Em meio à epidemia recorde de dengue que atinge o Brasil em 2024, com mais de 3,3 milhões de casos e 1.457 mortes registradas, o governo federal vem sendo criticado por ter demorado a agir e não ter iniciado ações mais efetivas ainda no ano passado, quando várias autoridades sanitárias, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Fiocruz, já previam um surto sem precedentes no País.
A gestão de Nísia Trindade argumenta que a epidemia está ligada a questões ambientais - ondas de calor, chuvas e El Niño - e a fatores como a circulação simultânea de vários sorotipos do vírus da dengue. Mas embora especialistas reconheçam que esses fatores tenham, de fato, favorecido o cenário epidemiológico atual, deslizes do governo federal pioraram o cenário, conforme vem sendo reportado nas últimas semanas pelo Estadão.
Veja abaixo algumas das falhas do ministério que contribuíram para o agravamento da epidemia:
Redução dos gastos em campanhas de comunicação contra a dengue
A gestão atual do ministério reduziu em 58,5% o valor gasto com campanhas de comunicação para prevenção e conscientização sobre a dengue no ano passado, mesmo com diversos alertas de que a epidemia de 2024 poderia alcançar um número recorde de casos e que a prevenção deveria ser intensificada antes da chegada do verão.
Em 2023, o Ministério da Saúde gastou R$ 13,1 milhões com campanhas de combate a dengue e outras arboviroses. Em 2022, último ano da gestão de Jair Bolsonaro, os mesmos gastos haviam somado R$ 31,6 milhões, já em valores corrigidos pelo IPCA, índice oficial de inflação do País.
Para especialistas, a redução dos gastos com campanhas de comunicação reduz a mobilização contra a doença antes do verão, favorecendo a proliferação do mosquito transmissor Aedes aegypti e, consequentemente, o aumento do número de casos da doença.
Procurado, o Ministério da Saúde afirmou que ampliou em 33% os gastos com campanhas de comunicação contra a dengue em 2024 e que, além das campanhas publicitárias, realizou diversas ações de prevenção em 2023 (leia mais aqui).
Queda no ritmo de contratação de agentes de endemias
Além da queda do investimento em campanhas de comunicação, o País também teve, em 2023, redução no ritmo de contratação de novos Agentes Comunitários de Endemias (ACEs), categoria responsável por ações de controle do mosquito Aedes Aegypti.
Ao longo de 2022, o número de agentes cresceu em 4.313. Mas, em todo o ano de 2023, o saldo foi de apenas 822 agentes a mais. Os profissionais são contratados pelos municípios, que recebem recursos do Ministério da Saúde para bancar salários.
Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, o País vive um déficit de agentes deste tipo há anos. Procurado, o Ministério da Saúde destacou ações em prol da categoria, como reajuste salarial.
Resistência em declarar emergência sanitária
Outra crítica ao Ministério da Saúde na condução da epidemia de dengue é a resistência em declarar emergência em saúde pública. Para especialistas, o cenário epidêmico atípico registrado no País justifica a medida e daria um recado mais assertivo à população sobre a gravidade do problema.
De acordo com especialistas, a declaração de emergência não é apenas uma reação a uma crise já existente, mas um ato preparatório que visa prevenir casos e mortes. Ela serve para alertar a sociedade sobre a gravidade da situação e para mobilizar outros ministérios em ações coordenadas.
Ainda de acordo com epidemiologistas e infectologistas, a declaração de emergência ampliaria a difusão de informações, aumentaria o engajamento público e justificaria a alocação de recursos adicionais não previstos no orçamento do Ministério da Saúde, além de ajudar na preparação do sistema de saúde, facilitando a compra de insumos e outras ações emergenciais.
Sobre a decisão de não declarar emergência, o ministério vem dizendo que a situação da epidemia é heterogênea considerando diferentes Estados e regiões do País, alguns com alta incidência e outros com baixa, o que, de acordo com a pasta, “evidencia que o Brasil vive uma situação de muita preocupação por dengue, mas não uma epidemia, razão pela qual o Ministério da Saúde vem tomando, desde o ano passado, todas as medidas para apoiar Estados e municípios no combate à enfermidade”.
Investimento em vigilância para além da covid está estagnado
Sem contar os recursos para a covid-19, os repasses federais para ações de vigilância em Saúde estão estagnados, segundo um estudo inédito do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) obtido pelo Estadão.
O levantamento, que analisou o orçamento do ministério destinado às ações de vigilância em saúde entre 2014 e 2023, mostra que a despesa só teve aumento real nos últimos anos graças aos gastos elevados para o combate à covid-19, inclusive a compra de vacinas. Se foram desconsiderados esses valores, o orçamento praticado em 2023 para vigilância de doenças caiu - desde 2017, há um decréscimo de 0,6% a cada ano.
“E a maior parte desse orçamento (cerca de 90%) vai para despesas obrigatórias, sem muita margem de mudança. Então, nesses últimos anos, ficamos sem olhar para ações estratégicas”, destacou Victor Nobre, assistente de relações institucionais do IEPS e um dos autores do levantamento.
O estudo mostra ainda que, dentro do orçamento para ações de vigilância, o ano de 2023 foi o que teve o menor valor de repasse para apoio a Estados e municípios em dez anos para ações de vigilância em saúde (R$ 1,7 bilhão no ano passado com uma média de R$ 3 bilhões nos anos anteriores, considerando valores corrigidos pelo IPCA). O Ministério não comentou a estagnação no orçamento.
Faltam iniciativas inovadoras no combate ao mosquito
Outra reclamação, esta vinda de secretários municipais da Saúde e que não se restringe somente à atual gestão federal, é de que não há repasses extras para financiar estratégias inovadoras de combate ao Aedes aegypti, o que faz o combate ao vetor ficar muito restrito ainda à aplicação de inseticidas e larvicidas, além das campanhas para sensibilizar a população.
Secretários dizem que têm que usar o recurso municipal se quiserem investir em estratégias como armadilhas, drones que aplicam larvicida e outros métodos mais complexos, como a modificação genética do inseto. O ministério também não comentou.
Secretária de Vigilância tira férias em mês de explosão de casos
Mesmo com alerta no ano passado de que 2024 poderia registrar a pior epidemia de dengue da história, a secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA), Ethel Maciel, passou todo o mês de janeiro de férias, justamente o período em que os casos explodiram no País, com uma crise no Distrito Federal, primeira unidade da federação a registrar índices epidêmicos da doença.
Ethel chegou, inclusive, a fazer viagem ao exterior – um dos destinos foi a Índia, conforme postagem da própria secretária nas redes sociais. Procurado, o Ministério da Saúde disse que ela foi “devidamente substituída”, “tendo sido garantidos a continuidade e o monitoramento das ações planejadas”.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.