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Por que endometriose demora a ser identificada? ‘Fui a 7 médicos para ter diagnóstico’

Ao menos 10% das brasileiras têm problema, mas levam até dez anos para diagnosticá-lo e tratá-lo; dores pélvicas devem ser levadas mais a sério por pacientes e médicos, dizem especialistas

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Foto do author Roberta Jansen
Atualização:

Estava tudo planejado. O casamento marcado para o dia em que Fabiana Cayres e seu noivo comemorariam um ano de namoro, em 21 de agosto de 2012. Em seguida, o casal passaria um mês em Paris - e havia a ideia de começar a tentar engravidar ainda na lua de mel. Faltando três semanas, Fabiana estava no trabalho quando teve uma cólica muito intensa.

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Ela estava acostumada a sentir dor no período menstrual, mas naquele dia foi tanta que desmaiou. Levada às pressas a um hospital, recebeu, finalmente, um diagnóstico: endometriose profunda, já instalada no intestino, bexiga, apêndice, ureteres, ovários e útero.

“Como acontece com a grande maioria das mulheres, meu diagnóstico foi tardio e precisei me submeter a uma cirurgia de grande porte, que incluiu a retirada de parte do intestino e da bexiga”, diz Fabiana, que, por causa da doença, virou influenciadora digital. “A urgência da cirurgia ameaçava meus sonhos. Não apenas de casar, mas também de gestar filhos.”

A história de Fabiana não é incomum. A banalização da dor feminina é considerada o maior empecilho ao diagnóstico da endometriose. Mesmo com cólicas lancinantes, as mulheres – e também os homens -- tendem a achar que é normal sentir dor no período menstrual e que qualquer queixa é fraqueza, exagero ou “frescura”. Pela primeira vez, será celebrado na segunda-feira, 13, o Dia Nacional de Luta Contra a Endometriose, para debater o tema.

Até médicos normalizam o problema. “É assim mesmo”, muitos dizem. “Quando você tiver bebê, melhora.” Resultado: um diagnóstico tecnicamente não muito complicado leva de sete a dez anos para ser feito. E a doença está longe de ser rara: atinge 10% das mulheres em idade reprodutiva – taxa similar à da diabete, por exemplo. Estima-se que pelo menos 8 milhões de mulheres sofram no País por causa da doença e boa parte delas desconhece o problema.

“Há uma normalização da dor. Muitas mulheres têm cólicas incapacitantes e dores pélvicas e acham que isso é normal, que a mãe também tinha, que a avó tinha, que a irmã tem. E, em geral, a sociedade também considera normal, mesmo alguns colegas médicos”, diz o especialista Patrick Bellelis, colaborador do setor de endometriose do Hospital das Clínicas da USP e membro da Associação Brasileira de Endometriose e Ginecologia.

“O primeiro passo, e também o mais importante, para ter um diagnóstico mais precoce e mais preciso é fazer a população enxergar que sentir dor não é normal. Se compromete suas atividades diárias, sua produtividade, seu relacionamento, não é normal. Sentir dor no ato sexual não é normal. Dores pélvicas também não são normais”, alerta.

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Segundo a Sociedade Brasileira de Endometriose (SBE), 57% das pacientes com a doença sofrem com dores crônicas e, em 30% dos casos, ocorre infertilidade. No ano passado, o problema também ganhou evidência após a cantora Anitta relatar que iria passar por cirurgia.

Doença

O endométrio é uma mucosa que reveste a parede interna do útero. Essa película é sensível às alterações do ciclo menstrual, e recobre a região onde o óvulo se implanta depois de fertilizado. Se não houver fecundação, boa parte do endométrio é eliminado durante a menstruação. O restante volta a crescer e o processo se repete a cada novo ciclo.

A endometriose é uma alteração no funcionamento normal das células do endométrio que, em vez de serem expelidas na menstruação, migram no sentido oposto e caem nos ovários ou na cavidade abdominal, onde voltam a se multiplicar e sangrar.

As causas ainda não estão bem estabelecidas. Uma hipótese é que parte do sangue reflua através das trompas durante a menstruação e se deposite em outros órgãos. Além disso, seria necessária alguma predisposição genética relacionada a deficiências no sistema imunológico.

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“Há várias formas de tratamento, mas, basicamente, podemos dizer que existem tratamentos clínicos, com hormônios e medicações analgésicas e anti-inflamatórias, e cirúrgicos, em que os focos são retirados”, diz o ginecologista Maurício Abrão, da Faculdade de Medicina da USP.

O diagnóstico, segundo ele, está cada vez menos complicado, sobretudo nos últimos anos, após surgirem exames de ultrassom e ressonância magnética específicos para apontar a endometriose. O ultrassom transvaginal normal não detecta o problema.

“A dificuldade (do diagnóstico) é mundial. Inicialmente porque não havia exame específico, mas agora já temos ultrassom especializado, mapeamento, ressonância pélvica”, diz a presidente da SBE, Helizabet Salomão Ayroza. “Mesmo assim, há esse atraso no mundo todo justamente porque o principal sintoma é a cólica menstrual, que é subvalorizada.” Além disso, lembra, culturalmente as mulheres tendem a fazer muitas coisas ao mesmo tempo, se colocar em segundo plano, e priorizar os demais.

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“Um dos maiores problemas, que temos combatido firmemente, é o fenômeno do gaslighting médico, quando profissionais do sexo masculino e feminino menosprezam sintomas narrados pela paciente, têm dificuldade de ouvir, de valorizar”, afirma Abrão, da USP. “Temos feito campanhas e treinamento de pessoal para falar sobre a doença e ensinar o diagnóstico.”

Dez anos sem diagnóstico

Por muitos anos, Fabiana teve cólicas intensas mensalmente, sem nunca receber diagnóstico. “Nenhum médico que me acompanhou sugeriu qualquer investigação. Eu, por total desconhecimento, tampouco busquei ajuda especializada. A tendência é subestimar a gravidade dos sintomas, acreditando que são apenas uma parte normal do ciclo menstrual”, conta a influenciadora.

“Infelizmente, muitas mulheres relatam que os médicos têm dificuldade em ouvir e levar a sério suas reclamações de saúde. Existem vários fatores que podem contribuir para essa dinâmica, como a tendência a subestimar a dor e outros sintomas relatados por mulheres, a falta de treinamento adequado sobre as questões específicas de saúde que afetam as mulheres, a frequente estigmatização de algumas condições de saúde que afetam as mulheres, além de que muitas de nós nos sentimos envergonhadas ou desconfortáveis em falar de problemas sexuais, por exemplo.”

A história é similar à da psicóloga Ana Viggiano, de 45 anos. Ela já se submeteu a cinco cirurgias para tratar da endometriose – a última em novembro do ano passado. “Diferentemente de muitas mulheres, só fui ter os primeiros sintomas depois dos 30 anos, quando comecei a ter cólicas insuportáveis”, diz.

“Fui a sete médicos diferentes para conseguir diagnóstico. Muitos disseram que eu não tinha nada. Sentia dores insuportáveis e tinha de ouvir comentários muito desagradáveis desses médicos, como ‘isso é vontade de casar’, ‘isso é vontade de ter neném’. Eram pouco objetivos, pouco científicos.”

Quando finalmente foi diagnosticada, a endometriose já estava avançada e Ana teve de se submeter a uma cirurgia grande para retirar parte do intestino. Outras quatro cirurgias se seguiram para eliminar os focos em outros órgãos.

“Nunca me conformei com a negativa dos médicos, mas a maioria das mulheres passa anos com sintomas negligenciados”, disse. “Elas próprias normalizam a dor, se culpam, acham que são fracas, que estão exagerando. A maioria se identifica com essa invalidação.”

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Por isso, a psicóloga decidiu se especializar no atendimento a mulheres com endometriose. “A endometriose é uma doença crônica, que compromete aspectos emocionais que demandam assistência psicológica. Só o fato de sentir dores crônicas incapacitantes é um grande problema. Muitas desenvolvem quadros de ansiedade e depressão. A dor altera os processos neuroquímicos”, afirma.

“Além disso, tem vários fatores externos que pioram a condição emocional das mulheres, como a busca pelo diagnóstico e os obstáculos enfrentados. A principal queixa é o gaslighting médico. A mulher está passando por um sofrimento físico terrível, busca ajuda profissional e além de não ser cuidada, é maltratada, considerada desequilibrada. Muitas começam a duvidar da própria sanidade mental, a achar que aquela dor não faz sentido. Ainda tem os aspectos conjugais, pois a doença pode provocar dor na relação sexual e gerar dificuldades para engravidar.”

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