Em 2020, Ujwal Chaudhary, engenheiro biomédico então na Universidade de Tübingen e no Centro Wyss de Bio e Neuroengenharia em Genebra, ficou espantado ao ver o experimento ao qual se dedicara por anos começando a dar os primeiros resultados. Um homem paralítico de 34 anos estava deitado de costas no laboratório, com a cabeça conectada por um cabo a um computador. Uma voz sintética pronunciava letras em alemão: “E, A, D…”.
Alguns anos antes, o paciente fora diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA), que leva à degeneração progressiva das células cerebrais responsáveis pelo movimento. O homem havia perdido a capacidade de mover até mesmo os globos oculares e era totalmente incapaz de se comunicar. Em termos médicos, estava em completa Síndrome do encarceramento.
Pelo menos era o que parecia. Por meio do experimento de Chaudhary, o homem aprendeu a selecionar – não diretamente com os olhos, mas imaginando seus olhos se movendo – letras individuais dentro de um fluxo constante que o computador falava em voz alta. Letra por letra, uma a cada mais ou menos um minuto, ele formulou palavras e frases.
“Wegen essen da wird ich erst mal des curry mit kartoffeln haben und dann bologna und dann gefuellte und dann kartoffeln suppe”, ele escreveu a certa altura: “Quero comer curry com batata, depois mortadela e sopa de batata”.
Chaudhary e seus colegas ficaram atônitos. “Eu mesmo não conseguia acreditar que fosse possível”, lembrou Chaudhary, que agora é diretor administrativo da ALS Voice gGmbH, uma empresa de neurobiotecnologia com sede na Alemanha, e que não trabalha mais com o paciente.
O estudo, publicado terça-feira na Nature Communications, fornece o primeiro exemplo de um paciente em completo estado de Síndrome do encarceramento se comunicando com o mundo exterior, disse Niels Birbaumer, líder do estudo e ex-neurocientista da Universidade de Tübingen, que agora está aposentado.
Chaudhary e Birbaumer realizaram dois experimentos semelhantes em 2017 e 2019 com pacientes em completo estado de Síndrome do encarceramento e relataram que eles eram capazes de se comunicar. Ambos os estudos foram retirados depois que uma investigação da Fundação Alemã de Pesquisa concluiu que os pesquisadores tinham gravado apenas alguns dos exames de seus pacientes em vídeo, não apresentaram adequadamente os detalhes de suas análises e fizeram declarações falsas. Ao descobrir que Birbaumer incorrera em má conduta científica, a Fundação Alemã de Pesquisa impôs algumas de suas sanções mais severas, como a proibição de apresentar propostas e de atuar como revisor da fundação por cinco anos.
A agência descobriu que Chaudhary também incorrera em má conduta científica e impôs as mesmas sanções por um período de três anos. Tanto ele quanto Birbaumer foram convidados a retratar seus artigos, mas se recusaram.
A investigação veio depois que um denunciante, o pesquisador Martin Spüler, levantou suspeitas sobre os dois cientistas em 2018.
Birbaumer manteve as conclusões e tomou medidas legais contra a Fundação Alemã de Pesquisa. Os resultados do processo devem ser publicados nas próximas semanas, disse Marco Finetti, porta-voz da Fundação Alemã de Pesquisa. Chaudhary disse que seus advogados esperam ganhar o caso.
A Fundação Alemã de Pesquisa não tem conhecimento da publicação do estudo atual e irá investigá-lo nos próximos meses, disse Finetti. Por e-mail, um representante da Nature Communications, que pediu para não ser identificado, recusou-se a comentar os detalhes de como o estudo foi examinado, mas expressou confiança no processo. “Temos políticas rigorosas para salvaguardar a integridade das pesquisas que publicamos, inclusive para garantir que as pesquisas sejas conduzidas com um alto padrão ético e sejam relatadas de forma transparente”, disse o representante.
“Eu diria que é um estudo sólido”, disse Natalie Mrachacz-Kersting, pesquisadora de interface cérebro-computador da Universidade de Freiburg, na Alemanha. Ela não participou do estudo e estava ciente dos artigos retratados anteriormente.
Mas Brendan Allison, pesquisador da Universidade da Califórnia em San Diego, expressou reservas. “Este trabalho, como outros trabalhos de Birbaumer, deve ser encarado com muita desconfiança, dado o seu histórico”, disse Allison. Ele observou que em um artigo publicado em 2017, sua equipe havia descrito ser capaz de se comunicar com pacientes em completo estado de Síndrome do encarceramento com respostas básicas de “sim” ou “não”.
Os resultados são promissores para pacientes em situações semelhantes, incluindo estados minimamente conscientes e comatosos, bem como o número crescente de pessoas diagnosticadas com ELA em todo o mundo a cada ano. Esse número deve chegar a 300 mil em 2040.
“É um divisor de águas”, disse Steven Laureys, neurologista e pesquisador que lidera o Coma Science Group da Universidade de Liège, na Bélgica, e que não esteve envolvido no estudo. A tecnologia pode ter ramificações éticas nas discussões em torno do suicídio assistido para pacientes em estados vegetativos, acrescentou ele. “É muito bom ver isso avançando, para dar voz aos pacientes” em suas próprias decisões.
Vários métodos têm sido usados para propiciar a comunicação com pacientes que não respondem. Alguns envolvem métodos básicos de caneta e papel elaborados pelos próprios parentes. Em outros métodos, um cuidador aponta ou fala os nomes dos itens e procura por pequenas respostas – piscadas ou contrações dos dedos do paciente.
Nos últimos anos, um novo método ganhou o centro do palco: tecnologias de interface cérebro-computador, que tentam traduzir os sinais cerebrais de uma pessoa em comandos. Institutos de pesquisa, empresas privadas e bilionários empreendedores como Elon Musk investiram pesadamente na tecnologia.
Os resultados foram mistos, mas convincentes: pacientes movendo membros protéticos usando apenas seus pensamentos e pessoas com derrames, esclerose múltipla e outras condições voltando a se comunicar com seus entes queridos.
O que os cientistas não conseguiram fazer até agora, no entanto, foi se comunicar extensivamente com pessoas como o homem no novo estudo, que não apresentava nenhum movimento.
Em 2017, antes de ficar em completo estado de Síndrome do encarceramento, o paciente usava movimentos oculares para se comunicar com a família. Prevendo que em breve ele perderia até mesmo essa habilidade, a família pediu um sistema de comunicação alternativo e procurou Chaudhary e Birbaumer, pioneiros no campo da tecnologia de interface cérebro-computador, ambos trabalhando em instituições próximas.
Com a aprovação do paciente, o Dr. Jens Lehmberg, neurocirurgião e um dos autores do estudo, implantou dois minúsculos eletrodos em regiões do cérebro do homem que são responsáveis pelo controle do movimento. Então, por dois meses, o homem foi instado a se imaginar movendo mãos, braços e língua, para ver se isso geraria um sinal cerebral claro. Mas o esforço não rendeu nada confiável.
Birbaumer então sugeriu o uso de neurofeedback auditivo, uma técnica incomum pela qual os pacientes são treinados a manipular ativamente sua própria atividade cerebral. O homem primeiro foi apresentado a uma nota – alta ou baixa, correspondendo a sim ou não. Este era o seu “tom alvo” – a nota que ele tinha de buscar.
Ele então tocou uma segunda nota, que mapeou a atividade cerebral que os eletrodos implantados haviam detectado. Concentrando-se – e imaginando mover seus olhos, para aumentar ou diminuir efetivamente sua atividade cerebral – o paciente conseguiu alterar o tom da segunda nota para combiná-la à primeira. Ao fazer isso, dava um feedback em tempo real de como a nota mudava, permitindo-lhe aumentar o tom quando queria dizer sim ou diminuí-lo para dizer não.
Essa abordagem teve resultados imediatos. No primeiro dia de tentativas, o paciente conseguiu alterar o segundo tom. Doze dias depois, conseguiu igualar o segundo ao primeiro.
“Foi quando tudo se tornou consistente e ele conseguiu reproduzir esses padrões”, disse Jonas Zimmermann, neurocientista do Centro Wyss e um dos autores do estudo. Quando perguntaram ao paciente o que ele estava imaginando para alterar sua própria atividade cerebral, ele respondeu: “Movimento dos olhos”.
No ano seguinte, o homem aplicou essa habilidade para gerar palavras e frases. Os cientistas tomaram emprestada uma estratégia de comunicação que o paciente havia usado com sua família quando ainda conseguia mover os olhos.
Eles agrupavam as letras em conjuntos de cinco cores. Uma voz computadorizada primeiro listava as cores e o homem respondia “sim” ou “não”, dependendo de se a letra que ele queria selecionar estava naquele conjunto. A voz então dizia cada letra, que ele selecionava de maneira semelhante, repetindo esses passos conjunto por conjunto, letra por letra, para articular frases completas.
No segundo dia de seu esforço, ele escreveu: “Primeiro, gostaria de agradecer a Niels e Birbaumer”.
Algumas de suas frases envolviam instruções: “Carinho da mamãe na cabeça” e “todo mundo deve usar gel nos meus olhos com mais frequência”. Outros descreviam desejos: “Sopa de goulash e sopa de ervilha doce”.
Dos 107 dias que o homem passou soletrando, 44 resultaram em frases inteligíveis. E embora houvesse grande variabilidade na velocidade, ele escrevia cerca de 1 caractere por minuto.
“Uau, foi uma coisa que me surpreendeu”, disse Mrachacz-Kersting. Ela especulou que pacientes em encarceramento que conseguem manter suas mentes estimuladas podem ter uma vida mais longa e saudável.
Mrachacz-Kersting enfatizou, no entanto, que o estudo foi baseado em um paciente e precisaria ser testado em muitos outros.
Outros pesquisadores também expressaram cautela ao festejar as descobertas.
Neil Thakur, diretor de missão da ALS Association, disse: “Esta abordagem é experimental, ainda há muito que precisamos aprender”.
Nesta fase, a tecnologia está muito complexa para os pacientes e familiares operarem. Será crucial torná-la mais fácil de usar e acelerar a velocidade de comunicação, disse Chaudhary. Nesse ponto, disse ele, os parentes de um paciente provavelmente ficarão satisfeitos.
“Você tem duas opções: comunicação nenhuma ou comunicação a 1 caractere por minuto”, disse ele. “O que você prefere?”
A maior preocupação talvez seja o tempo. Três anos se passaram desde que os implantes foram inseridos no cérebro do paciente. Desde então, suas respostas foram ficando significativamente mais lentas, menos confiáveis e muitas vezes impossíveis de discernir, disse Zimmermann, que agora cuida do paciente no Centro Wyss.
A causa desse declínio não está clara, mas Zimmermann pensa que provavelmente decorreu de problemas técnicos. Por exemplo, os eletrodos estão chegando ao fim da expectativa de vida. Substituí-los agora, contudo, seria imprudente. “É um procedimento arriscado”, disse ele. “De repente, você é exposto a novos tipos de bactérias no hospital”.
Zimmermann e outros do Centro Wyss estão desenvolvendo microeletrodos sem fio que são mais seguros de usar. A equipe também está explorando outras técnicas não invasivas que se mostraram frutíferas em estudos anteriores em pacientes que não estão encarcerados. “Por mais que queiramos ajudar as pessoas, também acho muito perigoso criar falsas esperanças”, disse Zimmermann.
Ao mesmo tempo, Laureys, do Coma Science Group, disse que não faz sentido promover uma sensação de “falso desespero” agora que inovações viáveis estão surgindo no horizonte.
“Estou extremamente empolgado como cuidador, como clínico”, disse ele. “Acho maravilhoso oferecermos essas novas tecnologias e insights científicos para condições muito vulneráveis e dramáticas”.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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