A realização de um transplante de órgão no Brasil leva em consideração diversos critérios, entre eles a gravidade do quadro clínico e a compatibilidade entre doador e receptor. A realização da cirurgia de transplante de coração do apresentador de TV Fausto Silva, de 73 anos, conhecido popularmente como Faustão, realizada no domingo, 27, alguns dias após ser internado e entrar na lista de espera para realizar o procedimento, gerou repercussão entre os brasileiros e questionamentos sobre a espera na lista.
Como é definida a lista de espera por um órgão?
A lista para transplantes é única e vale tanto para os pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto para os da rede privada. Ela funciona com base em critérios técnicos, em que tipagem sanguínea, compatibilidade de peso e altura, compatibilidade genética e critérios de gravidade distintos para cada órgão determinam a ordem de pacientes a serem transplantados.
Pacientes em estado crítico são atendidos com prioridade, em razão de sua condição clínica. A ordem cronológica do cadastro só funciona como critério de desempate quando os critérios técnicos são semelhantes.
“A lista não é por ordem de chegada, mas por ordem de necessidade. Além disso, o receptor, que está aguardando o transplante, precisa ter características semelhantes às do doador, para o órgão funcionar de forma adequada. A lista é muito dinâmica e muda constantemente”, diz Daniela Salomão, coordenadora do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), do Ministério da Saúde.
Segundo ela, há centros de transplantes cardíacos em vários Estados do Brasil. “Geralmente, os pacientes residem próximo aos centros transplantadores exatamente para facilitar o deslocamento no momento em que ocorre a doação”, pontua Daniela.
Ela reforça que a lista de São Paulo é uma das mais dinâmicas do País devido ao volume de entrada de pacientes e de doações. “Na última semana, somente em São Paulo, foram realizados sete transplantes de coração”, afirma a coordenadora do SNT.
Legislação brasileira
O Brasil é regido pela legislação nacional 9.434, atualizada em setembro de 2019, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e outras providências.
“Todos os transplantes são realizados por equipes que fazem tanto a parte da captação quanto a da extração. Tem também um grupo que cuida somente da etapa anterior à captação, ou seja, prepara o paciente que teve morte encefálica, que pode doar fígado, rins, pulmões, pâncreas, coração, intestino delgado e tecidos”, afirma Ilka Boin, membro da diretoria da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).
Posteriormente, segundo ela, os dados do doador são passados para o sistema, que é informatizado. “Quando são colocados, de acordo com todos os critérios, com consentimento da família, automaticamente se aciona a central de transplantes. Dessa forma, com as informações do doador que surgiu, é feito um ‘match’, ou seja, uma busca para ligar o doador a possíveis receptores compatíveis. Isso funciona para todos os órgãos. Não existe mão humana”, acrescenta Ilka. Ou seja, o computador já faz o ranking de quem pode receber o órgão.
“Quando a equipe cirurgiã inclui o receptor na lista, já são informados uns cinquenta dados do paciente, e não é colocado o nome dele”, acrescenta a integrante da ABTO.
A Central de Transplantes do Estado de São Paulo acrescenta que pacientes que necessitam de transplante de órgãos são inseridos no Cadastro Técnico do Sistema Estadual de Transplantes de São Paulo, ou seja, na fila para o transplante na especialidade necessária.
A inscrição e a manutenção dos dados cadastrais no sistema são de responsabilidade da equipe de transplante. A gestão desse cadastro técnico, bem como a distribuição de órgãos, é realizada pelo Sistema Estadual de Transplantes em conjunto com o SNT, órgão nacional, e depende de fatores como disponibilidade do órgão por meio do processo de doação, ordem cronológica, condições clínicas, gravidade do caso e disponibilidade ou não de tratamentos alternativos, com prioridade aos casos de urgência em que há risco de morte.
Os principais critérios para definir a ordem na fila de transplantes:
- Compatibilidade sanguínea: um receptor do grupo sanguíneo B, por exemplo, pode receber órgãos de um doador do grupo sanguíneo B ou O, enquanto receptores AB podem receber de doadores AB, B e O.
- Gravidade: há critérios de priorização, definidos por lei, em que potenciais receptores que possuem risco iminente de morte são elevados em sua posição no cadastro técnico (fila de espera).
- Critérios antropométricos: a equipe transplantadora define uma faixa de peso e altura para os doadores ofertados para cada receptor.
- Velocidade: o ideal é que, depois de retirados do doador, o coração e o pulmão sejam transplantados em até 4 horas; o fígado em até 6 horas; o pâncreas em 12 horas; o rim em 24 horas; e as córneas, em até 10 dias.
Outros pontos importantes
“Cada órgão tem seus critérios de gravidade. O que se deseja do doador, que seja mais velho ou mais novo. Que seja gordo ou magro”, acrescenta Ilka, integrante da ABTO. Ela lembra que as crianças entram na mesma lista, embora os critérios sejam diferentes.
“No caso do Faustão, por exemplo, ele não poderia receber um coração de criança ou de um jovem que pesa 30 quilos”, acrescenta Ilka. Da mesma maneira, ela observa que não é possível colocar o coração de um doador de 70 quilos em um receptor de 40 quilos. “Não será compatível”, diz. “Em alguns casos, tem ainda a questão genética”, acrescenta.
No caso da fila para transplante de coração, é levado em conta ainda se o paciente está:
- Em ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea), que funciona como um coração artificial
- Se recebe altas doses de drogas vasoativas
- Se está internado e se está na Unidade de Terapia Intensiva (UTI)
- Se tem dois pacientes na UTI, qual está em estado mais grave
As condições de saúde precisam estar sempre atualizadas
No caso de pacientes internados, a atualização, em geral, é feita a cada seis horas ou quando surge alguma informação relevante.
“Cabe à equipe transplantadora avaliar e acompanhar o paciente para saber se ele está em condições de ser transplantado e colocá-lo em condições ideais para que ele suporte o transplante”, ressalta Daniela, coordenadora do SNT, do Ministério da Saúde.
Quais motivos impedem o recebimento de um órgão?
- Se o paciente piorar clinicamente de um dia para outro
- Se o paciente não quiser receber o órgão neste momento, a decisão que é respeitada
- Se o paciente não foi localizado
- Se não existiu compatibilidade de tamanho ou de genética
“Outro momento de recusa é quando o paciente, naquele momento, não estava em condições ideais de receber o órgão, vindo a ter alguma descompensação secundária que impeça o transplante”, acrescenta Daniela, coordenadora do SNT, do Ministério da Saúde. A ABTO trabalha com 5% de recusa.
Ilka lembra do recente caso do MC Marcinho. “Ele estava na fila de transplantes no Rio de Janeiro, mas teve descompensação renal. Mesmo sendo o primeiro da lista, não pode receber o órgão”, afirma Ilka.
O funkeiro morreu no dia 26 de agosto de falência múltipla dos órgãos, aos 45 anos. Ele estava internado no Hospital Copa D’Or, no Rio de Janeiro, desde junho, devido a um quadro de insuficiência cardíaca e renal. O cantor sofreu uma parada cardiorrespiratória em julho e teve um coração artificial implantado numa tentativa de estabilizar sua condição. A complicação da infecção tinha levado à suspensão temporária de MC Marcinho da fila de transplantes de coração.
Quando o paciente pode ser retirado temporariamente ou definitivamente da lista de espera?
- A retirada definitiva do paciente da lista envolve o aparecimento de câncer ou o desejo da própria pessoa em sair da espera
- A saída temporária acontece para o paciente se recuperar de uma condição clínica secundária. Depois disso, ele pode retornar para seu lugar na fila de espera
Existe limite de idade para ser doador ou receptor?
O que determina o uso de partes do corpo para transplante é o estado de saúde do paciente. Não existe critério para a idade.
Por qual motivo Faustão entrou na lista de prioridade para receber o órgão?
Em 20 de agosto, o Hospital Israelita Albert Einstein informou que o apresentador já estava na lista de espera administrada pela Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo para realizar um transplante de coração. A data exata da inclusão, no entanto, não foi revelada.
Na ocasião, o hospital informou ainda que ele se encontrava sob cuidados intensivos e, em virtude do agravamento do quadro, havia a indicação para o transplante cardíaco. “O paciente está em diálise e necessitando de medicamentos para ajudar na força de bombeamento do coração”, disse a nota, na ocasião.
Faustão foi internado na rede particular no dia 5 de agosto após apresentar um quadro grave de insuficiência cardíaca, condição que vem sendo acompanhada desde 2020.
Dessa forma, o apresentador entrou em uma lista de espera única coordenada pelo SNT, do Ministério da Saúde, que vale tanto para pacientes da rede pública quanto para os da privada.
Como Faustão conseguiu realizar o transplante de coração?
O Hospital Albert Einstein afirmou que foi acionado na madrugada de domingo pela Central de Transplante do Estado de São Paulo de que havia um órgão disponível. A partir daí, começou uma série de testes para saber se o coração era compatível com Faustão. Com a confirmação da compatibilidade, a cirurgia pôde ser realizada.
Faustão ocupava o segundo lugar na fila de espera, segundo a Central de Transplantes do Estado de São Paulo, em razão da gravidade do seu quadro clínico. Por meio do sistema informatizado de gerenciamento do sistema estadual de transplantes, 12 pacientes atendiam aos requisitos. Desse total, quatro estavam priorizados – Faustão ocupava a segunda posição nessa seleção.
Segundo o Governo do Estado de São Paulo, a equipe transplantadora do paciente que ocupava a primeira posição decidiu pela recusa do órgão. As razões não foram divulgadas pela Central de Transplantes do Estado de São Paulo, mas podem estar relacionadas a incompatibilidades entre receptor e doador. Com isso, a oferta seguiu para o segundo paciente da seleção, que era Faustão.
Quanto tempo durou a cirurgia do Faustão?
De acordo com o boletim médico divulgado pelo Hospital Albert Einstein, a cirurgia ocorreu no início da tarde deste domingo e durou 2h30. O procedimento foi realizado com sucesso, segundo o hospital. Faustão, agora, segue na UTI para o acompanhamento da adaptação do órgão e controle da rejeição.
Transplante de coração
No caso do transplante de coração, o órgão é retirado do doador após constatada a morte cerebral e colocado em uma caixa térmica, na temperatura de 4º C. Para que ele não se deteriore fora do corpo humano, o órgão recebe uma solução cardioplégica, ou seja, uma substância que promove a parada, de forma controlada, dos batimentos cardíacos preservando a função do coração.
“Neste ano, transplantamos 72 pacientes no Brasil, estamos falando de transplantes cardíacos, com menos de 30 dias de espera”, acrescenta Daniela, do SNT.
Segundo a ABTO, até 16 de agosto deste ano, 386 pessoas esperam por um coração no País. Considerando a fila para todos os tipos de órgão, o número passa de 50 mil.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.