BRASÍLIA - O Ministério da Saúde admitiu ter divulgado um número superestimado de vacinas já contratadas contra a covid-19. Em peças de propaganda e em declarações públicas do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, a pasta diz já ter comprado mais de 560 milhões de doses. Ao responder a um questionamento oficial formulado pelo Congresso, porém, o ministério informou que o número realmente contratado é a metade disso: 280 milhões de doses.
Em 24 de março, a Saúde divulgou no Twitter vídeo de 30 segundos informando que “já foram comprados mais de 560 milhões de doses” de vacinas. Pouco depois, no dia 31, Queiroga repetiu o número. “O governo federal já tem contratados mais de 560 milhões de doses de vacina”, disse ele, após reunião do comitê de combate à covid, que reúne Executivo, Legislativo e Judiciário. “(Mas) é claro que não dispomos dessas doses no departamento de logística do Ministério da Saúde, até porque há uma carência de vacinas a nível internacional.”
Questionada oficialmente pelo Congresso, porém, a Saúde reconheceu que a informação não procede. Na resposta, a área técnica do ministério informou que já havia 281.023.470 doses contratadas e disse que 281.889.400 estão “em fase de negociação”.
Na conta das vacinas ainda em negociação, a maioria é de doses da Universidade de Oxford com a farmacêutica AstraZeneca e fabricação pela Fiocruz. Segundo a pasta, são esperados 210 milhões de unidades até o fim do ano, mas até hoje não há contrato assinado que garanta toda essa produção.
Apesar de não constarem na lista oficial de vacinas adquiridas, 22,5 milhões de doses dessa vacina já foram entregues para uso, segundo a Fiocruz. O ministério não informou se já houve pagamento por esses lotes.
Na lista de doses que o governo faz propaganda como já compradas, mas ainda dependem da assinatura de contrato, estão também 30 milhões de doses da Coronavac produzidas pelo Instituto Butantan e mais 41,4 milhões que serão fornecidas pelo consórcio internacional Covax Facility, liderado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
A resposta ao Congresso é assinada por Lauricio Monteiro Cruz, diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis do ministério, em 12 de abril.O documento foi ratificado por Arnaldo Correia de Medeiros, secretário de Vigilância em Saúde do ministério duas semanas depois, no dia 27 de abril. As informações chegaram ao Congresso nesta segunda-feira, 3, em resposta a requerimento de informações do deputado Gustavo Fruet (PDT-PR).
Pedidos desse tipo devem ser respondidos em 30 dias, sob pena de enquadramento do ministro em crime de responsabilidade, pois cabe ao Congresso fiscalizar o Executivo. A prestação de informações falsas também sujeita o titular da Saúde ao enquadramento nesse crime.
“Houve a efetiva compra/negociação de 560 milhões de doses ou apenas o indicativo de intenção de compra?”, questionou Fruet no pedido. Segundo o ofício da pasta, “pode-se afirmar que das 575.912.870 doses destinadas para atendimento das ações do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra covid, já foram contratadas 281.023.470 doses”.
Em outro trecho do documento, o chefe da assessoria de Comunicação Social da Saúde, Carlos Eduardo de Souza Gomes Fonseca, disse não ter havido despesas para a produção e distribuição de publicidade nas redes sociais. A pasta gastou, porém, R$ 1,1 milhão para divulgar na TV “publicidade que ressalta o compromisso do governo federal em vacinar toda a população”. No dia 25, o ministério fez sete inserções sobre o tema nas TVs Globo, Record, SBT, Band e RedeTV.
“É o primeiro documento oficial que a gente recebe deste ministro. O que vamos fazer é comparar o que ele diz nesta resposta agora com o informado (por ministros anteriores). E ver se isso (compra de vacinas) vai se concretizar nos próximos meses”, disse Fruet ao Estadão.
Na resposta a Fruet, a pasta listou as vacinas já adquiridas em seis processos de compra. Os principais são Coronavac (100 milhões de doses em dois contratos); Pfizer (pouco mais de 100 milhões); Janssen (38 milhões); Covaxin (20 milhões); AstraZeneca (12 milhões) e Sputnik V (10 milhões).
Duas não têm aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): a russa Sputnik V, e a indiana Covaxin. O governo diz que o pagamento nesses casos está vinculado à autorização do órgão regulador.
Pendências
A Fiocruz informou à reportagem que o acordo com a AstraZeneca tem duas partes: a produção de vacinas com base no Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) importado e a transferência tecnológica para produção do IFA no Brasil. Segundo o laboratório brasileiro, o contrato relativo à importação do IFA já foi assinado em setembro de 2020 e as vacinas estão sendo fabricadas com insumos produzidos no exterior. A previsão é de que 100 milhões de doses sejam entregues até julho. No entanto, o contrato para a produção do ingrediente no Brasil, que deverá garantir as outras 100 milhões de doses, ainda não foi assinado.
Procurado, o ministério não informou o motivo de ter considerado todo o montante previsto das vacinas produzidas pela Fiocruz como ainda em negociação. Também não respondeu sobre o fato de ter divulgado como compradas doses que ainda dependem de contratação.
Para lembrar - Segunda dose em falta
Pelo menos oito capitais brasileiras estão com a aplicação da segunda dose da Coronavac atrasada, como mostrou nesta terça-feira, 4, o Estadão. Na segunda-feira, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), defendeu que gestores públicos podem responder a ações de improbidade, caso atrasem a imunização complementar.
O problema em parte se deve a uma autorização de 21 de março (na gestão Eduardo Pazuello) que permitiu a falta de reserva. O governo promete iniciar a regularização nesta semana.
Em parte das capitais, a oferta do reforço está totalmente suspensa. Em outras, foi preciso restabelecer a ordem de prioridades da imunização, escalonando os grupos por idade ou ordem alfabética. Pelo menos 175 mil pessoas foram afetadas pela demora nos repasses. Há problemas em Salvador, Belo Horizonte, Porto Velho, Maceió, Recife, Porto Alegre, Aracaju e Rio. Em outro levantamento do Estadão com as 27 secretarias da Saúde, ao menos nove Estados admitem ter municípios nessa mesma situação.
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