Quando falamos em vacinas, quase instantaneamente vem a nossa mente a prevenção de doenças infecciosas, como poliomielite, sarampo, catapora, gripe, covid-19 e até mesmo dengue. Mas o que passa despercebido por muitas pessoas é que as vacinas também podem ajudar a prevenir e, em alguns casos, até mesmo tratar alguns tipos de câncer. E há perspectivas de que o arsenal de imunizantes contra tumores aumente.
Abaixo, saiba mais sobre os tipos de câncer que podem ser prevenidos ou tratados com o apoio de vacinas.
Câncer de colo do útero
A vacina mais conhecida para prevenção de câncer é a do HPV (sigla em inglês do papilomavírus humano), o vírus sexualmente transmissível mais comum do mundo e que está fortemente associado ao desenvolvimento de câncer de colo do útero – o principal tumor ginecológico feminino, sendo o terceiro mais frequente atualmente (atrás do tumor de mama e colorretal) e o quarto que mais matou mulheres no Brasil em 2021, segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Há dez anos esse imunizante está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) para meninos e meninas de 9 a 14 anos – além de adultos que pertencem a alguns grupos de risco específicos, como as mulheres até os 45 anos imunodeprimidas, com HIV ou transplantadas, e homens e mulheres vítimas de abuso sexual. No SUS, a vacina é aplicada em duas doses.
Existem cerca de 200 subtipos de HPV e a vacina tetravalente disponível na rede pública protege contra os tipos 6, 11, 16 e 18 – os dois primeiros causam as verrugas genitais, enquanto os dois últimos são responsáveis por cerca de 90% dos casos de câncer do colo do útero. Há ainda um outro imunizante, nonavalente, que protege também contra os subtipos 31, 33, 45, 52 e 58 do HPV, e está disponível somente em clínicas particulares.
“A vacina contra o HPV é essencial para evitar a transmissão do vírus. A nossa produção de anticorpos é muito melhor nessa faixa etária, mas a indicação para essa idade é principalmente porque as crianças e os adolescentes ainda não foram expostos ao vírus. Nós podemos adquirir imunidade depois do contato com o vírus, mas isso acontece tendo a infecção, que é o que pretendemos evitar”, explica a cirurgiã oncológica Jacqueline Menezes, membro da diretoria nacional da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) e titular do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Segundo Jacqueline, é importante frisar que a infecção pelo HPV é extremamente comum e que cerca de 80% da população tem, teve ou terá contato com o vírus – mas a maioria das pessoas não desenvolverá lesões e, mesmo que desenvolva, poucas vão evoluir para câncer. “O problema é que no Brasil, e em outros países subdesenvolvidos, o câncer de colo do útero ainda é um importante problema de saúde pública e a vacina é uma ferramenta importante”, diz.
Países desenvolvidos como a Austrália, por exemplo, que há muitos anos realiza uma grande campanha de vacinação em massa contra o HPV e tem um programa de rastreamento muito eficaz, praticamente erradicou o câncer de colo do útero – a meta do governo local é eliminar a doença até 2038.
“Muitas pacientes me perguntam: quando vão inventar uma vacina contra o câncer? Eu sempre respondo que já inventaram. A vacina do HPV, embora seja uma vacina para proteger contra o vírus, é a principal forma de proteger contra o câncer de colo de útero, afinal, quase todos os casos estão associados à infecção. Atuo principalmente em tumores ginecológicos e posso afirmar que essa é a vacina que tem maior impacto na prevenção e, com ela, conseguiríamos erradicar essa doença, que ainda é detectada tardiamente”, afirma Jacqueline.
Apesar dos benefícios, a vacinação contra o HPV ainda está bem abaixo do esperado. Entre 2014 e 2023, 70,9% das meninas brasileiras receberam a primeira dose, enquanto apenas 54,3% delas foram imunizadas com a segunda dose. No caso dos meninos, o índice é ainda pior: 45,3% receberam a primeira dose, e apenas 27,7% a segunda.
Uma das explicações para a baixa adesão à vacinação é a crença equivocada de que a vacina seria uma forma de estimular ou incentivar o início da atividade sexual precocemente, enquanto, na verdade, o objetivo é garantir a proteção contra o vírus.
O Inca estima cerca de 17 mil novos casos de câncer de colo de útero no Brasil por ano e 6.600 mortes. “O câncer de colo de útero não é o mais comum em países desenvolvidos, justamente porque eles têm programas eficazes de rastreamento e vacinação. É muito triste diagnosticarmos a doença em estágios mais avançados, sabendo que ela é prevenível. E é a vacinação, juntamente com a recente implementação do teste molecular para pesquisa de HPV no SUS, que vão mudar a realidade do câncer de colo de útero no Brasil”, ressalta a médica.
É importante ressaltar que a vacina do HPV não protege somente contra o câncer de colo do útero – ela atua também na prevenção de tumores no ânus, no pênis, na vagina, na vulva e orofaringe. “Todos esses tumores também estão associados à infecção pelo HPV, embora o foco principal, por seu grande impacto em saúde pública, seja o câncer de colo do útero”, destaca Jacqueline.
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Câncer de fígado
O hepatocarcinoma, ou câncer de fígado, é um tipo de câncer que na maioria das vezes se desenvolve a partir de uma cirrose hepática – uma doença grave associada sobretudo ao abuso do consumo de álcool ou à hepatite crônica. Outro fator de risco importante para cirrose é o acúmulo de gordura no fígado (a esteatose hepática não alcoólica) que, se não tratada, também pode evoluir para câncer. O que leva à hepatite crônica é a infecção pelos vírus da hepatite B ou C – e existe vacina disponível contra o tipo B.
Acredita-se que cerca de 30% dos casos de hepatocarcinoma são causadas pelo vírus da hepatite B – e não existe vacina para hepatite C. O imunizante contra a hepatite B está disponível na rede pública e é administrada em três doses: a primeira 12 horas após o nascimento, com reforços no período de um a dois meses e, novamente, dos seis aos 18 meses.
Segundo a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), adolescentes e adultos não vacinados anteriormente devem ser vacinados com três doses com intervalo de um mês entre primeira e a segunda; e de cinco meses da segunda para a terceira dose. Pessoas com comprometimento do sistema imunológico necessitam de dose dobrada em quatro aplicações para melhorar a resposta ao estímulo produzido pela vacina.
O Inca estima o surgimento de 10.700 novos casos de câncer de fígado por ano e 10.600 mortes.
“O hepatocarcinoma é tão típico no exame de imagem que é possível afirmar que é câncer sem necessariamente realizar uma biópsia. E não é na análise do tumor que avaliamos se o câncer foi causado por uma infecção prévia pelo vírus B ou C, mas, sim, na sorologia (sangue) do paciente. Ao diagnosticar o câncer, avaliamos a história do paciente: se é etilista, se é obeso, se teve hepatite B ou C, entre outros fatores”, explica Jacqueline.
Uma ressalva importante feita pela médica é que existe um calendário geral de vacinação voltado à população adulta e que todas as vacinas devem estar atualizadas – elas são fundamentais para pacientes que estão em tratamento contra o câncer.
“A gente pensa que vacina é coisa de criança, mas adulto também precisa se vacinar. Estar com o calendário vacinal adequado traz melhores desfechos de sobrevida aos pacientes com qualquer tipo de câncer e é fundamental falar sobre isso com o oncologista”, afirma.
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Câncer de bexiga
Pode parecer estranho num primeiro momento, mas a vacina BCG – indicada para evitar formas graves de tuberculose e também disponível no SUS – é uma das principais armas no tratamento contra o câncer de bexiga superficial (aquele que ainda não invadiu o músculo, e que representa cerca de 70% dos casos).
O imunizante é injetado diretamente dentro da bexiga para estimular a ação dos linfócitos T (células de defesa do organismo) para combaterem o tumor. A vacina BCG para câncer de bexiga é considerada a primeira imunoterapia para o tratamento de câncer.
O câncer de bexiga é mais comum em pacientes tabagistas (fumar triplica o risco de desenvolvimento da doença) e é mais frequente em homens mais velhos. O Inca estima o surgimento de 11.370 novos casos anuais, além de quase 5 mil mortes. O principal sintoma é o sangramento na urina – 90% dos casos apresentam esse sinal.
Ao receber o diagnóstico do câncer superficial de bexiga, o primeiro passo é fazer a ressecção (como se fosse uma raspagem) do tumor, para eliminá-lo. Em seguida, é feita a aplicação da vacina BCG: o protocolo padrão ouro indica seis doses de indução (uma por semana) e, depois, doses de manutenção a cada três a seis meses. O tratamento pode durar até três anos.
“A bactéria da BCG é atenuada em laboratório para não existir a possibilidade de causar uma infecção no paciente, no caso, a tuberculose. Essa bactéria produz um tipo de imunidade que não é específica contra o câncer. O que isso significa? Que ela não vai destruir as células do câncer de bexiga, mas vai ativar o sistema imunológico do paciente para que ele fique mais alerta e tenha mais chances de identificar células do câncer de bexiga que queiram progredir. É o que chamamos de imunidade inespecífica”, explica o uro-oncologista Bruno Benigno, coordenador de uma das equipes de urologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
Importante ressaltar que a vacina BCG não é aplicada isoladamente, ela é uma etapa do tratamento e atua num cenário adjuvante para diminuir o risco de recorrência do tumor – ela diminui em 47% o risco de recidiva quando comparada com o tratamento cirúrgico isolado. “Seu uso é clássico. A gente até esquece que a BCG é vacina de tuberculose. Para nós, a BCG é remédio. Praticamente todos os protocolos de tratamento de câncer de bexiga não invasivo envolvem o uso”, acrescenta Jacqueline.
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Câncer de próstata
O câncer de próstata é o segundo mais comum entre os homens (fica atrás somente do câncer de pele não melanoma) e cerca de 75% dos casos acontecem em idosos com mais de 65 anos. Pode ser um tumor de evolução muito lenta, que não chega a apresentar um risco à saúde, mas há casos em que o tumor cresce rapidamente, espalhando-se para outros órgãos. O Inca estima o surgimento de 71.730 casos anuais e ao menos 16.300 mortes.
Segundo Benigno, o tumor de próstata é chamado de tumor frio, pois ele responde pouco ao sistema imunológico. Ainda assim, foi desenvolvida uma vacina terapêutica (uma imunoterapia) chamada Sipuleucel-T, que tem como objetivo estimular o sistema imunológico do paciente a reconhecer e combater as células cancerígenas do câncer de próstata.
Mas essa vacina não é para qualquer um – ela é recomendada somente em casos de tumor metastático (que já invadiu outros órgãos) e de pacientes que não respondem mais à hormonioterapia.
Além disso, a vacina não é produzida em massa – ela é feita de forma individualizada, usando sangue do próprio paciente para estimular o organismo a combater o câncer. “Eles pegam um fragmento do tumor do paciente e uma amostra de sangue. As células brancas (de imunidade) do sangue são separadas das vermelhas e colocadas em contato com as células do tumor para desenvolver anticorpos. Depois de quatro dias, elas são multiplicadas e reintroduzidas na corrente sanguínea do paciente. E isso resultou em aumento de sobrevida”, conta Benigno.
Mas há um problema: o custo desse tratamento. Estima-se que cada aplicação dessa vacina custa em torno de US$ 110 mil (cerca de R$ 570 mil) nos Estados Unidos, o que, na prática, torna quase inviável seu uso rotineiro.
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Para o futuro: câncer de pele melanoma
O melanoma é considerado o tipo de câncer de pele mais agressivo e letal, pois tem uma alta probabilidade de se espalhar para outros órgãos. Embora o câncer de pele seja o mais comum no Brasil, o melanoma representa somente 4% dos casos. O Inca estima cerca de 9.000 novos casos ao ano e quase 2 mil mortes em decorrência da doença.
“O melanoma é o tumor que passou pela maior revolução nos últimos anos. Dez anos atrás, a sobrevida era baixíssima. Com o passar dos anos, descobriu-se que o melanoma é uma doença extremamente imunogênica e entendemos que faz mais sentido ensinar nosso corpo a lutar contra as células do que criar medicamentos para matar essas células. E é isso que a imunoterapia disponível atualmente faz de forma muito eficaz”, diz Jacqueline.
Mas cientistas decidiram estudar se a associação de uma vacina à imunoterapia promoveria uma resposta ainda maior. Desde então, passaram a pesquisar os efeitos de uma vacina de RNA mensageiro (a mesma tecnologia usada em vacinas contra a covid-19) como adjuvante no tratamento desses pacientes.
A boa notícia é que, no final do ano passado, as farmacêuticas Moderna e MSD publicaram um estudo de fase 2, feito com um grupo de 157 pacientes, que comparou o uso isolado de imunoterapia (pembrolizumabe) com o uso da imunuterapia associada à vacina V-940 (que usa a tecnologia de RNA mensageiro). Os resultados indicaram que a combinação do imunizante com a imunoterapia reduziu o risco de recorrência em 44% quando comparada com a utilização apenas da imunoterapia. Os resultados foram recebidos com entusiasmo pela comunidade científica e são considerados um marco no combate à doença.
“Por enquanto, isso ainda não muda a prática clínica, porque precisamos dos resultados do estudo fase 3. Mas as farmacêuticas estão recrutando pacientes em vários países do mundo, com o mesmo desenho de estudo. E, com base nos resultados, vamos realmente ter certeza desse benefício e incorporá-lo, ou não, em nossa prática”, informa Jacqueline. Mesmo ainda sendo estudo, a oncologista acredita que esse provavelmente será um avanço no tratamento do melanoma. “Em oncologia, nada é nunca e nada é sempre. Não é para todo paciente, mas é muito promissor”, finaliza.
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