Após dois anos focada em garantir o acesso do mundo inteiro às vacinas contra a covid-19 como diretora do consórcio Covax, a franco-vietnamita Aurélia Nguyen tem outro objetivo ousado para os próximos três anos. Agora como assessora executiva da Aliança Mundial para Vacinas e Imunização (Gavi), criada em 2000, ela planeja enfrentar o atraso vacinal global na imunização de rotina de crianças, especialmente aquelas que vivem abaixo da linha da pobreza e ainda não tomaram nenhuma dose.
“Não ter crianças protegidas significa aumento da mortalidade infantil”, alerta Aurélia, incluída na lista da revista Time das 100 pessoas que estão moldando o futuro, divulgada no auge da pandemia, em fevereiro de 2021. O plano da Gavi é investir US$ 2 bilhões no fortalecimento dos sistemas de saúde para reduzir o atraso vacinal global em 25% até 2025. Na entrevista a seguir, ela diz que é urgente fazer esforços para frear o aumento da mortalidade infantil pelo mundo e impedir que surtos de doenças evitáveis voltem a ocorrer.
A cobertura de vacinação obrigatória para crianças caiu em todo o mundo, dando origem a um ressurgimento de doenças fatais. Para a Gavi, quais são as razões dessa queda?
Obviamente, a enorme interrupção causada pela pandemia afetou a cobertura básica de vacinação, essa que acompanhamos pelos índices de imunização das doses da vacina contra difteria, tétano e coqueluche (DTP3) (um marcador de cobertura vacinal dentro dos países e entre eles). Agora, no mundo, passadas as piores ondas da covid, estamos vendo que a cobertura começa a se estabilizar, mas no ano passado ainda caiu 1 ponto porcentual no auge da pandemia. Em 2020, a queda havia sido de 4 pontos porcentuais. Na prática, quando você olha para essas porcentagens, elas representam muitas pessoas. Um ponto porcentual no ano passado significa que quase 600 mil crianças em 2021 não receberam vacinas básicas. Portanto, no total, temos 12,5 milhões de crianças nos 57 países que a Gavi apoia que estão sem vacinas. É óbvio o efeito da paralisação pela pandemia, mas há também as múltiplas prioridades que os países estão tendo que enfrentar nos últimos anos. Da perspectiva da Gavi, estamos tentando garantir que haja uma ênfase na recuperação da vacinação de rotina, particularmente nos grandes países. Estamos muito focados em fortalecer e identificar os países onde houve declínios para garantir que seus sistemas de saúde sejam atualizados e para entendermos exatamente onde as crianças estão sendo prejudicadas.
Quais os riscos evidentes para a saúde global quando vemos essa queda na cobertura vacinal de rotina?
Há uma série de riscos. Antes de tudo, as vacinas que apoiamos na Gavi são as vacinas contra doenças que mais causam mortes de crianças, como a doença pneumocócica ou a doença do rotavírus. Portanto, não ter crianças protegidas significa que aumento da mortalidade infantil. Outro risco é que a queda na cobertura vacinal de rotina aumenta a possibilidade de novos surtos, como já estamos vendo no momento com o sarampo, a febre amarela e a cólera, por exemplo. Isso ocorre principalmente porque as comunidades que não estão sendo alcançadas com a vacinação básica geralmente também sofrem com a falta da maioria das intervenções de saúde primária e podem não ter sequer acesso a água limpa.
Que estratégias a Gavi está adotando para ajudar a melhorar a cobertura vacinal de crianças nos países assistidos?
O nosso foco principal é manter, restaurar e fortalecer a imunização de rotina nos 57 países que a Gavi apoia. A Gavi atua para garantir que tenhamos uma visão muito específica dos países para ajudá-los a realizar a vacinação de rotina, certificando que tenham o financiamento certo de vacinas e também o apoio financeiro adequado aos seus sistemas de saúde. Essas são peças-chave. Também planejamos integrar a imunização de rotina com a vacinação contra a covid-19. Assim, conseguimos aproveitar o foco que os países estão tendo na vacinação contra a covid e garantir que essas pessoas possam trazer sua família e seus filhos para se vacinar contra o sarampo ou contra a poliomielite. A ideia é trazer programas integrados de vacinação para diferentes imunizantes, como também para outros serviços de Atenção Primária à Saúde. Isso é uma maneira importante de garantir que o que fazemos está centrado na comunidade, além de também ajudar a nos antecipar contra os surtos, porque estamos focando em populações que têm as maiores lacunas de imunidade.
Mesmo com os esforços da Gavi para a distribuição equitativa de vacinas, ainda há muita desigualdade no acesso à vacinação em todo o mundo. Quais são os maiores gargalos que a aliança enfrenta?
Se pensarmos na preparação e na prontidão para enfrentar surtos de forma geral, precisamos ter algum tipo de estrutura em que as doses de vacinas fornecidas aos países ricos sejam acompanhadas paralelamente às doses para países de baixa renda, e não primeiro um e depois o outro. E que você tenha o financiamento e a transparência necessários para garantir que a oferta global esteja sendo distribuída de maneira equitativa. É preciso também reconhecer que, em qualquer contexto, você terá populações muito vulneráveis em ambientes frágeis que precisarão de atenção especial e que não funcionam em sistemas baseados em Estados. Elas não funcionam dentro de sistemas governamentais. Assim, é um desafio importante ter essa visão para o contexto humanitário e construí-la em outra estrutura que permita que todos esses obstáculos financeiros e legais que serão enfrentados sejam superados.
Expediente
Reportagem | Alunos do 1º Curso Estadão de Jornalismo de Saúde: Aline Albuquerque, Ana Luiza Antunes, Beatriz Bulhões, Beatriz Leite, Camila Pergentino, Camila Santos, Fernanda Freire, Flávia Terres, Francielle Oliveira, Giovanna Castro, Guilherme Lara da Rosa, Guilherme Santiago, Isabel Gomes, Isabela Abalen, Iuri Santos, Kally Momesso, Katharina Cruz, Layla Shasta, Letícia Pille, Mariana Macedo, Matheus Metzker, Milena Félix, Pedro Miranda, Pedro Nakamura, Rafaela Rasera, Sofia Lungui, Stéphanie Araújo, Thais Porsch, Victória Ribeiro e Vitor Hugo Batista Coordenação e edição | Carla Miranda, Andréia Lago e Ítalo Rômany
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.