Evolução das tecnologias que se conectam com o cérebro levanta debates sobre neurodireitos

Temas como privacidade mental, identidade pessoal e livre-arbítrio entram em pauta diante do avanço de técnicas, mas não têm consenso entre especialistas

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Foto do author Roberta Jansen

Um estudo feito na Universidade de Tubingen, na Alemanha, publicado no início deste ano, mostrou, pela primeira vez, que um homem de 36 anos em estágio avançado de esclerose lateral amiotrófica (ELA) conseguiu comunicar-se por meio do pensamento. Ele não é capaz de mover nenhum músculo do corpo, mas foi capaz de manifestar intenções com a ajuda de um implante cerebral. Sim, ainda que de forma rudimentar, a tecnologia já permite “ler” pensamentos.

Associada à inteligência artificial, a evolução da neurotecnologia vem ocorrendo de forma muito rápida, o que levanta importantes questões éticas e de direitos humanos. Por exemplo, nós temos direitos aos nossos pensamentos? O que acontece se alguém manipular nossos pensamentos? Esses são apenas alguns dos questionamentos que começam a surgir junto com as novas tecnologias. Pesquisadores têm alertado para a urgência de um debate ético-jurídico e para a criação dos neurodireitos.

Exposição "Cerebro", realizada no Porão das Artes na Bienal , Ibirapuera, São Paulo. Foto: Ernesto Rodrigues/AE (04/08/2009)

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Um grupo da Universidade Columbia (EUA) tem impulsionado a proposta para a criação dos neurodireitos: direito à privacidade mental, direito à identidade pessoal, direito ao livre-arbítrio, igualdade de acesso à tecnologia, proteção contra discriminação. O Chile foi o primeiro país do mundo a consagrar a proteção dos neurodireitos em sua Constituição, com esses cinco princípios básicos. No Brasil, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) já tem um Laboratório de Neurodireito.

“Estamos nos encaminhando para uma direção em que é possível interferir no cérebro”, afirma o neurocientista Roberto Lent, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Instituto D’Or. “Isso pode ser uma coisa do bem, como uma alternativa terapêutica, ou uma coisa do mal, como interferir no pensamento das pessoas, em sua liberdade mental”, avalia.

Não é que a tecnologia disponível seja capaz de ler pensamentos e interferir na mente das pessoas. O estudo alemão foi feito com um único paciente que, antes de ficar totalmente paralisado, já havia treinado com os médicos a relação entre a movimentação dos olhos e determinadas palavras.

Implante Cerebral

O homem também tinha um implante cerebral. Na verdade, esse dispositivo conseguia decifrar por meio das ondas cerebrais a intenção do movimento dos olhos previamente treinado – ainda que o movimento em si já não mais acontecesse.

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Ou seja, embora a possibilidade de leitura de mente esteja longe da realidade cotidiana, já existe, definitivamente, um caminho aberto.

“Há várias discussões em que o direito ficou atrasado e não foi capaz de acompanhar as mudanças quando se depara com elas”, destaca o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP). Entram em pauta questões como os direitos à privacidade mental, à identidade pessoal e ao livre-arbítrio; possibilidade de interferência no cérebro não é consenso entre especialistas do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.

“Quando os carros chegaram, nossas leis eram apenas para carroças; agora, os carros autônomos já estão aí e não temos legislação para isso. Então, acho que esse tipo de discussão é muito válida. Mesmo que muita coisa acabe sendo descartada, é possível adiantar tantas outras”.

Para Dourado, a ideia da proteção à privacidade mental é relevante, bem como o acesso</CW> equitativo ao incremento cognitivo. Não se trata de pessoas controlando sua mente a distância, ressalva, como num filme de ficção científica. Mas, por exemplo, a detecção de determinados gostos pode ser usada na propaganda, como acontece atualmente com nossos dados pessoais.

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“Hoje usamos drogas legais e ilegais para aumentar a nossa capacidade cognitiva, como o café e a cocaína, por exemplo”, diz Dourado. “A partir do momento em que isso puder ser feito sem droga, com tecnologia, se todos não tiverem acesso igual, há o risco de criarmos uma casta de super-humanos. São apenas exemplos de como esse debate antecipado é importante.”

Professor de Direito da UFMG e especialista em novas tecnologias, Renato Cardoso concorda com o colega. “Muitas pesquisas tentam detectar pensamentos e há vários graus de ceticismo sobre isso, tem gente que acha que é apenas uma questão de tempo para que isso aconteça e tem gente que acha que é ficção científica”, observa.

“O fato é que hoje temos uma tecnologia de ressonância magnética que permite ver o cérebro funcionando. Até pouco tempo atrás, o cérebro era uma caixa-preta, que só podia ser visto depois da morte do sujeito. Ainda estamos longe desse nível de tecnologia capaz de ler pensamento, mas se as tecnologias começarem a se desenvolver mais, temos de pensar em formas de garantir que a privacidade mental não seja devassada por um Estado autoritário, por exemplo.”

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Reducionismo

Professor de filosofia do Direito da UFMG, Andytias Mattos questiona a noção do neurodireito. “A discussão do neurodireito passa pela ideia de que o cérebro é uma entidade independente do ambiente em que a pessoa está inserida. Acho que a abordagem é reducionista, deixa de lado a complexidade humana. Mas esse é um velho sonho da psicologia; entender que temos algo semelhante a uma alma, que pode ser medido, controlado, que pode ser um objeto da ciência”, aponta o especialista. “Por exemplo: o que leva um sujeito a cometer um crime? Dizer que é uma relação de alguns neurotransmissores me parece uma simplificação excessiva de uma questão social muito mais complexa. Muitos processos que acontecem em nível inconsciente são processos sociais, que se constroem a partir de fatores políticos, econômicos.”

Cérebro-máquina

O neurocientista Miguel Nicolelis, da Universidade Duke, nos EUA, um dos pioneiros no desenvolvimento de interfaces cérebro-máquina, também tem uma visão crítica sobre os neurodireitos. “Estamos à beira de poder interferir na mente humana’, dizem. Ora, a mente humana é influenciada desde sempre, a mídia influencia muito mais a mente humana do que qualquer tecnologia neuronal disponível atualmente”, afirma Nicolelis. “Não existe nenhum risco, neste instante, de alguém extrair nossos pensamentos. O fato de a internet estar surrupiando nossos dados é muito mais perigoso.”

Para Nicolelis, a discussão é prematura. Segundo ele, a ciência consegue ler sinais elétricos cerebrais que contêm informações motoras por meio de métodos invasivos, como implantes. Ou seja, é possível extrair comandos motores e mandar mensagens simples de volta ao cérebro. Mas memórias, emoções, visões de mundo, filosofia de vida são muito mais complexas do que um comando motor, pontua, e envolvem um número imenso de neurônios.

“Uma transmissão feita por uma rádio AM levou ao genocídio de Ruanda, não seria importante regular o discurso de ódio no YouTube? Quantos indivíduos disseminaram fake news durante a pandemia e qual a regulamentação disponível sobre isso? Essas práticas mataram muita gente”, aponta o neurocientista. “Algumas coisas soam elegantes, viram moda, mas quando vamos olhar de perto, têm pouca substância. Há 20 anos transmitimos dados cardiovasculares de pacientes pela internet, por exemplo. Devemos então ter os direitos do coração também?”

Nicolelis se dedica atualmente ao estudo das redes cerebrais (brain nets, em inglês), em que os sinais de vários cérebros se combinam em torno de um objetivo comum, funcionando como se fossem um único supercérebro.

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“Desde o paleolítico, quando aprenderam a caçar em grupo, os homens sincronizam seus cérebros. E é por isso que conseguimos caçar animais enormes, muito mais fortes. Evoluímos para atuar em grupo”, explica. “Da mesma forma, quando um time de futebol joga, os cérebros dos jogadores estão sincronizados. Recentemente, vimos que um quarteto de música, quando toca junto, forma um hipercérebro, como se fosse um único sistema nervoso coletivo.”

A ideia, agora, é usar as interfaces cérebro-máquina de forma a permitir que mais de um indivíduo colabore, formando uma rede cerebral, com várias pessoas colaborando.

“A gente já consegue fazer isso no laboratório, por exemplo, usando a atividade elétrica de vários macacos, sincronizada, para realizar uma atividade social comum”, contou. “Na prática, isso pode ser usado, por exemplo, para melhorar o treinamento de pacientes neurológicos. Se unirmos na mesma rede um paciente paraplégico e um fisioterapeuta, o paciente vai aprender muito mais rapidamente.”

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