Dia desses, o clínico geral Luís Fernando Correia levou um susto ao ler na rede social Bluesky que o governo americano estava disseminando a gripe aviária através de drones. Reação parecida teve a pediatra Isabella Ballalai ao ouvir de uma mãe: “Doutora, qual é a marca de vacina que tem menos metal?”. Das muitas “bizarrices” que já leu na internet e ouviu em consultórios, o cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto destaca o “detox do fígado”.
Quando recebem uma mensagem de origem duvidosa ou leem uma postagem com conteúdo suspeito, Correia, Isabella e Neto verificam a fonte, analisam o teor, conferem a autenticidade. “Médicos sérios explicam os riscos e os benefícios de cada tratamento. É preciso desconfiar de fórmulas mágicas e receitas infalíveis que curam tudo e não têm efeitos colaterais”, resume Ben-Hur.
Mas não é todo mundo que pensa assim. A pesquisa A Global Study on Information Literacy, realizada em 2022 com 8.585 pessoas de sete países, incluindo o Brasil, revelou que 43% dos internautas não se dão ao trabalho de checar a data da publicação, consultar agências de checagem ou pesquisar outras fontes quando veem algo suspeito na internet – eles simplesmente passam a informação adiante. Muitas vezes descobrem, dias depois, que a notícia compartilhada é falsa.
É assim que nasce uma infodemia. O termo, derivado do inglês infodemic, não é novo. Foi usado pela primeira vez pelo jornalista David Rothkopf no artigo When the Buzz Bites Back (Quando o burburinho contra-ataca, em tradução livre), publicado na edição de 11 de maio de 2003 do jornal The Washington Post para descrever a epidemia de informação que assustou a população mundial por causa da síndrome respiratória aguda grave (Sars) – o quadro matou 774 pessoas em 26 países naquele ano. “O pânico leva as pessoas a compartilharem informações”, explica Isabella, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). “Muitas não são verdadeiras.”
No começo da pandemia de covid-19, a Unesco, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para educação, ciência e cultura, criou outro termo: desinfodemia. Desinformação é toda e qualquer informação falsa criada com um único objetivo: enganar quem a lê, vê ou ouve.

Na cartilha Desinformação sobre Saúde: Vamos Enfrentar Esse Problema?, uma parceria da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com a Universidade Federal Fluminense (UFF), notícia falsa é comparada a um vírus. “Uma vez contaminada, é mais difícil de tratar. Assim como em qualquer doença, a prevenção é o melhor remédio”, diz o texto.
Para evitar o contágio, profissionais da saúde dão dicas: “Fuja dos influenciadores. Eles dão respostas fáceis para problemas complexos”, adverte Correia. “Fake news levam as pessoas a tomar decisões erradas e, em alguns casos, até morrer.”
A “mãe de todas as fake news”, nas palavras do pediatra Daniel Becker, partiu de um médico: o inglês Andrew Wakefield. Em 1998, ele publicou um artigo na revista The Lancet sugerindo, a partir de um estudo com 12 crianças, a suposta relação entre a vacina tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) e o autismo.
Em 2004, o jornalista britânico Brian Deer escreveu uma matéria no jornal The Sunday Times desmascarando uma das maiores fraudes da história da ciência mundial: Wakefield havia manipulado os dados dos pacientes por interesses próprios. Deer contou esse episódio ao Estadão em 2018, durante visita a São Paulo. Quatro anos depois, a Lancet publicou uma retratação.
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Antigamente, só a tríplice viral, por causa do artigo fraudulento de Wakefield, era motivo de desconfiança e preocupação. Hoje, todos os imunizantes, sem exceção, são acusados de causar problemas.
Diz-se por aí que, dependendo da versão, as vacinas podem monitorar as pessoas via microchips ou até mesmo causar um infarto. São tantas as mentiras que o Instituto Butantan, o maior produtor de vacinas da América Latina, criou uma página onde separa o que é falso do que é verdadeiro: são 97 fakes para 49 fatos.
Não à toa, notícias falsas têm 70% mais chances de viralizar do que as verdadeiras. É o que diz o estudo The Science of Fake News, realizado em 2018 pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês).
“A decisão de não vacinar causa não só um dano pessoal, para aquela pessoa ou família, mas para a sociedade como um todo porque aumenta a circulação de doenças já controladas”, explica a microbiologista Natalia Pasternak, professora da Universidade de Columbia (EUA) e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC). “Vacinação é um pacto coletivo. Ao me vacinar, me protejo e protejo a comunidade. Quando esse pacto é quebrado, o estrago pode ser enorme.”
Por essas e outras, o Brasil enfrentou, desde 2016, sucessivas quedas na cobertura vacinal. Segundo o Observatório da Atenção Primária à Saúde, em 2021, atingimos a menor cobertura em 20 anos – a média nacional ficou em 52,1% e o País chegou a entrar para a lista dos 20 com mais crianças não vacinadas do mundo, ocupando o sétimo lugar.
O cenário começou a mudar em 2023, quando o governo federal lançou o Movimento Nacional pela Vacinação. Em dezembro, o Ministério da Saúde divulgou o crescimento na cobertura de 15 das 16 vacinas do calendário infantil – a exceção é a da catapora, devido à “instabilidade do fornecimento pelos laboratórios fabricantes”. O aumento médio foi de 17 pontos percentuais em relação a 2022. Cresceu também o número de municípios com mais de 95% de cobertura. No caso da tríplice viral, o aumento na segunda dose foi de 180% – de 855 cidades em 2022 para 2.408 em 2024.
Mas não dá para baixar a guarda, dizem os especialistas. Segundo o Estudo sobre Consciência Vacinal, conduzido em 2024 com 3 mil pessoas, 90% dos brasileiros reconhecem a importância das vacinas e 72% dizem confiar nelas. Por outro lado, 26% confiam pouco ou não confiam. Pior: 21% já deixaram de se vacinar ou vacinar seus filhos por causa de notícias falsas.
Doenças crônicas e as curas milagrosas
Embora a vacina seja um dos alvos preferidos da desinformação em saúde, hipertensão e diabetes, as duas principais doenças crônicas no País, também foram vítimas recentes de fake news. Uma delas recomenda, sem qualquer embasamento, a ingestão diária de sal integral diluído em água para reduzir a pressão arterial. A outra garante que a diabetes é uma doença causada por vermes. De quebra, o influenciador ainda oferece um tratamento antiparasitário para os seus incautos seguidores.
“A ideia de que o sal integral não faz mal aos hipertensos é perigosa”, avisa a cardiologista Aurora Issa, diretora do Instituto Nacional de Cardiologia (INC). “Apesar de ser menos processado que o refinado, contém os mesmos níveis de sódio. Em excesso, pode levar ao agravamento do quadro, com risco de infarto, derrame e insuficiência cardíaca”.
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O endocrinologista Ruy Lyra, presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), faz coro. “Nos preocupamos com essas notícias falsas porque elas conseguem convencer as pessoas a abandonar o tratamento médico para consumir ‘fórmulas milagrosas’. Sem controle, o diabetes pode causar cegueira e amputação”.
Nem exames consagrados são poupados por charlatões virtuais. Volta e meia, circula nas redes a falácia de que a mamografia aumenta o risco de câncer de mama. “É preocupante porque a mamografia é o método mais eficaz para rastrear o câncer de mama”, afirma o oncologista Gélcio Mendes, do Instituto Nacional de Câncer (Inca). “Permite a detecção precoce antes do surgimento dos primeiros sintomas. Quanto mais tardio o diagnóstico, mais complexo e menos eficaz o tratamento.”
Cenário pode piorar. Como evitar?
Se o cenário já deixava os profissionais de saúde insones, a situação ficou pior no dia 7 de janeiro, com a decisão da Meta de encerrar seu programa de checagem nos EUA. Segundo o fundador e CEO da empresa dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, Mark Zuckerberg, o atual sistema tem “muitos erros e censura demais”.
“Essa decisão é um desastre”, resume o epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade de Illinois (EUA). “A checagem de fatos ajuda a separar dúvidas legítimas de desinformação criminosa. Questionar os prós e contras de um lockdown durante uma pandemia é uma dúvida legítima. Já sugerir que a vacina da covid-19 pode causar HIV é uma desinformação criminosa.”
Zuckerberg anunciou que suas redes sociais adotarão modelo similar ao da plataforma X, de Elon Musk. Em vez de organizações independentes, serão os próprios usuários que adicionarão notas ou correções em postagens falsas ou enganosas. “O ‘Notas da Comunidade’ já demonstrou ser suscetível a interesses políticos, ideológicos e econômicos”, pondera Ana Carolina Monari, doutora em Informação e Comunicação em Saúde pela Fiocruz e pesquisadora de pós-doutorado no Recod.ai, o Laboratório de Inteligência Artificial da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Se a desinformação em saúde é um problema complexo, sua solução não pode ser simplista. Na opinião de Ana Carolina, abrange da regulação das plataformas de redes sociais ao uso da inteligência artificial na checagem dos fatos. “A IA pode ajudar na detecção de diferentes modalidades de notícias falsas em textos, vídeos e imagens.”
Já o psicólogo Daniel Gontijo, doutor em Neurociências pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fala em “alfabetização científica” do ensino básico à pós-graduação. “Se as pessoas não recebem uma boa alfabetização científica, elas se tornam mais suscetíveis a acreditar em desinformação. Quem tem um repertório precário de conhecimento científico se torna uma vítima mais provável de notícias falsas”, alerta.
Isabella e Becker apostam em diferentes profilaxias: ela defende campanhas de conscientização no horário nobre; ele enfatiza as agências de verificação de notícias. “Temos que chegar à TV”, reivindica a pediatra, fazendo alusão ao Estudo sobre Consciência Vacinal. Segundo a pesquisa, 48% da população se informa sobre vacinas e saúde na televisão; em seguida vêm sites e blogs (34%) e redes sociais (28%).
“Antes de compartilhar qualquer notícia, entre em contato com uma agência de checagem”, sugere Becker. No caso do Estadão, o leitor em dúvida sobre um boato pode enviar mensagem para o Estadão Verifica pelo WhatsApp ou Telegram. O número é (11) 97683-7490.
Já Neto cobra punição para os mal-intencionados que podem se aproveitar do fim da checagem da Meta para praticar charlatanismo. “A sociedade tem a obrigação de denunciar práticas enganosas”, afirma o cirurgião. Segundo o artigo 283 do Código Penal, charlatão é quem anuncia cura por meio secreto ou infalível. A pena é de detenção de três meses a um ano e multa.