Ela não causa dor, não dá sintomas óbvios e, muitas vezes, só é descoberta por acaso. Mas a gordura no fígado, também conhecida como esteatose hepática metabólica, está longe de ser inofensiva. Um estudo conduzido por pesquisadores suecos, publicado no Jornal de Hepatologia da Associação Europeia para o Estudo do Fígado, revelou que a condição pode dobrar a taxa de mortalidade por qualquer causa — seja por complicações no próprio fígado, como o câncer hepático, ou por doenças que vão além do órgão, como as cardiovasculares.
Para chegar aos resultados, os pesquisadores acompanharam mais de 13 mil pessoas com gordura no fígado entre 2002 e 2020 e compararam os dados com um grupo de 118 mil pessoas sem a doença. Ao longo dos 18 anos de estudo, a taxa de mortalidade entre aqueles com a condição foi, em média, 1,85 vezes maior do que no grupo sem a doença. Ou seja, a proporção de pessoas que morreram nesse período foi quase o dobro entre aqueles com gordura no fígado.
Além disso, no primeiro ano após o diagnóstico, o risco de morte entre os indivíduos com o quadro foi três vezes maior em comparação àqueles da mesma idade e gênero sem a condição – o que sugere que, em muitos casos, a doença só foi identificada quando já estava em um estágio mais avançado.
“A doença hepática esteatótica é a doença hepática crônica mais comum e uma das principais causas de morbidade e mortalidade relacionadas ao fígado no mundo”, destaca o líder do estudo Axel Wester, professor em epidemiologia com foco em doenças hepáticas do Instituto Karolinska. “Por outro lado, as pesquisas anteriores sobre mortalidade em pacientes com esteatose hepática metabólica eram pequenas e focavam apenas nas mortes relacionadas ao fígado. Isso nos motivou”, conta.
E engana-se quem pensa que apenas pessoas acima do peso têm esse problema. Mesmo pacientes magros podem desenvolver gordura no fígado, especialmente se houver histórico familiar de diabetes ou se o metabolismo da glicose e da insulina não estiver funcionando bem (como no pré-diabetes). Além disso, alguns medicamentos, como corticoides e tamoxifeno, podem contribuir para o quadro. O álcool também é um fator importante e, quando combinado com alterações metabólicas, pode agravar ainda mais a condição.

Fora o risco geral de mortalidade, os pesquisadores analisaram 11 causas específicas de morte, como câncer, infecções, doenças cardiovasculares e respiratórias, distúrbios endócrinos e até transtornos de saúde mental, incluindo demência.
As maiores associações foram com câncer de fígado, com um risco de morte até 35 vezes maior. Mas, no longo prazo, os maiores responsáveis pelas mortes foram o câncer fora do fígado e doenças cardiovasculares. “Ou seja, o problema vai muito além do fígado, o que significa que não podemos focar apenas nele ao tratar os pacientes”, opina Wester.
O estudo também separou os pacientes com cirrose, uma das complicações da gordura no fígado. Entre os participantes, 3,3% tinham cirrose compensada (fase inicial da doença) e 1,4% estavam com cirrose descompensada (fase grave, quando o fígado já não consegue mais cumprir sua função). Os dados apontam que, em 15 anos, 84,8% dos pacientes com cirrose descompensada morreram. Nos casos de cirrose compensada, a mortalidade foi de 74,9%. Já entre aqueles sem cirrose, a taxa foi bem menor, mas ainda considerável: 25,3%.
Gordura no fígado exige acompanhamento multidisciplinar
Para o hepatologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Luis Edmundo Fonseca, os achados do estudo reforçam o que já se sabe: pacientes com gordura no fígado têm um prognóstico pior e maior risco de mortalidade. “Como a gordura no fígado está associada à síndrome metabólica — que envolve obesidade, diabetes, dislipidemia e hipertensão —, o aumento do risco de doenças cardiovasculares era esperado. E a relação com câncer não hepático também já era conhecida”, explica Fonseca.
O grande diferencial da pesquisa, segundo ele, está na robustez dos dados. “Esse é um estudo sólido, que pode ajudar médicos e formuladores de políticas públicas a orientar melhor os pacientes e a desenvolver estratégias para reduzir a mortalidade”, opina.
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Mas há limitações. A principal é que o estudo analisou apenas a população sueca, sem considerar diferenças genéticas e fatores específicos de outros países. No Brasil e em vizinhos da América do Sul, por exemplo, há variantes genéticas associadas a um risco maior de gordura no fígado. “Padrões alimentares, estilo de vida e genética variam muito. Por isso, estudos semelhantes em outras regiões seriam muito bem-vindos”, reconhece o próprio autor da pesquisa.
Outro ponto levantado pela coordenadora clínica de hepatologia da Rede D’Or São Paulo, Bianca Della Guardia, é que o estudo não detalhou em que estágio da doença estavam os pacientes. Isso pode ter feito com que a amostra misturasse casos mais e menos graves, o que impacta os números de mortalidade. Além disso, a pesquisa não avaliou com precisão o consumo de álcool dos participantes, um fator que pode acelerar os danos ao fígado.
Mesmo com essas questões, Bianca destaca que a pesquisa joga luz sobre a necessidade de um olhar mais amplo para a esteatose hepática metabólica. “O paciente precisa ser visto como um todo e, muitas vezes, acompanhado por uma equipe multidisciplinar. Endocrinologistas, cardiologistas, ginecologistas, nutricionistas, preparadores físicos... Quanto mais integrado o cuidado, melhor”, explica.
Já a hepatologista Liliana Mendes, do Hospital Sírio-Libanês, destaca que, no Brasil, há um outro desafio antes mesmo do tratamento: o diagnóstico. “A esteatose hepática metabólica é silenciosa e só dá sinais quando já evoluiu para fibrose ou cirrose. O rastreamento deveria ser mais comum em pacientes de risco, como aqueles que têm diabetes, obesidade e hipertensão. Mas, infelizmente, não é considerado custo-efetivo rastrear quem ainda não desenvolveu cirrose”, lamenta.
O que causa a gordura no fígado?
A esteatose hepática metabólica acontece quando mais de 5% do fígado é composto por gordura. O nome já entrega a principal razão por trás disso: ela está diretamente ligada à síndrome metabólica, um conjunto de condições que inclui sobrepeso, obesidade, colesterol e triglicérides altos, hipertensão, diabetes tipo 2 e intolerância à glicose. Vale reforçar que mesmo indivíduos magros podem apresentar o problema.
Se nada for feito, estima-se que até metade das pessoas com gordura no fígado possam desenvolver uma versão mais grave da doença, que envolve inflamação e fibrose hepática, aumentando o risco de cirrose e câncer de fígado.
Quais os sintomas da gordura no fígado?
O fígado tem uma grande capacidade de compensação e continua funcionando normalmente mesmo com acúmulo de gordura. Por isso, o quadro é considerado uma “epidemia silenciosa”.
A esteatose hepática costuma ser descoberta apenas em estágios avançados, como na cirrose. Nessa fase, os primeiros sintomas começam a surgir, incluindo fadiga, icterícia (amarelamento da pele e dos olhos), inchaço no abdômen, pés e tornozelos, além de náuseas e vômitos.
Como a doença é descoberta?
O mais comum é que ela seja detectada em exames de rotina pedidos por outros motivos, sendo que o ultrassom de abdômen total é o exame que costuma apontar a presença da gordura no fígado. Em alguns casos, a doença também é identificada por meio da alteração das enzimas hepáticas no exame de sangue, como TGO (AST), TGP(ALT) e GGT.
Além disso, para avaliar se a doença pode estar evoluindo para um quadro mais grave, Liliane conta que os médicos fazem a avaliação da fibrose hepática, que seria uma formação intensa de cicatrizes no órgão. Isso pode ser feito de forma simples e não invasiva. Se os resultados indicarem um risco moderado ou alto de fibrose, o paciente é acompanhado de perto para evitar complicações, como cirrose.
“Devido à forte associação com a síndrome metabólica, todos os pacientes com as patologias relacionadas à síndrome deveriam ser cuidadosamente avaliados para a possibilidade da concomitância de doença hepática. Isso poderia possibilitar um maior número de diagnósticos precoces”, opina Fonseca.
Como tratar a gordura no fígado?
No Brasil, ainda não existe um remédio específico para eliminar a gordura no fígado. O que os médicos fazem é tratar as condições associadas, como diabetes, obesidade e colesterol alto. Por isso, o padrão ouro do tratamento — e também de prevenção — é uma alimentação equilibrada, rica em fibras, vegetais, gorduras saudáveis e frutas com baixo índice glicêmico.
Além da dieta, evitar o consumo de álcool e manter uma rotina de exercícios físicos são medidas fundamentais. Liliane, do Hospital Sírio-Libanês, destaca que a combinação de treinos aeróbicos com exercícios de resistência pode trazer bons resultados. O acompanhamento com nutricionista, psicólogo e educador físico também contribui para a adesão ao tratamento.
Outros fatores, como controle do estresse, qualidade do sono e o apoio da família, fazem diferença nesse processo. “Mudar hábitos parece simples, mas, na prática, é um desafio. Ter suporte faz toda a diferença”, ressalta Liliane.