Idosa morre após ter cirurgia de urgência negada pela Hapvida NotreDame mesmo com liminar

Matildes Ramos teve indicação de remoção cirúrgica da vesícula, mas morreu de infecção generalizada após companhia se negar a cumprir decisão judicial por quase 30 dias; operadora diz que prestou atendimento

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Foto do author Fabiana Cambricoli
Foto do author Ana Lourenço
Atualização:

Com medo de ficar sem atendimento médico em um caso de emergência por causa da sobrecarga do SUS, a dona de casa Matildes Ramos, de 60 anos, sempre dizia para os familiares que sonhava com o dia em que teria um plano de saúde. Em 2023, a executiva de vendas Tatiane Aparecida Peroni, de 41 anos, finalmente conseguiu contratar um convênio da Hapvida para a mãe, mas não imaginava que Matildes morreria ao ter uma cirurgia de urgência negada na própria rede hospitalar do convênio, mesmo após obter uma decisão judicial favorável.

Como revelou o Estadão, o grupo Hapvida NotreDame, maior empresa de planos de saúde do País, vem descumprindo sistematicamente decisões judiciais e negando tratamentos a pacientes com doenças graves mesmo em casos em que há ordem judicial garantindo o acesso às terapias. O comportamento, que se intensificou nos últimos meses segundo apuração da reportagem, está irritando o Poder Judiciário e é alvo de investigações no Ministério Público do Estado de São Paulo.

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Um dos casos de desobediência da Hapvida a uma ordem judicial foi o de Matildes: ela morreu no dia 10 de outubro, em um hospital da operadora em Ribeirão Preto, no interior paulista, de infecção generalizada e colangite (inflamação dos canais biliares), após esperar por mais de um mês a realização de uma cirurgia de remoção de vesícula tida como urgente. Questionada sobre o caso, a Hapvida NotreDame diz que prestou atendimento à paciente (leia mais abaixo).

Segundo documentos apresentados pela família, a cirurgia foi indicada por um médico no dia 31 de agosto, após a dona de casa procurar o consultório com dores abdominais e pele e olhos amarelados (icterícia). Na clínica, passou por exames que indicaram a necessidade de retirada da vesícula. Com o encaminhamento do especialista em mãos, a família de Matildes tentou autorização junto à operadora para a realização da cirurgia, mas recebeu negativa de cobertura sob a alegação que o contrato ainda estava em período de carência.

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Diante da gravidade do caso, a paciente ingressou com pedido de liminar na Justiça e recebeu decisão favorável no dia 12 de setembro. No despacho, o juiz obriga a operadora a realizar a operação em até três dias e fixa multa de R$ 500 por dia de descumprimento. A companhia, diz a filha de Matildes, ignorou a decisão do juiz. “Não cumpriram e nem deram satisfação. Enquanto isso, eu vendo minha mãe piorando”, diz Tatiane.

Nesse período, a filha da paciente diz ter tentando de tudo: abriu queixa no site Reclame Aqui, tentou contato inúmeras vezes com a operadora por meio de seus canais de comunicação, mas nem sequer era atendida. “Eu procurei até os diretores da Hapvida no Linkedin, mandava mensagem, estava desesperada, mas nunca tive retorno”, conta.

De acordo com Lidiane Gualtieri, advogada que representa a família, após a primeira decisão judicial, a operadora ficou inerte e, quando contestada, alegou que não cumpriria a decisão sob o argumento de que a paciente tinha doença pré-existente - tese que já havia sido refutada pelo juiz.

Ao ser comunicado da desobediência da Hapvida, no dia 22 de setembro, o magistrado aumentou para R$ 2 mil a multa diária por descumprimento e determinou que a ordem fosse cumprida com urgência. Mais uma vez, a empresa ignorou a decisão. Matildes, com o quadro agravado, precisou procurar o pronto-socorro da operadora no dia 25 de setembro. “Quando chegou lá, ela foi internada e tentaram a todo custo fazer meu irmão assinar um termo em que ele se responsabilizaria pelos custos da cirurgia”, conta Tatiane.

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Tatiane Peroni perdeu a mãe, Matildes Ramos, após a Hapvida se negar a cumprir determinação judicial que a obrigava a realizar cirurgia de urgência Foto: Celio Messias/Estadão

Como a responsabilidade do custeio do procedimento era da operadora, a família se negou a assinar o termo e informou o fato ao juiz. No dia 26 de setembro, o magistrado Francisco Camara Marques Pereira repreende a empresa nos autos e determina que o valor máximo arrecadado com as multas diárias passe de R$ 50 mil para R$ 100 mil.

No despacho, ele afirma que a tentativa do hospital de fazer a família da paciente arcar com o procedimento demonstra infração à decisão judicial e diz que o aumento do limite da multa se justifica porque a Justiça não pode se mostrar complacente com atitudes “que afrontam o Judiciário e pouco ou nada valorizam a vida e saúde de sua cliente”. “A autora é idosa e vem passando por agruras e intenso sofrimento como decorrência da conduta da operadora, a qual descumpre a prescrição do seu próprio médico. [...] (A Hapvida) Também vem fazendo ouvidos moucos à decisão da Justiça, fato este que vem se tornando corriqueiro por esta ré”, escreveu o juiz.

Apesar da pressão da Justiça, o hospital gerido pela operadora não realizou a cirurgia de remoção da vesícula, mas informou a família que faria um procedimento para a colocação de uma prótese nas vias biliares da idosa para desobstrução dos canais. A equipe médica disse também que precisava investigar uma suspeita de câncer - enquanto isso, a cirurgia seguiu sendo protelada. “Depois de colocarem essas próteses, liberaram ela no dia seguinte para casa, sem anti-inflamatório ou antibiótico”, conta Tatiane.

Uma semana depois, no dia 9 de outubro, Matildes foi ficando mais fraca e começou a ter vômitos e calafrios, o que fez a família retornar com ela ao pronto-socorro, mas já era tarde. “Ela chegou lá e os médicos diagnosticaram uma infecção generalizada, a levaram para a UTI, mas, no dia seguinte, ela faleceu”, diz Tatiane. A morte ocorreu após 28 dias de descumprimento da decisão judicial pela Hapvida. “Minha mãe era cheia de vida, mas eu a vi definhando aos poucos sem saber a quem recorrer. Esse plano de saúde destruiu a vida dela e a da família também”, diz Tatiane.

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Especialistas de sociedades médicas confirmaram ao Estadão que um quadro de obstrução das vias biliares não tratado da forma adequada pode rapidamente evoluir para uma sepse (infecção generalizada). “Se os canais biliares ficam entupidos, a bile fica estagnada no órgão. Como é um material muito propício à colonização bacteriana, essa estagnação pode causar infecção, o que faz do quadro uma urgência”, explica Fernando Henrique Porto, membro da equipe diretora da Federação Brasileira de Gastroenterologia.

“Em casos de colangite com obstrução dos canais biliares, a cirurgia se impõe e tem que ser feita o quanto antes”, diz Carlos Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Os especialistas explicam que essa desobstrução até pode ser feita pela inserção de um cateter (método CPRE), como o realizado por Matildes, mas nem sempre isso é suficiente - em alguns casos, é preciso retirar a vesícula. Além disso, a idosa só recebeu o cateter quase um mês após o diagnóstico, prazo visto como muito longo pelos médicos. “Feito o diagnóstico, o procedimento tem que ser realizado idealmente dentro de 72 horas, senão aumenta o risco de sepse”, diz Porto.

“A sepse ocorre a partir de uma reação do organismo para tentar combater uma infecção e pode acontecer em casos de colangite. Se não for tratada rapidamente, ela pode levar à disfunção de múltiplos órgãos. A cada hora em que se atrasa o diagnostico ou o tratamento da sepse, o risco de morte aumenta em 8%”, diz Daniela Souza, presidente do Instituto Latino Americano de Sepse (ILAS).

Questionada sobre o caso de Matildes, a empresa diz que a paciente procurou o atendimento para a doença três dias após ter contratado o plano e que, após o recebimento da decisão judicial, “ela foi atendida com quadro estável em pronto-socorro e internada”. Disse ainda que, “após a realização da cirurgia, a usuária recebeu alta”.

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Como já mencionado, documentos apresentados por familiares e as manifestações do juiz do caso mostram que as informações não conferem. A idosa só recebeu atendimento depois de o magistrado aumentar a multa por descumprimento duas vezes e foi atendida porque buscou o pronto-socorro. Ainda assim, não passou pela cirurgia indicada, mas, sim, por um procedimento para colocação de cateter nas vias biliares - o que nem sempre resolve o problema e que foi feito tardiamente, de acordo com especialistas. A companhia foi questionada novamente sobre a não realização da cirurgia de remoção da vesícula, mas disse que não comentaria mais o caso.

Paciente morre após seis meses sem tratamento adequado

Advogado especializado em direito à saúde em Natal, Tertius Rebelo diz que uma de suas clientes, Raimunda Jácome, também morreu após ter o tratamento negado pela Hapvida mesmo com liminar favorável. Em junho de 2021, então com 79 anos, a paciente começou a ter dores na coluna lombar e passou algumas vezes pelo pronto-atendimento da operadora, onde recebia apenas analgésicos. Cansada de ver a mãe nessa situação, a enfermeira Rozimeire Jácome, de 48 anos, buscou um neurologista em novembro daquele ano, que diagnosticou uma estenose lombar (estreitamento do canal medular) grave e informou que a idosa deveria passar por uma cirurgia para descompressão medular.

O procedimento foi negado pelo convênio e a família de Raimunda decidiu, então, entrar com uma ação judicial. A liminar foi concedida no dia 16 de dezembro daquele ano, mas a operadora se negou a cumpri-la. Rebelo conta que entrou, então, com pedido de bloqueio judicial de valores para custear a realização da operação. O juiz acatou o pedido no dia 7 de janeiro, mas, na data, o quadro da idosa já havia piorado muito. Por causa da estenose lombar, a paciente, que antes era ativa, estava acamada, com fortes dores e constipação. Ela morreu no dia 9 de janeiro.

“Eu me senti muito impotente, muita angustiada diante de tanta negligência. Um total descaso com uma pessoa que pagava há mais de 30 anos o plano de saúde e, quando precisou, não teve assistência”, desabafa Rozimeire.

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Na certidão de óbito, constam como causas insuficiência respiratória aguda, doença isquêmica do coração e constipação. Pela idade e comorbidades que Raimunda já tinha, como diabetes e hipertensão, não é possível apontar a falta da cirurgia como única causa para o óbito, mas médicos afirmam que a estenose não tratada provavelmente contribuiu para a piora geral do quadro clínico dela.

De acordo com Orlando Righesso Neto, ortopedista, cirurgião de coluna e presidente da Comissão de Campanhas da Sociedade Brasileira de Coluna, quanto maior o adiamento da cirurgia em casos de estenose lombar grave, maior o risco de a pessoa apresentar alguma complicação. “O paciente vai ficando cada vez mais incapacitado, e, quando ele não consegue mais se deslocar, isso aumenta muito o risco de problemas mais graves, como trombose venosa, embolia, infecção de urina”, explica ele.

Wuilker Knoner, presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, também associa a imobilização ao risco de complicações. “A imobilidade vai fazer com que o paciente fique mais deitado, aumentando o risco de uma pneumonia e outros problemas respiratórios”, diz.

As complicações em casos de estenose lombar também podem vir do uso prolongado de analgésicos do tipo opioides, que foram prescritos para Raimunda para que ela suportasse a dor enquanto a cirurgia não era feita. Alguns desses medicamentos podem, entre outros eventos adversos, causar constipação grave, segundo os médicos. No caso da idosa, essa constipação levou à uma infecção abdominal. Knoner diz que esses remédios devem ser prescritos com cautela e que, nos casos de estenose moderada ou grave, o tratamento cirúrgico é o mais indicado.

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Rebelo diz que o descumprimento por parte da operadora é frequente. “O juiz determina, eles não cumprem, entram com vários recursos protelatórios. E esse atraso pode comprometer a saúde dos pacientes porque a doença progride”, afirmou o advogado. A empresa foi questionada sobre o caso de Raimunda, mas disse que não comentaria.

Pacientes com câncer relatam desespero por decisões não cumpridas

A progressão da doença, como aconteceu com Matildes e Raimunda, é justamente o maior medo de pacientes com câncer do grupo Hapvida NotreDame que também não conseguem ter acesso aos tratamentos pela resistência da empresa em cumprir decisões judiciais.

A autônoma Tati (nome fictício), de 35 anos, faz tratamento para um câncer de mama pela NotreDame e vem tendo dificuldades para ter acesso às terapias. “Por ser um câncer muito agressivo, minha mastologista indicou um tratamento sistêmico, que inclui quimioterapia, terapia hormonal, terapia alvo e imunoterapia”, conta ela, que, em 20 dias, viu seu tumor passar de meio centímetro para 5,5 centímetros.

Como a operadora não estava liberando a químio, a paciente entrou com uma ação judicial e conseguiu a autorização, mas, após o terceiro ciclo, o plano exigiu a repetição de exames e decidiu suspender o tratamento, contrariando o que havia sido determinado pelo juiz. “É uma situação complicada porque meu tumor crescia 1,5 centímetro por semana e, quando a quimioterapia é interrompida, ele volta a avançar”, diz ela, que teme que a demora impeça o controle da doença e a leve à morte. “Sou mãe solo de duas crianças pequenas, saí de um casamento com violência doméstica, não sei mais o que fazer”, disse ela ao Estadão no fim de novembro.

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De lá para janeiro, seu quarto ciclo de quimioterapia aconteceu e hoje ela aguarda a aprovação do plano para os próximos passos do tratamento, que incluem quimioterapia e cirurgia.

Também em tratamento contra um câncer, a chefe de cozinha Alice Ordones, de 60 anos, não consegue passar pela quimioterapia necessária para o tumor no intestino mesmo com decisão judicial favorável desde maio do ano passado. Os filhos da paciente contrataram a NotreDame em fevereiro e, um mês depois, durante exames de rotina, os médicos encontraram uma massa de 11 centímetros em uma das alças do órgão.

Ela teve que ser operada para a retirada do tumor e arcou com todas as despesas até então por causa do período de carência. “Porém, como foi encontrado um linfonodo maligno, o oncologista recomendou que eu fizesse um tratamento quimioterápico de três meses. Ele deveria ser feito, no máximo, até 22 de junho. Fiz a solicitação do tratamento junto à operadora e ele foi negado. Consegui uma liminar judicial em 30 de maio para o convênio liberar o tratamento, mas a operadora ignorou”, explica ela, que, diante da resistência do convênio, perdeu a oportunidade de realizar a terapia, que tinha como objetivo reduzir o risco de recidiva.

Procurada para comentar os casos das pacientes, a operadora informou que “as decisões estão sendo cumpridas e que as pacientes citadas estão com seus respectivos casos em solução e recebendo toda a assistência e acolhimento necessários”.

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Sobre a paciente Tati, a operadora diz que ela teve seus ciclos iniciais de tratamento oncológico autorizados e custeados pela operadora, dentro da rede própria, mas que recebeu uma indicação de tratamento de fora da rede “que divergia da conduta médica interna” e optou por continuar seus ciclos em uma unidade que não faz parte da estrutura própria da companhia,. A operadora diz que a paciente “continua sendo cuidada por especialistas da operadora e recebendo a assistência necessária”.

Tati nega as informações e diz que nunca se tratou na rede própria da operadora. “Nem conheço os médicos deles”. A única vez que foi até uma unidade própria da NotreDame foi quando seu terceiro ciclo de quimioterapia não foi autorizado no hospital no qual vinha fazendo o tratamento e ela tentou, sem sucesso, passar pelo procedimento num hospital próprio do convênio.

Sobre o caso de Alice, a operadora diz que “a terapia oncológica foi inicialmente negada por ser tratamento relacionado à doença pré-existente” e que “a cláusula era de conhecimento da paciente e foi declarada na assinatura do contrato” - argumento refutado pela cliente, que diz ter descoberto a doença somente após um exame de rotina um mês depois da contratação do plano.

A empresa afirma que, a despeito da restrição contratual, “houve a disponibilização do tratamento, mas a cliente optou por buscar tratamento na rede particular”. A paciente nega que a operadora tenha oferecido outra opção de tratamento e diz que, só depois que o Estadão pediu posicionamento para a empresa sobre o caso, a NotreDame a contatou para que ela passe em um oncologista do plano. A operadora disse ainda estar tentando um acordo para encerrar o processo, “com o reembolso de eventuais despesas”. Alice ainda aguarda o pagamento, assim como a aprovação da empresa para realizar exames de rotina para o controle da doença.

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