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Exercício, ciência e treinamento

Opinião | Treino ‘fofo’ não funciona? Esqueça a ideia de que exercício bom faz sofrer

Atividades mais leves, realizadas com cargas menores, têm sido tratadas de forma pejorativa nas redes sociais, o que é uma tremenda injustiça

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Foto do author Guilherme Artioli

O leitor mais íntimo do universo fitness certamente já deve ter se deparado com o termo “treino fofo” em alguma rede social. Aos leitores que nunca ouviram falar, eu explico: treino fofo é uma forma pejorativa de se referir a treinos mais leves, realizados com cargas menores, menos intensos ou menos exaustivos. O termo tem ganhado força especialmente entre fisiculturistas amadores, mas também entre profissionais de educação física – o que considero bastante preocupante, pois escancara a carência de atualização científica ou de compreensão da ciência do exercício.

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Ao tratar com desdém esse tipo de treino (e por tabela quem treina dessa forma), fica implícita a ideia de que o tal treino fofo não funciona e não traz resultados. Nessa lógica, a razão para os que treinam fofo serem “frangos” é justamente o próprio fato de treinarem fofo.

Ainda dentro de acordo com raciocínio, treino bom é aquele em que a pessoa sai exausta, fadigada, dolorida. Como se um treino que não causasse dor e sofrimento fosse um treino ruim, de segunda categoria. Percebam que o termo “treino fofo”, apesar de relativamente recente, não tem nada de novo. É apenas uma reedição do velho “no pain, no gain.

O termo "treino fofo" deixa implícita a ideia de que treino bom é só aquele em que a pessoa sai exausta, com dor e esgotada.  Foto: Gorodenkoff/Adobe Stock

Do ponto de vista científico, não há respaldo que sustente essas ideias. Sim, os benefícios do exercício muitas vezes seguem uma relação de proporção entre dose de exercício e tamanho da resposta. Quanto maior a dose, maior a resposta. Isso, porém, guarda uma série de nuances. Por exemplo: a relação dose-resposta é linear apenas dentro de uma faixa estreita, acima da qual doses maiores não representam respostas melhores. Em outras palavras, doses maiores de exercício são melhores até um certo ponto.

Outra importante nuance diz respeito ao resultado que se quer ter com o treinamento. Algumas respostas são mais dependentes do tipo de estímulo, outras não. Para ganhar força, por exemplo, treinar com cargas altas é importante. Ironicamente, no caso da hipertrofia muscular (a eterna obsessão dos que mais menosprezam o treino fofo), as evidências mais atuais mostram que não é preciso treinar pesado para ter hipertrofia. Enquanto a crença popular diz que é preciso treinar na faixa de oito a 12 repetições para que os músculos cresçam (o que corresponde a levantar de 70 a 80% do máximo que a pessoa aguenta), estudos mostram que qualquer peso acima de 30% do máximo suportado resulta nos mesmos ganhos de hipertrofia, desde que o volume de treino seja o mesmo.

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Parece que pouco importa se a pessoa treina fazendo careta ou sorrindo.

A ciência também já derrubou há alguns anos o mito de que o crescimento muscular é impulsionado por pequenas lesões musculares que ocorrem durante a musculação. A evidência mais recente mostra que a hipertrofia muscular não apenas ocorre sem a presença de dano muscular, mas que o próprio dano pode interferir nos processos hipertróficos. Hoje, já se sabe a presença de dano muscular após o treino direciona os processos de síntese de proteína para o reparo do próprio dano, desviando-os da construção de novas estruturas musculares.

Portanto, o modo “no pain, no gain” poderia ser reescrito para “if pain, no gain” (se houver dor, não haverá ganho, em tradução livre).

Além de não se sustentar do ponto de vista científico, a ideia por trás dos termos “treino fofo” e “no pain, no gain” é perniciosa. Ao espalhar a noção de que apenas o treino doloroso, desconfortável e exaustivo funciona, e que todo o resto é digno de desprezo e chacota, as pessoas não dispostas a sofrer podem se sentir desencorajadas a treinar.

O cenário é ainda pior quando isso parte de profissionais de educação física, aqueles que justamente deveriam usar a ciência para aproximar as pessoas da prática de exercícios físicos, em vez de afastá-las. Se queremos que a prática de exercícios seja inclusiva, já passou da hora de abandonarmos termos e ideias excludentes.

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Opinião por Guilherme Artioli

Bacharel, mestre e doutor em Educação Física pela Universidade de São Paulo (USP). É pesquisador do Grupo de Pesquisa em Fisiologia Aplicada e Nutrição da Faculdade de Medicina da USP e professor do Instituto de Ciência Biomédicas da USP.

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