O cineasta Fernando Grostein, de 41 anos, declarou em depoimento à revista Piauí que foi vítima de uma série de abusos sexuais, o primeiro deles quando tinha apenas 14 anos. Declaradamente gay e hoje casado com o ator Fernando Siqueira, de 24 anos, ele conta como o episódio impactou sua sexualidade e a forma de se expressar. “Desde então, passei a anular o meu modo de ser”, afirmou ele, irmão do apresentador Luciano Huck. Especialistas ouvidas pelo Estadão dizem que essa é uma das sequelas possíveis para meninos violados sexualmente, que muitas vezes se sentem culpados ou envergonhados. Alguns casos podem levar à depressão ou ao suicídio, alertam.
Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos apontam que o Brasil teve nove denúncias de violação sexual por dia contra vítimas do sexo masculino até 7 de julho. Do total de 1.668 notificações no período, 83% foram com crianças e adolescentes de até 17 anos, mas especialistas afirmam que o total é maior por causa da subnotificação, agravada pelo machismo e a homofobia.
As denúncias registradas pelo Disque 100, ouvidoria gratuita vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, se referem a todos os tipos de violação da liberdade sexual. Entram nesta lista abuso, assédio e exploração sexual, estupro e violação da liberdade sexual psíquica das vítimas.
A proporção de violações sexuais contra garotos e homens ainda é menor em relação às mulheres e garotas. Dados da Ouvidoria mostram que a cada denúncia de violação contra um homem, mais de sete são registradas contra uma mulher.
“Meninos têm uma forma particular de manifestar o abuso. Alguns sintomas também são comuns entre as meninas, mas eles normalmente têm a expressão da sexualidade mais naturalizada e acham que só foram ‘iniciados mais cedo’”, explica a psicóloga Mônica Potzik, que atua na Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Grostein conta que o primeiro abuso foi quando tinha 14 anos. Em uma boate, relata, homens o seguraram à força e fizeram penetração com o dedo. O cineasta ainda conta como lhe foi tirada até a chance de iniciar a vida sexual quando se sentisse pronto. “Na juventude, amigos me forçaram a transar com uma mulher que havia posado para a Playboy. Foi quando perdi a virgindade, aos 17 anos. A homofobia pode ser tão cruel que é capaz de tirar o direito de a pessoa ter sua primeira relação sexual de maneira privada, com quem deseja e escolheu de verdade.”
O cineasta conta também ter sofrido assédio sexual aos 18 anos e, dois anos depois, relata ter sido sequestrado por um garoto de programa. Aos 28, ele afirma ter sido vítima de outro estupro, sobre o qual ele diz que ainda não está pronto para dar detalhes.
Mônica trabalha acolhendo vítimas de abuso no sistema judiciário e fazendo com que crianças e adolescentes sintam-se seguros o suficiente para denunciarem o crime. Ela aponta que, claro, cada caso é diferente do outro. Mas, entre meninos e rapazes, é comum que conceitos atrelados ao machismo e à homofobia atrapalhem nos processos de denúncia, diálogo e entendimento dessas violações.
“Atendi muitos casos em que os meninos conseguiam falar para outras pessoas, como amigos e professores, mas tinham dificuldade de contar para a mãe (ou qualquer pessoa que represente essa figura materna, como uma avó ou tia) porque não querem romper a imagem do ideal projetado por ela”, conta a psicóloga.
Além das reações fisiológicas que um abuso sexual pode causar, meninos ainda costumam carregar culpa e vergonha “porque é esperado do homem que se defenda e seja forte”. “É um sentimento de ‘como fui permitir que isso acontecesse comigo?’”, explica Mônica.
Nos casos em que esse tipo de violência é contínua, a criança ou adolescente pode desenvolver um “estresse tóxico”, que se manifesta de diferentes formas. “Pode apresentar irritabilidade, alteração na alimentação, problemas com sono, dificuldade escolar, sintomas depressivos, dores inexplicadas e adoecimento sem causa aparente”, enumera Ana Márcia Guimarães Alves, do Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Ela explica que enquanto crianças tendem a se comportar de maneira retraída e se isolar, principalmente em relação ao ambiente onde a agressão ocorre, adolescentes costumam manifestar as sequelas do abuso de outra forma.
No caso de Grostein, a sequência de abusos, assédios e ataques homofóbicos fez com que ele “anulasse” seu meu modo de ser, nas palavras do próprio. “Empostava a voz, para fazê-la mais grossa” e “me reprimia na hora de caminhar, para parecer mais masculino. Nas festas, evitava dançar, para não associarem meus modos com o que rejeitavam. Passei até a reproduzir falas machistas e homofóbicas, a fim de esconder minha verdadeira identidade.”
Entre as crianças, se a violência é praticada por um membro da família de quem ela se sente dependente (é comum casos em que o abusador é o próprio pai, padrasto ou algum outro parente próximo), ela pode ficar mais deprimida, porque não tem como viver sem a presença do abusador”, aponta. “Já o adolescente tem mais autonomia e isso atrai sintomas psíquicos e mentais diferentes, porque ele sente que consegue viver sem o abusador, então pode ser mais agressivo e falar”.
Para Ana Márcia, se a vítima não receber tratamento psicológico ou internalizar os episódios de violência, os efeitos colaterais podem se estender até a vida adulta. “Isso, com certeza, se reflete em muitos transtornos. A criança que é submetida a um estresse tóxico e crônico de longa data pode inclusive ter perda cognitiva e não atingir o seu potencial máximo, ter fracasso escolar, não ingressar na faculdade e carregar problemas de socialização”, diz. O trauma de um abuso sexual pode resultar até em quadros graves de depressão e, eventualmente, suicídio.
Início forçado da vida sexual pode criar confusão sobre identidade
O início precoce e indesejado da vida sexual também pode motivar dúvidas e angústia sobre a sexualidade, independentemente de a violência ser praticada por homem ou mulher e de a vítima se considerar hétero, bi ou homossexual.
“Esse é justamente o ponto de confusão. A criança e o adolescente não têm recursos psicológicos e emocionais para lidar com aquilo”, observa Mônica. “ Além da confusão sobre os próprios instintos, curiosidades e vontades sexuais, as sequelas do abuso podem gerar dois comportamentos opostos na vida adulta. Um deles é a hipersexualização e práticas de risco, com a mentalidade de “tanto faz o que acontece com meu corpo agora que ele foi violado”. O outro é o medo de manter um relacionamento íntimo pela falta de confiança no próximo.
Diálogo e atenção de professores são estratégias
Mônica acredita, com base em sua experiência e na literatura sobre o tema, que a principal forma de prevenir, descobrir e tratar casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes é por meio da educação e do diálogo. Professores e instrutores devem estar atentos aos sinais e ter sensibilidade para lidar com um caso e eventualmente ajudar.
“Não é promoção (da sexualidade), é educação sexual. Ainda há muito tabu em relação a isso, mas o ponto de partida é realmente ter políticas públicas sobre esse tema, para que as crianças e adolescentes saibam discernir quando acontece algo errado. Até porque muitas vezes as pessoas mais próximas são as responsáveis”, frisa a psicóloga.
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