CASTRICUM, Países Baixos - Em breve, Irene Mekel precisará escolher o dia de sua morte.
Ela não está com pressa: gosta muito de sua vida numa casa elegante e arejada em Castricum, um vilarejo holandês à beira-mar. Ela tem flores no jardim e, na vizinhança, uma feira de rua onde os feirantes chamam os fregueses pelo nome. Mas, para que sua vida se encerre do jeito que ela quer, Mekel terá de escolher uma data, mais cedo do que gostaria.
“É uma tragédia”, diz ela.

Mekel, de 82 anos, tem Alzheimer. Foi diagnosticada um ano atrás. Ela está ciente de que sua função cognitiva vem declinando aos poucos e sabe muito bem o que está por vir: passou anos trabalhando como enfermeira e cuidou de sua irmã, que tinha demência vascular. Por enquanto, ela está conseguindo se virar sozinha, com a ajuda dos três filhos e de um telão no canto da sala de estar que eles atualizam remotamente para lembrá-la da data e dos compromissos.
Mas, em um futuro não muito distante, não será mais seguro ela ficar sozinha em casa. Mekel sofreu uma queda e quebrou o cotovelo em agosto. Ela sente que não pode morar com os filhos, que estão ocupados com a carreira e as próprias famílias. E está determinada a jamais se mudar para uma casa de repouso, pois acha que seria uma intolerável perda de dignidade. Como cidadã holandesa, Mekel tem, por lei, o direito de solicitar que um médico a ajude a pôr fim à sua vida quando chegar a um ponto de sofrimento insuportável. Foi assim que ela pediu uma morte medicamente assistida.
Em 2023, pouco antes do diagnóstico, Mekel participou de um workshop organizado pela Associação Holandesa para o Fim Voluntário da Vida. Ali, aprendeu a redigir um documento de solicitação antecipada explicando seus desejos, como as condições sob as quais ela solicitaria o que nos Países Baixos é chamado de eutanásia. Ela decidiu que será quando não conseguir mais conversar, reconhecer os filhos e netos ou morar na própria casa.
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Mas, quando a médica da família de Mekel leu o documento, ela disse que, embora apoiasse a eutanásia, não poderia proporcioná-la. Ela não fará isso para alguém que, por definição, perdeu a capacidade de consentir.
Um número cada vez maior de países em todo o mundo está legalizando a morte medicamente assistida. Mas, na maioria desses países, o procedimento está disponível apenas para pessoas com doenças terminais.
Os Países Baixos são um dos quatro países (além da província canadense de Quebec) que permitem a morte medicamente assistida por solicitação antecipada para pessoas com demência. Mas a ideia está ganhando força em outros lugares.

A população holandesa apoia fortemente o direito à morte assistida para pessoas com demência. Mas a maioria dos médicos do País se recusa a proporcioná-la. Eles acham que é pesado demais o fardo moral de pôr fim à vida de alguém que não tem mais capacidade cognitiva de confirmar sua vontade.
A médica de Mekel a encaminhou para o Euthanasia Expertise Center, em Haia, organização que prepara médicos e enfermeiros para oferecer eutanásia dentro dos parâmetros da lei holandesa e conecta os pacientes a uma equipe médica que investiga a solicitação e proporciona morte assistida a pacientes qualificados nos casos em que seus médicos se recusam a fazê-lo. Mas até mesmo esses médicos relutam em agir depois que a pessoa perde a capacidade mental.
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No ano passado, um médico e um enfermeiro do centro vinham a cada três meses para conversar e tomar chá com Mekel. Supostamente, estavam ali para debater suas escolhas para o fim da vida. Mas Mekel sabia que, na verdade, eles queriam monitorar a rapidez com que suas faculdades mentais declinavam. Podia parecer um chá da tarde, diz ela, “mas sei que eles estavam me avaliando”.
O médico Bert Keizer está alerta a um momento muito particular: o chamado “5 para 12″ – cinco minutos para a meia-noite. Médicos, pacientes e seus cuidadores tomam parte em uma delicada negociação para marcar a morte para o último momento antes de a pessoa perder a capacidade de afirmar claramente seu desejo racional de morrer. Ele só atenderá ao pedido de Mekel para pôr fim à sua vida enquanto ela ainda estiver plenamente consciente do que está pedindo.
Eles precisam agir antes que a demência a leve a pensar que sua mente está bem.
“É muito difícil encontrar esse momento”, afirma ele, “porque você, como médico, e ela, como paciente, não sabem ao certo qual é o prognóstico, como as coisas vão se desenrolar e, então, o mais angustiante de tudo isso é encontrar o momento certo para essa coisa terrível”.
Mekel acha essa negociação profundamente frustrante: o processo não admite que aceitar cuidados seja considerado uma forma de sofrimento, que a preocupação com o que está por vir seja sofrimento, que a perda da dignidade seja sofrimento. “De quem é a avaliação que deve pesar mais?”, ela se pergunta: da Irene Mekel de agora, que vê a perda de autonomia como algo insuportável? Ou da Irene do futuro, que tem demência avançada, que precisa de alguém para alimentá-la e vesti-la, que não está mais infeliz – ou pelo menos não consegue mais expressar que está infeliz?

Os médicos, que foram os principais responsáveis pela criação da lei holandesa sobre morte assistida, têm opiniões fortes sobre o que podem ou não podem fazer. O “5 para 12″ foi o compromisso pragmático que surgiu nos 23 anos que se passaram desde que o código penal foi emendado para permitir que os médicos ponham fim à vida em situações de “sofrimento insuportável e irremediável”.
“Meu pesadelo”
Ágil e pequenina, Mekel já suspeitava que sofria de Alzheimer antes mesmo do diagnóstico. Havia pequenos sinais inquietantes e, mais tarde, veio um sinal imenso: ela pegou um táxi para casa e não conseguiu reconhecer absolutamente nada na rua onde morou por 45 anos, não conseguiu identificar sua própria porta da frente.
Naquele momento, ela soube que estava na hora de começar a fazer planos.
Ela e sua melhor amiga, Jean, sempre falavam sobre como temiam a ideia de uma casa de repouso, de precisar de alguém para vesti-las, para tirá-las da cama pela manhã – o medo de ver seu mundo reduzido a um quartinho no fim do corredor.
“Quando você perde a vontade própria e deixa de ser independente, este é o meu pesadelo”, diz Mekel. “Eu me mataria, acho”.
O geriatra Pieter Stigter, que trabalha em casas de repouso e como consultor do Euthanasia Expertise Center, muitas vezes precisa explicar a pacientes ansiosos que suas diretivas antecipadas, redigidas com tanto cuidado, basicamente não têm validade nenhuma.
“A primeira coisa que digo a eles é: ‘Sinto muito, não vai acontecer’”, conta ele. “A morte assistida para pessoas sem autonomia mental não vai acontecer. Então, vamos falar sobre como evitar que as coisas cheguem a esse ponto”.
Os pacientes que cuidaram de pais e mães com demência muitas vezes especificam em suas diretivas antecipadas que não querem ficar acamados, incontinentes ou incapazes de se alimentar sozinhos.
A primeira linha que as pessoas escrevem na diretriz é sempre “Se eu chegar ao ponto de não reconhecer meus filhos”, diz ele. “Mas o que significa reconhecer? É saber o nome de alguém ou é abrir um sorriso quando essa pessoa entra no quarto?”
O 5 para 12 deixa o fardo dos médicos moralmente tolerável.
“Como médico, é você quem tem de fazer”, afirma Stigter, um homem de 44 anos, magro e caloroso. “Sou eu quem tem de fazer. Então preciso me sentir bem com isso”.
O que é tolerável?
Stigter nunca pega um caso achando que irá proporcionar uma morte assistida. O declínio cognitivo é algo fluido, afirma ele, assim como o que cada pessoa considera tolerável ou intolerável.
Mekel vive assombrada pelo que aconteceu com sua melhor amiga, Jean, que, segundo ela, “perdeu o momento” da morte assistida.
Embora Jean estivesse determinada a evitar esse desfecho, ela viveu em uma casa de repouso por oito anos. Mekel a visitou até que Jean ficou incapaz de manter uma conversa, mas continuou telefonando e enviando e-mails que os filhos de Jean liam para ela. Jean morreu na casa de repouso em julho, aos 87 anos.
Jean é o motivo pelo qual Mekel está disposta a planejar sua morte para mais cedo do que ela gostaria.
Mas Jos Van Ommeren, filho de Jean, não acha que Mekel compreenda muito bem o destino de sua amiga. Ele concorda que sua mãe temia a casa de repouso, mas, quando chegou lá, ela teve alguns anos bons, diz ele.

A maioria dos últimos anos foram bons, diz Van Ommeren, e para vivê-los, valeu a pena pagar o preço de abrir mão da morte assistida que ela havia solicitado.
Para Mekel, esse preço é intolerável.
Seu filho mais novo, Melchior, perguntou a ela, não muito tempo atrás, se uma casa de repouso seria uma boa opção, se, quando chegasse lá, ela não estivesse tão consciente de sua independência perdida.
Mekel lhe lançou um afetuoso olhar de desgosto.
“Não”, disse ela. “Não. Não seria”.
Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU