Jovens divulgam trechos de terapia nas redes sociais; psicólogas alertam para riscos

Profissionais destacam que o sigilo é muito importante para a eficácia de qualquer tratamento e se preocupam com as possíveis repercussões da exposição na internet

Foto do author Leon Ferrari

A cena não é incomum, principalmente após a pandemia de covid-19. Em frente a um computador ou celular, um paciente troca confidências com um profissional da saúde mental. A novidade agora é que a conversa pode não ser tão confidencial assim. Nas redes sociais, em especial no TikTok, jovens têm compartilhado trechos de suas sessões de terapia.

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Em geral, os vídeos tratam de assuntos sérios, como relacionamentos amorosos e autossabotagem, mas recorrem ao cômico na maneira como são narrados. Há alguns que são evidentes simulações, em outros paira a dúvida: real ou não?

Em determinados vídeos, as interrupções do terapeuta são mantidas — resta a dúvida se com ou sem consentimento. É uma voz sem rosto. Em outros, apenas o paciente fala. É o caso dos vídeos postados pela atriz carioca Isabela Carias Pereira, de 25 anos.

Para especialistas, sigilo é um aspecto primordial do contrato terapêutico e não deveria ser quebrado Foto: Dzianis Vasilyeu/Adobe Stock

“No pós-pandemia, percebi que houve uma crescente de vídeos mais pessoalizados, como se a gente estivesse falando com uma amiga. Existe uma parada de identificação que é gerada a partir de uma fala espontânea com alguém”, explica.

“Sempre achei a forma como eu conto minha vida engraçadinha”, continua. Assim, após ver vídeos do tipo, ela resolveu filmar duas sessões de terapias. O celular não gravava ininterruptamente, mas estava a postos caso ela percebesse que iria falar algo interessante para a terapeuta do outro lado da tela.

A voz da profissional não aparece nos vídeos de Isabela. A atriz nunca chegou a contar para a psicóloga que havia postado os trechos. “Era uma parada minha, contando sobre mim, não tinha por quê. Acho que, se eu contasse, o máximo que ela ia fazer era rir.”

Ela postou dois vídeos desse tipo. O engajamento, avalia, foi melhor, principalmente no número de comentários. Mas decidiu parar por dois motivos.

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O primeiro deles foi o excesso de exposição. “Não gostaria que esse fosse o meu nicho no TikTok. A terapia é um momento de tanta vulnerabilidade. Acho que, se eu ficasse gravando tudo, o próprio tratamento ia perder o sentido. Contar para todas as pessoas do mundo que tiverem acesso uma parada que, às vezes, não conto para uma amiga seria bem pesado para mim.”

Por outro lado, havia um temor de que as pessoas não compreendessem que, por mais espontâneos que fossem, os vídeos passavam por uma edição. “Tenho medo da banalização desse tema como todos os outros que são falados na internet. Será que a pessoa que está consumindo o conteúdo entende que é um recorte e que a terapia é muito mais profunda?”

Esse temor vai ao encontro do que pensam especialistas ouvidas pelo Estadão. As profissionais destacam que o sigilo é muito importante para a eficácia de qualquer tratamento e que a quebra da confiança pode colocar o processo terapêutico em xeque.

Além disso, se preocupam com a capacidade do paciente de entender as possíveis repercussões de postar um vídeo desses na internet. Afinal, muitas pessoas buscam a terapia em um momento no qual estão vulneráveis e precisam de ajuda.

Réplica

O fenômeno gerou uma reação de psicólogos também nas redes sociais. Os profissionais gravaram vídeos expondo preocupações e alertando para riscos. Uma delas foi a psicóloga gaúcha Thaís Hagemman.

“É inegável que assistir à sessão de terapia alheia é algo curioso e que gera engajamento nas redes sociais, basta ver o alcance que esse tipo de vídeo tem”, afirma.

“Mesmo fazendo uma crítica, meu vídeo a partir dessa trend teve um impulso muito maior do que os que costumo fazer, que são assuntos mais comuns”, comenta. Ela também faz divulgação científica sobre psicologia nas redes sociais.

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Thaís gravou o vídeo para alertar sobre os perigos da quebra da confiança entre paciente e psicóloga. “Não podemos normalizar a quebra de sigilo terapêutico.”

Na primeira sessão, é comum que o profissional deixe claro quais as regras daquele espaço, o chamado contrato terapêutico (em geral, ele é verbal). Uma das principais “cláusulas” é o sigilo, ou seja, tudo que será dito ali ficará ali.

Além de preservar a intimidade do paciente, o sigilo é importante para a criação de um laço de confiança com o terapeuta, o que, segundo os profissionais, é essencial para o sucesso do tratamento.

“Se aquele paciente está fazendo essas gravações escondidas, tem um abalo na relação terapêutica. Algo não está sendo verdadeiro. Por mais que não seja necessariamente percebido de imediato, isso afeta a relação como um todo”, fala Thaís.

“Quanto mais sincera for essa relação, mais efetividade vai ter o tratamento. A eficácia depende muito mais de como a dupla se comporta e se há uma confiança mútua ali do que, por exemplo, a linha teórica (que o terapeuta segue), completa.

Do público ao privado

Thaís nunca encontrou vídeos dos pacientes que atende nas redes sociais e, até o momento, nenhum deles pediu autorização para gravar e/ou postar uma sessão — o que começa a virar uma demanda nos consultórios.

Por sua vez, alguns profissionais acionam os conselhos regionais em busca de orientação. “Dos casos em que fomos chamados a orientar, nenhum tinha um pressuposto teórico-técnico ou terapêutico (para a publicação do vídeo). Pelo contrário, havia um pressuposto muito mais de publicidade”, conta Mayara Aparecida Bonora Freire, presidente da Comissão de Orientação e Fiscalização do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP).

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Ela relata ainda que já houve casos em que profissionais recorreram a influenciadores para que estes divulgassem trechos da sessão. “Isso, do ponto de vista do nosso Código de Ética, é uma infração. Você está utilizando um serviço, uma forma de atendimento, como propaganda e autopromoção. Está fazendo uma divulgação sensacionalista na base da quebra do sigilo.”

Mayara destaca que a publicidade em psicologia, considerando a natureza da profissão, exige muitos cuidados. Segundo ela, a divulgação deve ter objetivo informativo e educativo, e deve ser pautada pela ciência.

Profissionais têm acionado os conselhos regionais em busca de orientação sobre como proceder diante da divulgação de sessões nas redes sociais Foto: Muqamba/Adobe Stock

A publicidade na área é regida pela Resolução n°3 de 2007 do Conselho Federal de Psicologia, que diz, em seu artigo 54, que o psicólogo não pode utilizar diagnóstico, análise de caso ou aconselhamento que identifique o paciente.

Art. 54 - Em sua publicidade, o psicólogo não poderá utilizar diagnóstico psicológico, análise de caso, aconselhamento ou orientação psicológica que, de alguma forma, identifiquem o sujeito.

RESOLUÇÃO CFP Nº 003/2007

Uma nota técnica do CFP, publicada em 2022, trata da publicidade nas redes sociais e diz que os psicólogos não devem usar ou compartilhar depoimentos e fotos de pessoas atendidas sem autorização. “Se houver o consentimento expresso, por escrito, do paciente ou do usuário dos serviços, a utilização de fotos e depoimentos é permitida, mas não recomendada, em função da possibilidade de exposição da pessoa atendida”, diz a regra.

Embora alguns levantem a hipótese de que talvez esses vídeos possam ajudar a normalizar a terapia junto ao público jovem presente nas redes sociais, esses mesmos indivíduos ponderam que a linha para uma estigmatização ainda maior é muito tênue.

“A forma como funciona a rede social é muito próxima do que é chamado de estigma. Aquilo que mais aparece é o caricato, o engraçado”, comenta a psicóloga Carolina Roseiro, do Conselho Federal de Psicologia (CFP). “Você vai estar expondo um trecho de um trabalho que tem um contexto. De forma descontextualizada, a tendência disso ser transformado em uma caricatura é grande.”

Além disso, não há nada que comprove um benefício coletivo ou individual do compartilhamento das sessões. Para ela, levar o contexto clínico para a rede social influencia porque o profissional sabe, de antemão, que a sessão vai ser divulgada nas redes e o paciente, que tudo que for dito será contado também para outras pessoas. O sigilo é a base para garantir a qualidade do trabalho, enfatiza Mayara.

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Um problema de consentimento

Mayara destaca que é complicado um profissional dar anuência para um paciente publicar os vídeos. “Às vezes, a pessoa pode expor nas redes, mas, justamente por estar num momento mais vulnerável, de um sofrimento mais intenso, depois se arrepender.”

Carolina destaca que, mesmo que seja um terceiro que publique o trecho, a responsabilidade ética do profissional pode ser avaliada, afinal, trata-se de uma divulgação da profissão.

“Pode haver situações em que o acordo (contrato terapêutico) permita a divulgação de algum trecho, alguma situação do atendimento, mas isso não pode ser feito prejudicando o sigilo da psicoterapia”, diz. “E a quebra de sigilo só pode ser feita em situações que beneficiam o usuário em termos de preservar sua integridade física.”

Nesse sentido, de maneira geral, ela recomenda que o profissional não permitam a gravação nem a divulgação de trechos — principalmente, quando ele não tiver como controlar o que será postado e com qual fim. “Quando a pessoa quiser falar da psicoterapia, é melhor que fale por si e não que divulgue um trecho. Ela pode fazer os depoimentos dela.”

Nova resolução no horizonte

O CFP está elaborando uma nova resolução sobre publicidade nas redes sociais. A demanda surgiu após a publicação da nota técnica de 2022 (uma nota é orientativa e não tem o peso de uma resolução).

“O que tem no Código de Ética foi escrito num contexto em que a divulgação de serviços acontecia por televisão, panfletos impressos, mailing e outdoor. Era sempre um lugar muito localizado. Hoje não é mais assim”, comenta Carolina.

“Você publica conteúdos relacionados à psicologia em perfis pessoais. Então, essa confusão da vida íntima com algo que é de interesse público, que é o exercício profissional, não tem parâmetro”, afirma. A previsão é de que a resolução seja aprovada até maio de 2025.

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Por ora, a orientação é que os profissionais considerem esses novos riscos na formulação do contrato terapêutico. No caso dos atendimentos online, Mayara e Carolina sugerem ainda que os colegas reflitam sobre a possibilidade de apresentar o contrato por escrito.

Caso o profissional detecte uma quebra do acordo, como a postagem da sessão sem autorização, a recomendação é acionar o conselho regional, que poderá fornecer orientações e, se necessário, ajudar a levar o caso às esferas legais.

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