BRASÍLIA - No ano de 2023, a unidade do Sistema Único de Saúde (SUS) voltada para o atendimento dos indígenas do Território Indígena (TI) Yanomami, em Roraima, jogou fora centenas de milhares de medicamentos que estavam vencidos ou que tinham as suas embalagens danificadas. De acordo com um especialista ouvido pelo Estadão, o descarte em massa dos fármacos pode configurar um crime por falta de planejamento com o tratamento dos indígenas.
Ao Estadão, o Ministério da Saúde afirmou que herdou do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estoques de medicamentos “sem tempo hábil para distribuição e uso”. A pasta disse também que busca reestruturar as políticas de saúde indígena “evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade”. (leia a nota completa no final da reportagem)
Conforme revelado pelo Estadão nesta quinta-feira, 29, o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-YY) descartou ao menos 257 mil medicamentos ao longo de 2023. Entre os fármacos desperdiçados, estão 1.690 unidades de Paxlovid, um antiviral para combate à covid-19, vendido a quase R$ 5 mil a caixa – no mercado, a quantidade descartada sairia a quase R$ 250 mil. Também foram descartados outros insumos, como milhares de testes rápidos de coronavírus e de HIV / Aids.
As drogas com maior quantidade descartada pelo DSEI-YY são a ivermectina (até 48.228 comprimidos) e a cloroquina (até 12.580). Os medicamentos foram apostas do governo Bolsonaro para o combate à pandemia de covid-19, embora não exista comprovação da efetividade delas no tratamento da doença. A cloroquina é também usada no tratamento da malária, doença prevalente na região.
Nesta última quinta-feira, 22, dados do Ministério da Saúde (MS) obtidos pelo site Poder360 mostraram um possível aumento da mortalidade dos Yanomami no primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foram 363 óbitos em 2023, ante 343 em 2022 – uma alta de 5,8%. A pasta nega, e diz que há subnotificação das mortes do último ano da gestão de Bolsonaro.
Falta de planejamento pode ter causado desperdício
Ao Estadão, o professor emérito da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Gerson Pianetti afirmou que o descarte massivo dos medicamentos sugere uma “falta de planejamento” e “irresponsabilidade” por parte dos gestores.
“Tudo isso se chama planejamento, um planejamento responsável para evitar que um medicamento que custa tanto para ser preparado se perca por uma bobagem dessa, de não cuidar devidamente como deveria ser feito”, disse Pianetti.
O especialista, que atuou no Ministério da Saúde na década de 1980, explicou que os agentes da saúde pública costumam trocar os medicamentos com outros municípios quando o prazo de validade está próximo, sendo essa uma prática feita para evitar o desperdício dos produtos. Segundo Pianetti, o descarte em massa pode acarretar em crime de saúde pública pelo prejuízo no tratamento dos indígenas, e também um delito ambiental por conta da contaminação do terreno em que os fármacos foram despejados.
“É uma questão muito grave. São medicamentos que estão fazendo falta no tratamento das pessoas e isso se configura, para mim, um crime. Não se sabe também como esses medicamentos estão sendo descartados, então pode até se configurar um crime ambiental também por conta da contaminação do terreno”, afirmou Pianetti.
Segundo o professor emérito da UFMG, o descarte de medicamentos que tiveram a embalagem danificada também pode revelar irregularidades no planejamento da DSEI-YY. De acordo com Pianetti, as caixas de medicamentos podem sofrer alterações internas quando são armazanadas em locais impróprios, principalmente com exposição ao sol e a umidade.
“Se os medicamentos chegam na secretaria de Saúde estadual e não tem um local adequado de armazenamento com temperatura e umidade controladas, você está forçando esses medicamentos a se deteriorarem”, explicou o especialista.
Leia a nota do Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde informa que, no início de 2023, a atual gestão se deparou com um cenário de crise humanitária do povo Yanomami causado pela desassistência e desestruturação da saúde indígena nos últimos anos. A Pasta também herdou estoques de medicamentos sem tempo hábil para distribuição e uso, comprados sem critérios ou planejamento. Desde então, o Ministério está reestruturando as políticas de saúde indígena e retomou a gestão dos estoques, evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade.
Desde o início da operação de emergência no território, todos os medicamentos e insumos necessários para salvar vidas são utilizados pelas equipes de saúde. Não há falta de medicamentos ou insumos para assistência dessa população. Os medicamentos que foram comprados nos anos anteriores e estavam com a data de validade próxima do vencimento, foram descartados.
Para mitigar a perda de insumos, o Ministério instituiu, em 2023, um comitê permanente para monitorar a situação e adotar ações emergenciais como pactuação junto aos estados, municípios e DSEIs para racionalizar a distribuição do estoque atual, dando prioridade aos itens de menor prazo de validade.
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