Todo homem, pelo menos uma vez na vida, foi questionado (ou até se questionou) sobre o seu comportamento baseado no que a sociedade afirma ser uma “conduta de homem”. Só que o estereótipo de gênero, que são preconceitos sobre características e funções atribuídas exclusivamente ao sexo feminino ou masculino, está ligado a vários prejuízos. No caso deles, por exemplo, é comum observar um bloqueio para lidar com as emoções, o que eventualmente impacta na saúde mental. Também se nota uma negligência em relação à saúde física, situação que pode resultar na descoberta de doenças só em fases avançadas.
Por isso mesmo, em 1992, foi criado o Dia do Homem, comemorado anualmente no 15 de julho. A ideia é justamente alertar sobre a importância da saúde masculina. “É histórico e bastante clássico em nossa sociedade, principalmente no Brasil, os homens não terem uma cultura de cuidado. Em vez de focar na prevenção, eles buscam ‘apagar incêndios’. Ou seja, se houver problema, aí ele procura um médico”, afirma o urologista Leonardo Seligra, membro da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU).
Em geral, depois que uma menina deixa de ser atendida pelo pediatra, ela dá início às consultas com um ginecologista. A história é diferente com os homens. De acordo com a SBU, em 2022 foram registrados 200 mil atendimentos de homens com urologista ante mais de 1,2 milhão de atendimentos femininos com ginecologista. Por causa do machismo, boa parte deles foge, por exemplo, do exame de toque retal, uma das formas de diagnosticar o câncer de próstata – o primeiro mais incidente entre os homens, desconsiderando o câncer de pele não melanoma.
Ainda em 2022, um levantamento do Centro de Referência em Saúde do Homem de São Paulo mostrou também que a ida ao médico, muitas vezes, é incentivada pelos familiares – ou seja, não é uma decisão que parte dos homens. A análise constatou que 70% deles foram atrás de atendimento por cobrança de terceiros.
As razões para isso são diversas: medo, constrangimento, desinformação. De acordo com Seligra, isso é nítido dentro do consultório. “Muitos pacientes vêm com vergonha, e não conseguem começar um assunto. Então, a primeira consulta é um passo difícil. Por isso, o médico também tem que entender que, às vezes, o homem não está tão disponível a se abrir naquele momento.”
“O ‘cuidar’ é um verbo conjugado pelas mulheres, né? Para o homem, buscar ajuda médica ou adotar práticas de autocuidado é um sinal de fraqueza”, afirma o empreendedor social Luiz Kfouri, de 41 anos. Há 10 anos, ele passou a se questionar sobre as dinâmicas socioculturais que aprendeu durante toda a vida, e foi atrás de respostas.
“É comum, infelizmente, ver homens de todas as idades agindo de modo nocivo. E devido a esse meu incômodo, decidi criar um grupo que ajuda a sensibilizar e conscientizar os homens com foco na regeneração masculina e, a partir daí, construir uma sociedade mais igualitária e amorosa”, diz ele, citando o portal Mundo do Homem.
“Era impensável, anos atrás, falar que tinham homens se reunindo para conversar sobre questões emocionais, autocuidado, relacionamentos, desafios e até impotência. E ter esse espaço seguro para trabalharmos nossa escuta ativa, vulnerabilidade e empatia, é transformador”, afirma.
Kfouri lembra ainda que é comum receber o agradecimento de mulheres ligadas aos integrantes do grupo por causa da mudança de comportamento. “Apesar de a iniciativa ter um foco no indivíduo, a ideia é justamente que reverbere no coletivo. Porque os homens brancos sempre tiveram espaço, sempre foram ouvidos. Mas trabalhar a escuta ativa ajuda outras populações a terem essa mesma oportunidade”, reflete.
Desconstruindo o “homem-macho”
Nos tempos das cavernas, os homens iam à caça enquanto as mulheres cuidavam dos filhos. Consequentemente, isso fazia com que eles fossem encarados como protetores e provedores da casa. Esse conceito seguiu presente por gerações e gerações e, apesar de muito ter mudado, há um longo caminho a ser percorrido.
Essa ideia de macho-alfa está tão impregnada na cabeça dos homens que, frequentemente, eles só vão parar em uma consulta médica devido a questões como disfunção erétil e problemas sexuais. Não é que esses fatores não mereçam ser tratados, mas esse comportamento evidencia como, para eles, a capacidade sexual está acima da saúde como um todo.
Inclusive, é nesse tipo de atendimento que muitos deles descobrem situações como colesterol alto, glicemia elevada e hipertensão, além de estresse e outros quadros mentais. “Posso afirmar que mais de 30% das queixas sexuais estão relacionadas com a área psicológica”, ressalta o médico da SBU.
O conceito de saúde da Organização Mundial de Saúde estabelece que um ser saudável tem equilíbrio do bem-estar físico, mental e social. “A capacidade de sentir e compreender as emoções é o que nos faz humanos. A pessoa que reprime suas emoções, ignora seus sentimentos e, sendo assim, não os resolve. E esse acúmulo de emoções reprimidas gera estresse, maior agressividade, menos tolerância, insensibilidade e problemas de relacionamento”, descreve Luana Menezes, psicóloga e autora do livro infantil Eu Só Quero Brincar (Editora Literare Books International).
O especialista em marketing esportivo Gilmar Júnior, de 30 anos, demorou para entender que o silêncio não iria ajudar a solucionar a sua dor. “Depois de um término de namoro que foi um pouco traumático, fiquei em silêncio por muito tempo, achando que o tempo ia resolver tudo”, conta. A demonstração de sentimentos, para ele, era vista como fraqueza – algo que era reafirmado especialmente nos grupos de esportes coletivos dos quais sempre participou.
Mas, com o tempo, ele entendeu que precisava de uma ajuda externa. “A terapia não só me ajudou a lidar com o término, como a entender diversas outras esferas da minha vida. Me ajuda a nomear as coisas que eu sinto.”
De acordo com dados da cartilha “Suicídio: informando para prevenir”, publicada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM), a mortalidade de homens por suicídio é três vezes maior do que entre as mulheres. O estudo também mostra que o “reforço a esse papel de gênero muitas vezes impede que os homens de procurarem ajuda para os sentimentos suicidas e depressivos”.
Claro que é preciso fazer certas distinções entre os homens, levando em conta fatores como raça e orientação sexual. “A terapia me ajudou, entre outras coisas, a me reconhecer como homem negro. Como a escritora Conceição Evaristo fala, o homem negro e o branco só se igualam quando são machistas”, diz.
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Hoje, Gilmar tenta criar ambientes seguros ao seu redor para continuar combatendo o machismo. “Sempre tento levar o conhecimento para fora, e não só sobre o machismo, mas sobre o preconceito de forma geral. Às vezes, o constrangimento é necessário para que ocorra uma mudança”, afirma. Uma das transformações significativas que ele acompanhou é em seu time de flag football, Brasil Devilz. Hoje, os integrantes conversam sobre “sentimentos, certezas e incertezas da vida”. “Ainda é algo raro, que não vemos no dia a dia”, avalia.
Como ajudar na luta contra o machismo?
“Eu sinto que o maior desafio para a ruptura do machismo está na quantidade de homens que ainda negam que ele existe ou que se assumem machistas”, afirma Kfouri. O sentimento de superioridade perante outros grupos e o alto grau de irritabilidade e agressividade são sinais de preocupação.
Para a psicóloga Luana, é fundamental que o homem expresse o que sente, reconhecendo suas vulnerabilidades e admitindo que tem falhas e conflitos. A prática ajuda não só a desconstruir pensamentos e/ou atitudes machistas, mas também a criar crianças com mentes abertas e maior conhecimento emocional.
“É importante reparar nos comportamentos e nas falas dos homens. Precisamos constantemente questionar e refletir sobre esses aspectos, buscando sempre o respeito”, diz. De acordo com ela, é fundamental que essa conversa reverbere entre toda a família, já que, normalmente, é esse núcleo que transmite preconceitos e estereótipos para as crianças.
O médico Leonardo Seligra acredita que a informação é a grande aliada para combater esse cenário. “A geração um pouco mais antiga tem dificuldade em buscar ajuda e, às vezes, quando faz isso, é de maneira clandestina, chegando a informações inadequadas em blogs e outros espaços da internet. Aí acaba sendo pior”, avalia. Já a geração mais nova, na percepção dele, conta com uma vantagem: uma maior abertura para a discussão sobre sexualidade e outras condições de saúde.
Algumas obras podem ajudar a dar o pontapé inicial na conversa. É o caso de documentários como The Mask You Live In (2015) e O silêncio dos Homens (2019), que abordam justamente os estereótipos da masculinidade e os efeitos nocivos que isso pode ter para o homem e para a sociedade. Já o livro Seja homem: a masculinidade desmascarada, de JJ Bola (da Editora Dublinense), traz exemplos de mitos criados pela sociedade que contam para os meninos desde pequenos. Será que homem não pode chorar mesmo? Ou será que o choro entalado não é justamente a razão de tanta tristeza?
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