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Exercício, ciência e treinamento

Opinião|Uso de substâncias anabolizantes, como testosterona, é seguro com indicação médica? Não é bem por aí

Termos novos como “hormonologia” e “modulação hormonal” não passam de uma gourmetização do uso de bombas, e podem esconder os altos riscos ligados a esses produtos

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Foto do author Guilherme Artioli

A gourmetização parece que chegou para ficar. O termo, comum na gastronomia, refere-se a produtos que são criados intencionalmente para parecer sofisticados, de alta qualidade e exclusivos, mesmo que nem sempre sejam. No universo fitness, temos testemunhado, com preocupação, a gourmetização de uma prática antiga e perigosa: o uso de esteroides anabolizantes por pessoas saudáveis.

Se em outros tempos a prática era vista com medo e desconfiança, hoje o cenário mudou. Seu uso está sendo normalizado e, pasmem, é muitas vezes tido como seguro.

Uso de anabolizantes vem sendo normalizado por certos profissionais de saúde, que distorcem informações científicas. Foto: Rafal Rutkowski/Adobe Stock

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Em boa medida, essa mudança de cenário está sendo impulsionada pela ação de profissionais da saúde, sobretudo médicos, que advogam por uma suposta segurança do uso de esteroides. Alguns deles defendem isso abertamente, enquanto outros, mais discretos, fazem o endosso de maneira mais indireta e subliminar.

A gourmetização dos esteroides também se dá pela criação de pseudoespecialidades médicas, em especial a modulação hormonal e a hormonologia, o que dá uma roupagem científica à prática, e traz credibilidade ao que antes era visto com preconceito. O discurso em defesa do uso indiscriminado de esteroides é impregnado por distorções da ciência, negacionismo, e falácias lógicas.

“Hormônio é vida!”

Esse é um dos lemas mais repetidos pelos que defendem o abuso de esteroides. Ele, claro, tem um fundo de verdade. A testosterona, principal hormônio esteroide usado de forma indevida para fins estéticos, cumpre diversas funções importantes em nosso organismo, incluindo a regulação da massa muscular, da libido e da função sexual – tanto no sexo masculino como no feminino.

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Níveis adequados de testosterona também têm implicações importantes para a saúde. Por exemplo, estudos mostram que a baixa testosterona está relacionada com maior tempo de internação e maior chance de retornar ao hospital após receber alta. Em pessoas jovens e saudáveis, estudos mostraram que combinar altas doses de testosterona (cerca de 10 vezes acima do normal!) com musculação resulta em ganho de músculo três vezes maior do que seria sem o uso de testosterona.

Se normal é bom, quanto mais, melhor?

A desonestidade intelectual começa quando o argumento “testosterona é importante” passa a significar “quanto mais, melhor”. É claro que, em quantidades muito acima das normais, os ganhos de força e massa muscular são igualmente acima da normalidade. Mas isso vem com um custo, e a lista de efeitos adversos é grande.

Para citar apenas alguns: prejuízos ao coração e aos vasos, aumento de colesterol, danos ao fígado e maior risco de câncer e de rompimento de tendões. No sexo feminino, aparecem os efeitos virilizantes, que incluem engrossamento da voz, “entradas” nos cabelos, aumento de pelos corporais e faciais, além da hipertrofia do clitóris. A mortalidade entre usuários de esteroides é cerca de três vezes maior do que entre não usuários.

“A garantia sou eu!”

Para tranquilizar as pessoas que pretendem usar ou que já usam esteroides, os maus profissionais adotam o discurso do “comigo não tem problema, eu sei como fazer”.

Nessa lógica, os efeitos adversos não decorreriam do abuso das substâncias em si, mas, sim, da forma equivocada como são prescritos. Portanto, eles seriam profissionais superiores, detentores de uma ciência que sequer existe. É quase uma reedição do famoso comercial de televisores dos anos 90, no qual um vendedor quer convencer alguém a comprar um produto falsificado dizendo “la garantia soy yo!” (em portugês, “a garantia sou eu!”).

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Negacionismo e desqualificação das evidências

Para sustentar que o abuso de esteroides é seguro, é preciso muito malabarismo argumentativo e negacionismo. A estratégia é a mesma usada pela indústria tabagista desde a década de 1950, quando a ciência começou a mostrar com clareza os riscos do cigarro: desqualificar as evidências, classificando-as como junk science (ou “ciência lixo”), e estabelecer critérios intangíveis de qualidade científica como pré-requisito para aceitar os fatos.

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No caso dos esteroides, o argumento comum é o de que não há estudos experimentais estabelecendo causalidade entre uso de esteroides e seus efeitos adversos. Como nenhum comitê de ética jamais permitiria a condução de estudos que testassem altas doses de esteroides por períodos longos o suficiente para que danos sejam observáveis em pessoas saudáveis, resta aos negacionistas dizer que esse é o único tipo de estudo que serve. Já à ciência, resta fazer estudos de associação e identificar os mecanismos pelos quais os esteroides causam danos.

A rigor, um estudo de associação isolado realmente não é capaz de estabelecer causalidade. Mas, quando a literatura é farta em estudos de associação que, de forma quase uníssona, mostram resultados semelhantes, e que são apoiados por estudos de mecanismos que confirmam a plausibilidade das associações, é possível, sim, estabelecer uma relação de causa e efeito. E, no caso do abuso de esteroides, não faltam estudos como esses.

Os bons são a maioria

Apesar de uma minúscula parcela de médicos lamentavelmente fazer apologia ao abuso de esteroides, felizmente a maior parte dos profissionais respeita a ciência, atua de forma responsável e não endossa esse tipo de prática. Se você faz uso de esteroides e precisa de ajuda para parar de usar, procure um bom médico. E, lembre-se: a verdadeira especialidade que trata dos hormônios é a endocrinologia.

Opinião por Guilherme Artioli

Bacharel, mestre e doutor em Educação Física pela Universidade de São Paulo (USP). É pesquisador do Grupo de Pesquisa em Fisiologia Aplicada e Nutrição da Faculdade de Medicina da USP e professor do Instituto de Ciência Biomédicas da USP.

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