Valdecir Lopes tinha apenas um ano e meio quando foi diagnosticado com retinoblastoma, um câncer raro, no olho esquerdo. Justamente por não se tratar de um câncer comum, o diagnóstico demorou para acontecer, o que resultou na necessidade de remoção do globo ocular, pálpebra e tecidos ao redor do olho. “Naquela época, a medicina era muito diferente. Quando você tinha um tumor, simplesmente amputavam a parte afetada. Foi o que fizeram comigo”, lembra o administrador, hoje com 47 anos.
Depois disso, Lopes buscou formas de se “proteger” dos olhares de outras pessoas. Tampões oculares e óculos escuros, por exemplo, tornaram-se recursos importantes no dia a dia. “Eu nunca fui de me expor. Sempre utilizei algum recurso para me proteger e fazer as coisas de uma maneira menos constrangedora”, afirma. “É curioso que, na infância, as coisas pareciam menos difíceis. Eu só lembrava da minha deficiência quando me olhava no espelho. Conforme fui crescendo, esse foi deixando de ser o único lembrete.”
Nos anos 1970, quando Lopes passou pela cirurgia de remoção do tumor, as próteses oculares já eram uma realidade — mas, claro, com tecnologias mais simples do que as atuais. Aos 4 anos, ele chegou a tentar uma dessas soluções: uma prótese ocular anexada aos óculos. “A prótese não era grudada no rosto, ela ficava presa em uma das lentes. Assim, quando eu usava, um lado mostrava o olho saudável e o outro, a prótese. Mas não era legal, uma prótese colada nos óculos… Tinha um desconforto envolvido. Então, não consegui usar por muito tempo”, recorda.
Se ainda hoje faltam orientações adequadas sobre esse tipo de caso, há 30 anos nem se fala. Durante a adolescência e o início da vida adulta, o administrador empreendeu uma busca — frustrada — por possibilidades em diferentes unidades de saúde, incluindo hospitais especializados no tratamento de câncer. O que descobriu, aos 20 anos, foi que não bastaria uma prótese. Seria necessária uma cirurgia de reconstituição facial para que os modelos de próteses ajustáveis ao rosto pudessem ser utilizados.
“Até então, eu não tinha a mínima noção sobre as particularidades do meu caso. Ficava buscando soluções que pudessem melhorar a aparência, mas sem ter as informações necessárias”, diz Lopes, que aos 22 anos passou pela cirurgia de reconstituição. “Foi uma cirurgia agressiva, com um pós cirúrgico muito doloroso, sem qualquer acompanhamento psicológico. Além disso, o resultado não foi o esperado. Por isso, desisti de continuar o processo e decidi que continuaria vivendo como já estava habituado, sem prótese.”
Para Leila Queiroz, de 48 anos, o caminho foi diferente. Diagnosticada com câncer na gengiva há cinco anos, ela precisou lidar não só com as complexidades da condição, mas também com uma mudança repentina na aparência e na relação com o outro. Leila descobriu o tumor após meses lidando com sangramentos recorrentes e dentes que, de forma involuntária, começaram a amolecer na parte superior da boca.
“Fiz uma série de exames que não apontavam nada e, como eu não sentia dor, fiquei em acompanhamento”, conta Leila. “Um tempo depois, as dores começaram a aparecer. Não conseguia tomar um café, para ter ideia. Fiz a biópsia e, num piscar de olhos, estava na mesa de cirurgia. O câncer já estava tão avançado que precisei tirar uma parte grande da gengiva e do palato”, lembra a auxiliar administrativa de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.
A reviravolta, difícil e dolorosa, só pôde ser encarada pelo apoio da mãe e dos dois filhos. “Quando recebi o diagnóstico, me desesperei. Mas depois levantei a cabeça e pensei: ‘Se é para tratar, vou tratar, seja como for’”, recorda. “Não se trata só da cirurgia em si. É uma reestruturação de vida, de imagem, que atravessa também aqueles que convivem com a gente”, diz Leila, que também precisou passar por 33 sessões de radioterapia e sete de quimioterapia.
No caso dela, a prótese foi necessária logo após a cirurgia. Ela explica que o dispositivo é essencial para tarefas básicas, como mastigar, e naquele momento foi importante para impedir outras possíveis alterações na face. “O dentista que descobriu o tumor fez uma prótese. Era a ideal? Com certeza não, mas foi o que pude pagar. O material era bem pesado e não tinha uma naturalidade, mas ajudou a preservar o meu rosto, que poderia ter afundado sem esse suporte.”
Apesar das diferenças, as histórias de Lopes e Leila se cruzam em um endereço: o prédio do Instituto Mais Identidade, na capital paulista. A organização sem fins lucrativos atua na reabilitação de pessoas com alterações faciais causadas por cânceres, traumas ou doenças congênitas e oferece próteses 3D gratuitas.
Desde que iniciou suas atividades, em 2015, a equipe multidisciplinar da ONG, com assistente social, psicólogo, fonoaudiólogo e fisioterapeuta, realizou mais de mil atendimentos e forneceu próteses 3D para cerca de 200 pessoas, entre elas Lopes e Leila.
A tecnologia das próteses foi desenvolvida por brasileiros como o designer digital Cícero de Moraes, com pesquisas em reconstituição forense, e o cirurgião bucomaxilofacial Luciano Dib, diretor do instituto.
A técnica utiliza a câmera de um celular para tirar uma série de fotos padronizadas e capturar a anatomia do paciente, uma abordagem que facilita a inclusão de pessoas de outras cidades. As imagens são então processadas por um software gratuito, que cria uma digitalização em 3D do rosto. Posteriormente, esse modelo é impresso em materiais como silicone ou resina. “Com isso, conseguimos fazer uma espécie de ‘copia e cola’ do lado saudável da face, garantindo maior naturalidade”, explica Dib.
O cirurgião conta que os scanners usados na fabricação de próteses digitais costumam ser muito caros e que o grupo buscou criar um modelo acessível, com maior resolução. “É um bom exemplo de como a tecnologia pode ser usada para reduzir custos e melhorar a qualidade de vida”, afirma.
O contato com o trabalho do instituto foi o que levou Lopes a tentar sua segunda prótese, dessa vez sem necessidade de intervenções cirúrgicas. O processo, iniciado há quatro meses, tem sido acompanhado pela equipe de saúde mental da ONG e envolve diversas mudanças. Lopes destaca duas: ser visto com mais dignidade e reconhecer-se enquanto pessoa com deficiência.
“O tempo fez com que eu me acostumasse com o meu rosto do jeito que ele é. Fui me habituando com os olhares, com os comentários… Diferente de alguém que, após perder uma parte do rosto, recebe uma prótese e, de certa forma, retoma uma versão já conhecida de si mesmo”, afirma o morador de Cotia, na região metropolitana de São Paulo.
“Eu percebi que minha deficiência era maior do que imaginava”, avalia o administrador. “Vamos supor: uma ida ao salão para cortar o cabelo. A exposição era muito grande. Mas, com a prótese, isso mudou. Ela me mostrou aquilo que eu não conhecia: que as coisas podem ser mais leves, suaves e dignas.”
Leila também menciona mudanças. Embora já utilizasse próteses, ela afirma que receber o item produzido pela ONG fez com que sua relação com o espelho melhorasse “110%”. “Não só pelo material, que é bem mais leve, mas também pela naturalidade”, diz.
“Quando eu usava as próteses anteriores, as pessoas não me reconheciam. Também pela perda de peso causada pela quimio. E não falo só de pessoas distantes, que via de vez em quando, mas pessoas próximas, do meu convívio. Já aconteceu até com familiares. É fácil? Nem um pouco, mas busquei manter a cabeça erguida. Sempre fui assim, escancarada e muito disposta a encarar de frente”, conta, entre risadas.
Gargalos
Para Dib, existe uma demanda reprimida por prósteses, especialmente as faciais. “Nos hospitais públicos, as pessoas conseguem passar pela cirurgia de remoção de câncer, quimioterapia, radioterapia, mas depois que termina o tratamento, falam ‘parabéns, você está curada’. Aí a pessoa diz: ‘Como assim, curada? Tem um buraco na minha face’.”
Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), a estimativa é que surjam 39.550 novos casos de câncer de cabeça e pescoço no País em 2024, considerando tumores nos olhos, boca, lábios, gengiva, língua, tireoide e laringe. Todas essas condições podem ocasionar intervenções faciais. Por outro lado, apenas dois projetos de próteses são apoiados pelo Ministério da Saúde. Um deles é justamente o Instituto Mais Identidade, por meio do Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência (Pronas/PCD).
“Uma prótese pode custar, em média, de R$ 50 mil a R$ 100 mil, isso desconsiderando manutenção, pós-operatório e possíveis complicações”, afirma Dib. “Se a pessoa tem dinheiro ou a sorte de ter um convênio que cobre esse tipo de procedimento, ela vai colocar. Agora, aquele que não pode pagar fica abandonado, totalmente à margem.”
Mesmo no setor privado há dificuldades, segundo o cirurgião. No Brasil, são os dentistas que assumem a responsabilidade por procedimentos como a produção e colocação de próteses faciais, utilizadas geralmente quando as cirurgias de reconstituição não são indicadas. Contudo, o alto custo dos materiais e a necessidade de treinamento especializado tornam o trabalho pouco rentável e, por vezes, desconhecido.
“Depois que fiz a cirurgia de remoção do câncer, precisei passar por laserterapia na boca — algo que saiu do meu bolso. E mesmo na saúde privada os profissionais sequer sabiam da possibilidade de se usar prótese em casos como o meu”, conta Leila. “Tive sorte de cair com os profissionais certos. Agora, se isso não acontece, só com a sorte de ter algum parente ou conhecido que já tenha visto ou trabalhe com esse tipo de caso”.
‘Necessidade estética’
Conforme explica a psicóloga Vitória Bernardes, conselheira no Conselho Nacional de Saúde — órgão responsável por deliberar e fiscalizar ações do Ministério da Saúde —, a deficiência não se baseia apenas nas condições físicas, mas também na forma como o diagnóstico afeta o indivíduo.
“De forma resumida, deficiência é restrição de participação”, destaca Vitória, citando o Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015, e sua própria experiência. “Por causa de uma lesão na coluna, não posso caminhar mais. Isso, por si só, não é deficiência. A deficiência reside no fato de que, por eu não caminhar mais, os espaços não estão preparados para minha participação”.
No caso de pessoas que passaram por intervenções faciais, como Lopes e Leila, não se pode afirmar categoricamente que se trata de uma deficiência — é necessário considerar a vivência individual. “Só a própria pessoa, com base em sua experiência, pode definir isso. Mas, se ela enfrenta barreiras para conseguir trabalho por causa da aparência, teve sua fala ou visão afetadas ou evita sair de casa por não se sentir aceita, então, sim, isso pode se encaixar na definição”, afirma a psicóloga.
Para Vitória, embora o País tenha avançado na legislação ao adotar a avaliação biopsicossocial para identificar pessoas com deficiência, o processo de regulamentação ainda é lento. A teoria existe, mas falta estrutura para que ela seja aplicada de forma ampla. Esse gargalo, de acordo com ela, não só dificulta o mapeamento, como também invisibiliza a realidade dessas pessoas, dificultando o desenvolvimento de políticas públicas eficazes.
“Afinal, onde estão essas pessoas? Quantas são? Esse desconhecimento abre uma brecha conveniente para que o Estado não avance nas mudanças necessárias. E mais: se afirmamos que saúde é um direito, mas a maioria das pessoas que consegue prótese são aquelas que têm dinheiro, então estamos tratando saúde como mercadoria”, critica.
Na opinião de Dib, a sociedade e as autoridades ainda não compreenderam o desafio enfrentado por pessoas que sofreram intervenções faciais. “Muitas vezes, vamos conversar com políticos e eles dizem: ‘Nossa, nunca soube que isso existia’. E eu respondo: ‘Nunca soube porque a maioria dessas pessoas está escondida, não sai de casa.”
Para ele, a reabilitação precisa ser encarada como parte do tratamento de saúde, tanto pelo poder público quanto pelos planos de saúde. “Muitos convênios vão negar o atendimento considerando que isso é estético ou que não faz parte do rol de atendimento”, lamenta. Para Lopes, a questão não deixa de ser estética, mas vai além disso. “Estética não é só melhorar o que já está bom. Ela pode trazer aquela parte que falta. Então eu diria que é mais do que estética, é uma necessidade estética.”
O que diz o Ministério da Saúde?
O Ministério da Saúde diz que não possui dados específicos sobre a população que necessita de próteses faciais. O órgão afirma que, por meio do Pronas/PCD, apoia políticas voltadas a pessoas com deficiência e pacientes oncológicos, ampliando a oferta de serviços médico-assistenciais, promovendo o treinamento de profissionais de saúde e incentivando pesquisas clínicas e epidemiológicas.
No âmbito da reabilitação, incluindo tecnologias assistivas como próteses, a pasta afirma que os dois projetos que apoia “beneficiam mais de 4,5 mil pessoas por ano e contam com um investimento total de R$ 2,5 milhões para assistência a pacientes com deformidades faciais”.
Além do Pronas, o Instituto Mais Identidade conta com o apoio de doadores privados e pessoas físicas. A Universidade Paulista (Unip), por exemplo, cede espaço no laboratório e disponibiliza impressoras 3D para a confecção das próteses. O financiamento via Pronas, diz Dib, está previsto para terminar ainda neste ano, e foi submetido um pedido de renovação. “Se não for aprovado, teremos que reduzir o número de atendimentos até conseguirmos novos aportes. Caso contrário, nossa meta para 2025 é atender 200 novos casos, além de continuar o acompanhamento dos pacientes já tratados.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.