Casos como o da criança de 10 anos que engravidou após sucessivos abusos sexuais no Espírito Santo se repetem pelo Brasil. Dos 1.024 abortos permitidos por razões médicas entre janeiro e junho deste ano, 35 foram de meninas de até 14 anos, conforme a plataforma DataSus, do Ministério da Saúde. Em 2019, o total foi de 72 – média de um a cada cinco dias.
Se forem considerados também abortos espontâneos e outros tipos nesta faixa etária, o total de janeiro a junho deste ano é de 791 (quase metade, 340, no Nordeste, segundo o sistema TabNet, do DataSus. No ano passado, essa soma dá 1.871 (721 no Nordeste).
As meninas de até 13 anos são a maioria das vítimas de estupro – 53,8% dos casos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Significa que quatro menores de 14 anos são estupradas por hora no País. Assim como no caso capixaba, 75,9% das vítimas de todas as faixas etárias conheciam o agressor.
Outro levantamento do FBSP, que reúne 127.585 boletins de ocorrência de 2017 e 2018, mostra que 26,8% dos estupros são de meninas de até 9 anos, ante 28,6% entre as de 10 a 13 anos. Ao todo, 63,8% dos casos são considerados estupros de vulnerável – de menores de 14 anos ou pessoas consideradas juridicamente incapazes de consentir ou oferecer resistência.
Coordenadora institucional do FBSP, Juliana Martins diz que o cenário é grave e o número pode ser mais alto. “Os crimes de violência sexual são subnotificados”, diz. “Vimos que, na pandemia, a violência contra mulheres aumentou. Muito provavelmente a violência contra meninas, que estão confinadas com seu agressor, aumentou também”, diz. “Os dados mostram a casa é o lugar de maior vulnerabilidade para mulheres e meninas, onde sofrem a maior parte da violência.”
Segundo ela, informações sobre o tema deveriam ser mais detalhadas e, por vezes, ainda demonstram erros de classificação. No levantamento citado do FBSP, por exemplo, 5 mil registros de estupros de menores de 14 anos não estavam classificados como de vulnerável, crime com pena de reclusão maior.
“Quando você vai olhar microdados da dinâmica da violência, de quem é o agressor, a relação do autor com a vítima, nem todas essas informações constam nos registros. Se melhorar esses dados, a gente consegue melhorar as políticas de prevenção para essas violências.”
Interrupção da gravidez após estupro de criança não exige medida judicial
Coordenadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Josiane Veronese destaca que o Código Penal autoriza o aborto em caso de estupro ou de risco à vida da gestante sem haver a necessidade de autorização judicial (a jurisprudência também permite em casos de fetos anencéfalos). É necessária só a anuência do representante legal da vítima.
A advogada procuradora aposentada Luiza Nagib Eluf critica a movimentação de conservadores que foram ao hospital, no Recife, em que ocorreu o aborto da criança capixaba. Equipes médicas chegaram ser hostilizadas. “Podem fazer muita pressão e atrasar o procedimento, prejudicando a criança gestante. É desumano desprezar os direitos da mulher e da menina.”
Silvana Quintana, coordenadora científica de obstetrícia da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo, explica que a gravidez até 14 anos é de alto risco. “O organismo ainda está em amadurecimento biológico, do ponto de vista genital, do útero, da cavidade vaginal, do ponto de vista do organismo, sistêmico”, afirma.
“Tem maior possibilidade de agravo à saúde materna. Pode ter pressão alta, diabete, um parto pré-termo (prematuro).” E, de acordo com ela, o procedimento não pode ser protelado. “É importante fazer o diagnóstico precoce desses casos e interromper o mais rapidamente possível, porque é menos dramático e não expõe ao risco.”