As inovações nos tratamentos do câncer ganharam uma velocidade nos últimos anos que tem impressionado e animado até os oncologistas mais experientes e atualizados com as pesquisas de ponta. Se até bem pouco tempo as variações mais modernas de técnicas cirúrgicas e de usos de terapias convencionais − como radioterapia e quimioterapia − já eram sinônimo de inovação, a adoção mais recente das imunoterapias tem sido considerada uma revolução.
“Hoje, quando o paciente chega, a partir do material da biópsia, fazemos todas as pesquisas para o sequenciamento do DNA do tumor e entendemos melhor a doença, para poder fazer o tratamento certo”
Ariel Kann, head do Centro Especializado em Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz
Basicamente, imunoterapia é qualquer terapia que vai usar a resposta imune do próprio corpo do paciente para combater o câncer. Os primeiros usos eficazes dessa técnica datam de meados dos anos 1990, quando eram usadas as citocinas, que são moléculas solúveis, para tentar ativar a resposta imune para combater o câncer. Depois, a vacina BCG passou a ser usada para combater um câncer específico, de bexiga.
Mas, pelo menos desde 2016, as inovações nessa área se aceleraram e várias das técnicas estão em uso no Brasil. Nelson Hamerschlak, coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital Israelita Albert Einstein, explica que, muitas vezes, as células doentes não são atacadas pelo nosso sistema imune e o tumor consegue se proteger. “Então, o tratamento tira esse escudo e propicia que o próprio organismo ataque o tumor. E isso está sendo impressionante no melanoma e em alguns linfomas, com resultados maravilhosos.”
Uma dessas inovações é o uso do chamado anticorpo municlonal, proteínas circulantes no sangue que agem diretamente no foco, atacando a célula doente. Pacientes com linfomas, mielomas e algumas leucemias tiveram bons resultados usando essas proteínas junto com a quimioterapia.
“É uma conjugação. A gente liga a quimio a um anticorpo e injeta no paciente. Aí, ele reconhece o tumor e coloca a quimio para dentro da célula, como um ‘cavalo de Troia’. Usa o anticorpo como um vetor para levar a quimio para dentro da célula e aí consegue atingir em cheio”, explica Ariel Kann, head do Centro Especializado em Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
Alguns remédios já usam esse mecanismo para câncer de pulmão e de mama. “Isso parece que é o futuro. Está fazendo mais sucesso do que a imunoterapia”, diz Kann.
“No caso do linfoma, quando me formei, tinha uma chance de cura dos pacientes de cerca de 30%, com quimioterapia. Hoje, curamos entre 70% e 80% dos pacientes”
Nelson Hamerschlak, coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital Israelita Albert Einstein
Um dos tratamentos mais avançados é a imunoterapia com as células CAR-T (leia mais na página 4), na qual células como o linfócito T são retiradas do paciente, modificadas em laboratório por meio manipulação genética e reinjetadas no paciente para que esses linfócitos T ataquem o tumor.
Pesquisas promissoras
E os avanços no campo da imunoterapia não vão parar por aí. Neste ano, já foram divulgados estudos promissores de vacinas experimentais baseadas em RNA mensageiro (mRNA) para alguns tipos de câncer.
Segundo Kann, a terapia viral ainda está na fase de testes em laboratório. “A ideia é que o vírus faça a edição do DNA da pessoa, consiga modificar o DNA do tumor para tornar essa célula mais sensível e morrer. Mas ainda não vingou, não estamos prontos ainda.”
A imunoterapia é usada hoje como primeira alternativa de tratamento em alguns casos, como no câncer de pulmão avançado. Mas vários desses tratamentos, como no caso das células CAR-T, em tratamentos de cânceres hematológicos, só começam a ser aplicados quando o paciente já passou por outras terapias anteriormente, sem sucesso.
Um paciente que está sendo submetido à imunoterapia é Paulo Silvio Ferreira, 53 anos, diretor escolar na zona leste de São Paulo. Ele foi diagnosticado com um tumor no rim esquerdo em 2022. A cirurgia para extração total do órgão ocorreu em janeiro e novas células cancerígenas não foram detectadas.
“Eu faço imunoterapia de seis em seis semanas, com aplicação intravenosa, e tomo todos os dias uma medicação oral, que está sendo estudada como terapia adjuvante. Me sinto bem e confiante no tratamento.”
Paulo Silvio Ferreira, paciente que participa de estudo no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP, no interior paulista, para evitar recidiva
Ferreira ingressou então no programa de tratamento no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP, no interior paulista, fazendo parte de um estudo para evitar recidiva. “Eu faço imunoterapia de seis em seis semanas, com aplicação intravenosa, e tomo todos os dias uma medicação oral, que está sendo estudada como terapia adjuvante. Me sinto bem e confiante no tratamento.”
Remissão e cura
Essas técnicas, somadas a outros avanços, como o próprio transplante de medula óssea, trouxeram resultados em termos de remissão e de sobrevida de pacientes que eram impensáveis no passado. “No caso do linfoma, quando me formei, tinha uma chance de cura dos pacientes de cerca de 30%, com quimioterapia. Hoje, curamos entre 70% e 80% dos pacientes”, compara Nelson Hamerschlak.
Em casos de leucemia aguda, antes da chegada do transplante, e com a quimioterapia então disponível, os resultados de sobrevida eram de 17%. “Em mieloma múltiplo, era a mesma coisa, as pessoas duravam dois a três anos, no máximo. Hoje, se tornou uma doença crônica. Tenho pacientes que têm 30 anos de sobrevida”, comemora.
Ariel Kann conta que, no caso de melanomas, as imunoterapias praticamente diminuíram pela metade o risco de a pessoa morrer, ou seja, praticamente dobraram a sobrevida. “Para o câncer de bexiga, esse benefício foi em torno de 30%. Tem algumas doenças que são muito sensíveis à imunoterapia e outras nem tanto. E depende um pouco de cada indivíduo.”
Ele comemora o fato de a ciência e a tecnologia permitirem hoje que se conheça o câncer da pessoa de forma individualizada. “Hoje, quando o paciente chega, a partir do material da biópsia, fazemos todas as pesquisas para o sequenciamento do DNA do tumor e entendemos melhor a doença, para poder fazer o tratamento.”
Os desafios para ampliar o acesso
Mesmo com alguns centros médicos de excelência já trabalhando com essas técnicas inovadoras ou com grupos de pesquisas em estágios avançados de testes, o Brasil enfrenta um problema que é, na verdade, global: o alto custo desses tratamentos torna seu acesso restrito a uma parcela muito pequena da população.
“Nós temos a tecnologia, temos uma situação que em vários centros tem o que há de mais moderno em termos de tratamento de câncer. No entanto, as pessoas não têm acesso a tudo isso, apesar de termos o Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de termos leis que garantam direito à saúde. Mas, na prática, muitas vezes as pessoas ainda morrem por falta de acesso ao tratamento”, diz Luiz Antonio Santini, pesquisador da Fiocruz.
Roberto Gil, atual diretor-geral do Instituto Nacional de Câncer (Inca), reconhece que essa tem sido uma grande dificuldade. “O aumento do conhecimento da biologia molecular permitiu que a gente fosse mais eficaz na construção de novas terapêuticas, de novas estratégias de tratamento. Mas isso só tem impacto se puder garantir acesso universal a esses tratamentos.”
Gil conta que o maior uso não tem gerado uma correspondente queda de valores. Uma imunoterapia que surgiu para o melanoma metastático, por exemplo, já tem hoje nos EUA 54 indicações (são 39 no Brasil). Mas o preço continua o mesmo. “Para se ter uma ideia, o tratamento com células CAR-T, que é uma terapêutica inovadora em linfomas, foi precificado inicialmente a US$ 400 mil. Hoje, teria a possibilidade de realizá-lo a US$ 15 mil”, compara.
Há trabalhos em andamento para reduzir esse descompasso. Kenneth Gollob, que é líder do Laboratório Translacional de Imuno-Oncologia do Hospital Israelita Albert Einstein, coordena o projeto Centro de Pesquisa em Imuno-Oncologia (Crio), financiado pela Fapesp e pela farmacêutica GSK. A meta é tentar achar biomarcadores que possam indicar qual paciente vai responder melhor ao tratamento, o que pode gerar uma grande economia de recursos.
“Já identificamos alguns, que indicam que um paciente tem 99% de chance de responder. Então, poderia direcionar o tratamento para os pacientes que são mais prováveis de responder. Minha esperança, quando a gente validar esses biomarcadores, é apresentar um projeto para o SUS, para a rede pública, e ver se conseguimos aumentar o acesso hoje muito limitado pelo custo.”
Há também outras ideias para que o acesso aumente. Uma delas é incentivar para que países com mais limitações de recursos possam inovar e produzir internamente novos métodos e drogas. “É uma possibilidade, de produzir localmente células CAR-T e inibidores de checkpoint. Aí também aumenta o acesso, em vez de comprar de multinacionais.” Outra possibilidade é que a competição traga os preços para baixo. “Quando tem mais disponibilidades, a tendência é o preço baixar.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.