Dormir mal acelera o envelhecimento cerebral e pode aumentar o risco de demências, indica pesquisa

Estudo acompanhou pessoas de meia-idade durante 15 anos; para especialistas, resultado reforça a necessidade de levar o sono a sério

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Foto do author Victória  Ribeiro

Que as noites mal dormidas podem afetar diretamente nosso bem-estar não é novidade. Mas e se o sono — ou melhor, a falta dele — estivesse envelhecendo nosso cérebro mais rapidamente? É o que sugere uma pesquisa realizada pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Focado em adultos de meia-idade, o estudo mostra que aqueles com dificuldade para dormir ou para permanecer dormindo podem apresentar um envelhecimento cerebral quase três anos mais acelerado, elevando o risco de doenças neurodegenerativas como Alzheimer.

“Essas descobertas são importantes porque mostram que os impactos do sono ruim na nossa saúde cerebral começam muito antes da velhice”, destaca a professora Clémence Cavaillès, pesquisadora principal do estudo. “Isso quer dizer que noites mal dormidas, mesmo na meia-idade, já possuem uma forte atuação no envelhecimento cerebral — algo associado ao declínio da memória e a mudanças no cérebro ligadas ao Alzheimer.”

Entre os problemas de sono mais associados ao envelhecimento cerebral destacaram-se a dificuldade para adormecer, para manter o sono e o despertar precoce Foto: stokkete/Adobe Stock

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Para entender essa associação, a pesquisa, divulgada na Neurology, revista médica da Academia Americana de Neurologia, acompanhou 589 participantes na faixa dos 40 anos — uma etapa em que fatores de risco para doenças neurodegenerativas podem começar a afetar o cérebro. No início do estudo e cinco anos depois, os voluntários responderam a perguntas sobre a qualidade do sono, como: “Você tem dificuldade para dormir?”, “Acorda várias vezes durante a noite?”, “Costuma despertar muito cedo?” e “Sente sonolência durante o dia?”.

Com base nas respostas, os participantes foram divididos em três grupos. O primeiro, chamado de “grupo baixo”, incluía aqueles com até uma característica de sono ruim, correspondendo a cerca de 70% dos voluntários. Já o “grupo médio” era composto por aqueles que apresentavam de duas a três características, totalizando 22%, enquanto o “grupo alto” era formado por aqueles com mais de três características de sono ruim, representando 8% do total de voluntários.

Quinze anos depois de responderem às perguntas pela primeira vez, esses participantes realizaram exames cerebrais, permitindo aos pesquisadores avaliar o nível de “atrofia cerebral” — uma perda de tecido cerebral que ocorre naturalmente com o envelhecimento, mas que pode estar associada a problemas cognitivos e doenças neurológicas quando é mais acentuada do que o esperado para a idade.

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Os resultados dos exames mostraram que o “grupo médio” tinha uma idade cerebral 1,6 ano mais avançada em comparação com o “grupo baixo”, enquanto o “grupo alto” apresentava uma diferença ainda maior, com uma idade cerebral média 2,6 anos mais avançada.

Entre os problemas de sono mais associados ao envelhecimento cerebral destacaram-se a dificuldade para adormecer, para manter o sono e o despertar precoce, especialmente em pessoas que enfrentaram esses problemas por todos os cinco anos de acompanhamento.

Para Clémence, os resultados são relevantes, pois a maioria das pesquisas sobre sono e saúde cerebral se concentra em adultos mais velhos, ignorando o longo (e muitas vezes silencioso) processo que leva a condições como o Alzheimer. Segundo ela, isso leva a uma visão limitada, em que os distúrbios do sono são tratados como consequência de doenças já estabelecidas, em estágios em que o cérebro já apresenta alterações significativas, mesmo sem sintomas aparentes.

“Ao analisar pessoas de meia-idade, a pesquisa evidencia que a qualidade do sono deve ser monitorada desde cedo, como forma de prevenir o surgimento ou a progressão acelerada de doenças neurodegenerativas, que tendem a se manifestar de forma mais evidente por volta dos 60 anos”, afirma.

Levar o sono a sério

A geriatra Claudia Suemoto, professora na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que não participou do estudo, concorda que a participação de pessoas de meia-idade fortalece a relevância dos resultados. “Com adultos na faixa dos 40 anos, temos uma visão mais precisa de como a qualidade do sono pode ser um fator de risco, e não apenas um sintoma”, opina.

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Em 2022, Claudia e uma equipe de pesquisadores da USP publicaram um estudo sobre sono no âmbito do ELSA-Brasil, pesquisa longitudinal sobre os adultos brasileiros, em que analisaram tanto pessoas de meia-idade quanto mais velhas. Na ocasião, eles usaram a polissonografia, exame que permite um diagnóstico mais preciso dos distúrbios do sono. “Uma das limitações do estudo americano é que as medidas de sono são autorrelatadas — a própria pessoa informa se dormiu bem ou não, se acordou no meio da noite, se demorou para pegar no sono. Isso compromete a objetividade das respostas, algo que a polissonografia pode corrigir”, observa Claudia.

“Mesmo assim, o estudo é bastante interessante, com um desenho raro: ele mede o sono em dois momentos distintos, no início e cinco anos depois, acompanhando as mesmas pessoas por 15 anos, o que é um período significativo. Esses achados reforçam os resultados da nossa pesquisa e evidenciam o impacto da qualidade do sono na saúde cerebral”, complementa.

A neurologista Dalva Poyares, do Instituto do Sono, também elogia o estudo, destacando o acompanhamento de 15 anos, o uso de ressonância magnética — um exame caro e, por isso, pouco comum em pesquisas — para monitorar o envelhecimento cerebral e o cuidado para que fatores comumente conhecidos por aumentar a probabilidade de demências, como hipertensão e diabetes, não influenciassem os resultados.

No entanto, ela concorda com Claudia que a ausência da polissonografia limita a confirmação dos dados autorrelatados. Além disso, impossibilita observar como problemas de sono específicos, como apneia, se comportam em relação ao envelhecimento cerebral.

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Outra fragilidade, diz Claudia, é que o estudo se baseia exclusivamente na população americana, o que desconsidera diferenças culturais e ambientais, bem como diversidade genética e níveis variados de desigualdade socioeconômica e acesso à saúde. Tudo isso, de acordo com ela, pode afetar os hábitos e a qualidade do sono. “Seria interessante replicar o estudo em outras populações, especialmente aqui no Brasil”, opina a geriatra.

Apesar das limitações, as especialistas reafirmam a relevância do estudo como evidência de que as noites bem dormidas devem ser levadas a sério, assim como outros hábitos de vida que previnem e melhoram quadros cognitivos.

“Embora ainda não exista cura para doenças neurodegenerativas, o estudo reforça a importância de se atentar à qualidade do sono, dando a ela a mesma relevância que a fatores já conhecidos há muito tempo por aumentar o risco de demências. Isso nos incentiva a olhar de forma mais cuidadosa para o hábito de dormir, especialmente na fase que antecede a velhice”, destaca Dalva.

Como melhorar a qualidade do sono?

Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) aponta que cerca de 72% dos brasileiros têm problemas para dormir. Em outras palavras, isso significa que mais da metade da população está sujeita a algum tipo de impacto na saúde, incluindo o envelhecimento cerebral antecipado. “O sono é frequentemente subestimado, mas é um dos principais agentes para garantir o equilíbrio do nosso corpo. Quando não dormimos bem, nossa saúde também não vai bem”, destaca a biomédica Monica Andersen, diretora do Instituto do Sono.

De acordo com Dalva, há diversas intervenções e tratamentos que podem ajudar a melhorar esse cenário, começando pela adoção de hábitos de vida mais saudáveis, o que inclui evitar o tabagismo e o consumo excessivo de álcool, e praticar atividade física.

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Vale ressaltar que um sono de qualidade não envolve só pegar no sono, mas também permanecer em descanso, sem interrupções. Para isso, Monica recomenda criar compromissos com o próprio corpo — de preferência, com horários estabelecidos.

“Não adianta ter a cama super confortável, usar o travesseiro da ‘Nasa’ e o ar-condicionado, se cada dia você dorme em um horário. O nosso cérebro fica confuso, o que atrapalha o sono”, ensina a especialista.

Por fim, elas recomendam adotar rituais antes de dormir, como fazer meditação ou ler um livro, e criar um ambiente ideal — evitando o uso de telas, mantendo o quarto escuro (favorecendo a produção de melatonina), silencioso e com uma temperatura mais baixa.

Embora essas medidas seja úteis, Dalva ressalta a importância de procurar orientação médica para problemas de sono mais graves e persistentes, como apneia ou insônia crônica (que ocorre ao menos três vezes por semana por, no mínimo, três meses).

Ela menciona ainda o distúrbio comportamental do sono REM (movimento rápido dos olhos), caracterizado por comportamentos anormais durante o sono, como gritar ou chutar. “Esse distúrbio, frequentemente confundido com o sonambulismo, tende a surgir após os 50 anos e pode ser um indicativo de doenças neurodegenerativas”, diz. “Por isso, deve ser levado a sério e tratado com acompanhamento médico, assim como os problemas de sono persistentes.”

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