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Febre maculosa: Como manejar animais que carregam carrapato? ‘Capivara não é vilã’, diz pesquisadora

Quem transmite a bactéria são os aracnídeos, destacam médicos-veterinários; equilíbrio da saúde humana, animal e dos ecossistemas é fundamental

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Foto do author Leon Ferrari
Atualização:

Desde a pandemia de covid-19, autoridades em saúde e pesquisadores alertam que precisamos estar preparados para novas emergências, que provavelmente serão zoonoses (doenças infecciosas transmitidas entre animais e pessoas). Nas últimas semanas, uma delas, a febre maculosa, ganhou os holofotes, após causar ao menos quatro mortes em Campinas.

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A doença tem cura eficaz, mas o diagnóstico tardio leva muitos pacientes a óbito. A febre maculosa é causada por uma bactéria que chega aos humanos por meio da picada, principalmente, do carrapato-estrela.

É aí que as capivaras ganham destaque. Além de hospedeiros dos carrapatos, são consideradas os principais amplificadores da bactéria. Ao serem infectadas pela bactéria pela picada de um aracnídeo, são capazes por, durante duas semanas, infectar outros deles que se alimentam de seu sangue, perpetuando a transmissão do agente etiológico.

Embora frisem que elas não são as vilãs ou transmissoras da doença (que é de responsabilidade dos carrapatos), médicos-veterinários afirmam que de forma emergencial é preciso fazer o manejo das capivaras, com estratégias como controle de natalidade, isolamento físico e, em alguns casos, eutanásia. Porém, alertam que o combate da febre maculosa só será eficiente se focar no que chamam de “saúde única”. Isso significa que são necessárias ações que busquem equilibrar a saúde humana, animal e dos ecossistemas.

Classificação de risco

Conforme mostrou o Estadão, a Justiça de Limeira, no interior de São Paulo, intimou a prefeitura a comprovar a realização de testes sorológicos em capivaras que habitam um parque público da cidade para detectar se estão contaminadas com a bactéria causadora da febre maculosa. Em março deste ano, uma pessoa de 17 anos morreu devido à febre maculosa. A cidade de Campinas, que fica na mesma região, registrou quatro mortes só neste mês.

De acordo com a médica-veterinária Fernanda Passos Nunes, membro da Comissão Técnica de Médicos-veterinários de Animais Selvagens do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo (CRMV-SP), o pedido da Justiça visa descobrir se a morte do adolescente tem ligação com o parque e classificá-lo como local provável de infecção (LPI). “Se a sorologia das capivaras estiverem com títulos muito altos, provavelmente tenha sido lá.”

O pedido se ancora na Resolução Conjunta n° 1/2016, das Secretarias do Meio Ambiente e Saúde de São Paulo, que dá diretrizes de vigilância da febre maculosa no Estado. Segundo o texto, é necessária investigação de determinada área toda vez que se notificar caso suspeito ou conformado da doença, ou haver “notificação espontânea de parasitismo humano por carrapatos do gênero Amblyomma”.

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Fernanda, que ajudou a revisá-la, destaca que o primeiro passo é uma pesquisa acarológica na área, para determinar se há carrapato estrela (Amblyomma sculptum) ali. Caso haja, explica, por meio de uma equação epidemiológica se define o número de animais (provavelmente capivaras) a serem submetidas a teste sorológico, e com autorização do Departamento de Fauna, inicia-se a captura dos animais.

O médico-veterinário Leonardo Boscoli Lara, professor de Produção e Nutrição de Animais de Estimação e Silvestres da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que esse processo pode ser demorado, chegando a levar um mês, uma vez que capivaras são roedores espertos. Fernanda pontua que esse tempo será relativo ao número de animais a serem capturados e experiência da equipe. No entanto, frisa que, enquanto a captura ocorre, é preciso de “programa educativo no local”, para quem trabalhar ou passear por ali esteja alerta e saiba como evitar a doença.

O objetivo dos exames é saber os títulos (grau de imunidade) de anticorpos contra a bactéria Rickettsia rickettsii, causadora da febre maculosa, as capivaras têm e há quanto tempo tiveram contato com ela, para poder classificar a área em de transmissão, de alerta, de risco ou predisposta. A ideia é determinar se os animais apresentam potencial risco para o ciclo da doença, uma vez que só amplificam a bactéria por um curto período de tempo e uma vez na vida.

“A capivara só amplifica a bactéria durante um período de dez a quatorze dias da vida dela”, fala Fernanda. Após ser infectada por um carrapato com a bactéria, o roedor pode passar a bactéria para entre 20% a 25% dos demais que se alimentam dela. Passado esse período, ela se torna imune e não apresenta mais risco de transmissão.

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Com os resultados da sorologia, classifica-se a área e se decide como manejar a população de capivaras do local. Segundo a resolução paulista, esse plano de controle dos animais, que precisa ser aprovado pelo Departamento de Fauna, pode seguir várias estratégias, que pode envolver manejo reprodutivo, isolamento físico, remoção total ou parcial de animais. Em áreas de transmissão e risco, porém, a “translocação” (deslocamento) das capivaras não é “aceitável”, pois pode introduzir o hospedeiro amplificador e a bactéria em regiões novas.

Barreiras e interdição

Para Joziana Barçante, coordenadora do Núcleo de Pesquisa Biomédica e professora do Departamento de Medicina da Universidade Federal de Lavras (UFLA), a principal medida precisa ser a educação em saúde. Informar à população que determinada área é de risco para transmissão da doença, com placas, por exemplo. “É uma doença que tem cura. O problema principal é o diagnóstico tardio.”

A interdição de locais de transmissão e barreiras físicas entre animais e humanos nele também são, na avaliação dela, estratégias importantes. Ela destaca ser importante que hospedeiros possíveis do carrapato (que pode estar infectado), como animais domésticos, outros equinos e bovinos, devem ser impedidos de acessar o local.

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Esterilização

Joziana também defende a importância de controle de natalidade da população de capivaras. Isso porque, embora após o primeiro contato, a capivara provavelmente não se infecta e amplifica a bactéria, a “taxa de reprodução desses animais é muito alta”. “Os filhotes que nascem dali são suscetíveis à infecção, e, se a bactéria estiver circulando naquela região, esses filhotes novos vão mantendo ali aquela infecção sendo fonte a novos carrapatos que estão ali no ambiente.”

Fernanda Passos Nunes, que também é mestre em epidemiologia e doutoranda em reprodução animal da Universidade São Paulo (USP), destaca que “o manejo reprodutivo é eficaz para o controle da febre maculosa”. Essa á a conclusão da tese dele que deve ser defendida em breve. Para chegar a esse resultado, ela analisou 12 empreendimentos (11 endêmicos para febre maculosa e um não endêmico, para controle).

Ela explica que o manejo é por meio da esterilização (vasectomia e laqueadura) e não castração, que pode causar dispersão do grupo (o que mantém as capivaras unidas é a libido). Todo um grupo, inclusive filhotes, devem passar pelo procedimento, que, segundo ela, não chega a levar 30 minutos.

“Já fiz a esterilização de mais de 500 capivaras. Nas áreas onde fiz a esterilização, inclusive, as capivaras diminuíram os títulos (de anticorpos) e nenhuma outra capivara que era negativa se tornou positiva durante cinco anos de monitoramento”, contou. “Tem área que eu estou fazendo monitoramento desde 2014. Em três anos do manejo reprodutivo, você não tem mais nem a circulação da bactéria na área, mesmo sem fazer nenhum eutanásia”, completa.

Foco no carrapato

Leonardo Boscoli Lara, professor da UFMG, afirma que qualquer tentativa de manejo reprodutivo de capivaras em ambiente livre não será eficaz. Para ele, o foco precisa ser no que chama de “controle estratégico de carrapatos”. “Por exemplo, uma vez por ano pode colher os carrapatos fêmeas e fazer um exame que chama carrapatograma. Nesse exame se verifica qual base carrapaticida é a mais eficaz e se aplica (nos animais) essa base carrapaticida em momentos estratégicos, principalmente nos cavalos da área.”

Lara traz esse destaque aos cavalos, pois, segundo ele, eles são os hospedeiros principais do carrapato estrela (que popularmente também é conhecido como carrapato do cavalo). “O grande papel da capivara na febre maculosa é quando os machos, com dez meses de idade mais ou menos, saem daquele local e vão para outra lagoa. Se esse macho estiverem contaminados, acabam levando a Rickettsia, e esse carrapato sai da capivara, pega algum cavalo.”

Fernanda destaca, porém, que o cavalo, embora podendo ser infectado pela bactéria, não é um amplificador dela (se um carrapato não infectado pica o animal enquanto infectado, não se infectará com o agente etiológico). Nesse sentido, o cavalo, assim como outros animais - até mesmo os domésticos - podem servir de “transporte” para carrapatos infectados que podem infectar humanos.

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Eutanásia

Para casos em que os animais estiverem em confinamento - sem possibilidade de migração -, a eutanásia (abatimento assistido) de animais, junto ao manejo reprodutivo, é uma possibilidade, de acordo com os especialistas ouvidos pelo Estadão. A medida em documento oficial enviado pela Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, aos municípios, em 2019.

Derek Rosenfield, pesquisador de controle populacional da vida selvagem da USP, explica que, nesse caso, faz-se a sorologia dos animais e os que têm teste negativo são abatidos. “Dessa forma, você remove a chance de manutenção da doença dentro do grupo”, diz. Rosenfield, porém, destaca que essa não é a estratégia que recomenda ou aprova.

Equilíbrio e monitoramento constante

Pensando no controle e erradicação da febre maculosa no longo prazo, conforme os especialistas, não adianta apostar em estratégias isoladas (só pra humanos ou só manejo de animais, por exemplo) ou agir apenas de forma reativa.

“Não adianta uma medida pontual quando acontece um caso ou quando um indivíduo vai a óbito”, diz Joziana. “Sabemos que São Paulo é uma região com uma alta prevalência de capivaras em ambientes que fazem essa interface (com humanos), e que a Rickettsia rickettsii circula em vários municípios do Estado. É fundamental medidas de comunicação, manejo dessas capivaras, com cercamento de áreas de acesso a utilização por humanos e controle populacional, que devem ser feitos de forma permanente.”

“A capivara não é a vilã da febre maculosa”, destaca Fernanda. “Nós, humanos, avançamos, houve crescimento populacional e urbano. Os animais também estão convivendo mais próximos da gente. Antes, quem pegava a febre maculosa era sempre homem, na faixa etária de 20 a 40 anos, que caçava capivara. Hoje em dia, não está sendo mais, porque houve uma mudança de coabitar (animais e humanos).”

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