eu sabia que, se precisasse de um colo quando algo estivesse errado, ele estaria lá – para ouvir e também dar opiniões sinceras, com base em uma visão de mundo única.
“Existe a crença de que avós ‘deseducam’ as crianças. Mas isso não é verdade”, afirma Clineu Almada Filho, médico geriatra e professor da Geriatria e Gerontologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). De acordo com o médico, quando o pai e a mãe desejam educar, eles acabam sendo mais rígidos, até porque costumam ter menos experiência nessa tarefa. “Por outro lado, os avós fazem isso de maneira muito menos austera, sempre tentando harmonizar e minimizar as faltas da criança”, nota o geriatra.
Os especialistas afirmam que, por essas e outras, os avós têm um peso grande na autoestima, na segurança emocional e no desenvolvimento socioemocional dos netos. Assim como eu, o estudante Leonardo Darcadia, de 22 anos, sabe bem disso. A convivência próxima com sua avó, Carmem Fusco Darcadia, de 95 anos, é extremamente valiosa para ele. Tanto que, ao mostrá-la na internet, fez um sucesso quase imediato – hoje, eles somam mais de quatro milhões de seguidores nas redes.
“Ela me ensina a ser paciente e perceber que as coisas não precisam ser perfeitas sempre”, conta ele. “Eu sempre sonhei em ser avó. Ainda mais na minha época. Eu sou do século passado. Ser avó é ser mãe duas vezes, que coisa maravilhosa! A gente multiplica o amor”, diz ela.
Para Carminha, como é conhecida nas redes, os vídeos representam uma espécie de propósito. “Toda vez que gravamos, ela fala que se sente mais útil, coisas como: ‘nossa, eu achei que eu não servia para mais nada, e sirvo, sim’”, conta o neto. “Eu jamais esperava que meu neto estivesse gravando. Foi muito espontâneo. Mas nossa relação é muito boa e, quando ele chega em casa para gravar, preenche meu coração. A solidão é muito triste, sabe? A presença é importantíssima”, compartilha ela.
No Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), que auxilia psicólogos nos diagnósticos de depressão, uma das questões analisadas é justamente o sentimento de inutilidade. Para a maioria dos idosos, somente receber suporte funcional sem também fornecê-lo pode aumentar os sintomas depressivos.
É importante lembrar que, na depressão, há redução nos níveis de neurotransmissores, como serotonina e dopamina, o que provoca, além de tristeza extrema, uma diminuição de energia, causando fadiga. Os impactos também podem ser vistos em forma de alterações do sono, apetite, vitalidade e peso. Assim, a solidão parece cada vez mais sedutora.
Uma geração ensina a outra
As gerações coexistem por mais tempo do que no passado, e manter essa relação saudável é benéfico para ambos os lados. “A oportunidade intergeracional de ouvir novas ideias, novos métodos de ensino e novas conversas dá a oportunidade de ampliar ideias. Os idosos ficam mais ativos, mais em contato com o mundo real”, coloca Almada. São fatores capazes de afastar a depressão e também alterações cognitivas. Alguns estudos afirmam inclusive que o relacionamento com os netos poderia diminuir o risco de Alzheimer entre os mais velhos.
Percebemos muito o valor disso na pandemia, com netos ensinando os avós a mexerem em dispositivos eletrônicos para manter o contato com o “mundo real”. Eu deixei tudo em São Paulo e voltei a morar em Piracicaba, no interior, com meu avô. No dia a dia, colocava-o em lives de seus assuntos prediletos e até conduzimos um encontro com mais de 20 membros da família via chamada de vídeo.
Mas é claro que essa relação nem sempre é harmoniosa. Muitas vezes, segundo Da Cruz, as tensões ocorrem devido ao que ele chama de falta de flexibilidade cognitiva. ”É como se cada geração quisesse que o outro compreendesse o mundo de um jeito”, explica. Isso é notório quando surgem frases como “na minha época não era assim” ou “aprendi desse jeito e pronto”. Mas, segundo o psicólogo, é preciso entender que as coisas mudam. “A partir daí, começa o diálogo”, diz.
Carminha não entende muito bem como os vídeos na internet podem render dinheiro, mas Leonardo faz questão de mostrar para ela como o conteúdo impacta quem assiste. “Depois de postar o vídeo, eu leio todos os comentários e ela fica super emocionada. As mensagens que eu mais gosto de receber são de netos que vão visitar as avós porque os vídeos despertaram essa vontade”, conta ele.
Leia também
Estímulo aos cuidados de saúde
Acho que não teve nenhuma vez que visitei meu avô de surpresa e não percebi sua energia mudar completamente. O senhor que estava lendo quieto no canto de repente vira o avô que quer fazer a minha comida predileta, sair de carro para comprar o famoso sorvete de doce de leite da cidade, escutar tudo sobre minha semana e ainda me mostrar as melhores frases de livro que leu nos últimos dias.
O sentimento de que minha presença é realmente importante é maravilhosa. A correria do dia a dia vira uma desculpa banal perto da felicidade genuína que vejo nele. Ele me conta que é muito diferente ligar e ver ao vivo porque a energia flui mais facilmente. “A gente percebe isso num abraço, num sorriso, num olhar”, meu avô fala.
Com a presença e o amor dos familiares, os avós querem se cuidar para estar mais dispostos e alegres. Leonardo também percebe isso. “Eu sinto que toda vez que a gente a visita, ela até pode estar triste, mas é só a gente chegar que muda o dia dela”, relata. Em 2021, quando seu avô (e marido de Carminha) morreu, ele percebeu como esse contato próximo ajudou a avó a espairecer e tocar adiante.
“Eu espero que a vida continue assim, com dias maravilhosos. E quero ver os meus netos formados, porque preciso ir na formatura”, empolga-se Carminha. Para chegar lá, ela faz questão de cuidar da saúde. “O meu dia a dia é aquela rotina. Costumo levantar mais cedo, porque eu não gosto de ficar na cama. Aí, tomo meu café bem substancioso. Depois leio o jornal, ando pela casa, dou uma olhada nas plantas, faço meu café-da-tarde às 16h, que é imprescindível, e janto sopa”, descreve.
De olho nessa energia toda, até os netos ficam mais inspirados. Ainda não leio cinco livros por semana como faz o meu avô, mas tento manter uma dieta saudável e os exercícios em dia, para chegar nessa fase esbanjando saúde como ele – e mantendo sonhos e planos para um futuro longo.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.