BRASÍLIA - Ao longo do ano passado, 257 mil unidades de medicamentos destinados ao tratamento dos indígenas Yanomami, em Roraima, foram descartados por danos na embalagem ou por estarem vencidos. Segundo um líder do povo originário, enquanto os fármacos ainda estavam dentro do prazo de validade, a população indígena sofria por falta de remédios. Este fator teria agravado a crise humanitária na região.
Ao Estadão, o Ministério da Saúde afirmou que herdou do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estoques de medicamentos “sem tempo hábil para distribuição e uso”. A pasta disse também que busca reestruturar as políticas de saúde indígena “evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade”. (leia a nota completa no final da reportagem)
O Estadão revelou nesta quinta-feira, 29, que o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-YY), unidade do Sistema Único de Saúde (SUS) responsável pelo tratamento da saúde dos indígenas, descartou ao menos 257 mil medicamentos ao longo de 2023. Entre os fármacos desperdiçados estão 1.690 unidades de Paxlovid, um antiviral para combate à covid-19, vendido a quase R$ 5 mil a caixa. Também foram descartados outros insumos, como milhares de testes rápidos de coronavírus e de HIV / Aids.
As drogas com maior quantidade descartada pela unidade foram a ivermectina (até 48.228 comprimidos) e a cloroquina (até 12.580). Os medicamentos foram apostas do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para o combate à pandemia de covid-19, embora não exista comprovação da efetividade delas no tratamento da doença. A cloroquina é também usada no tratamento da malária, doença que é comum na região.
Segundo o líder indígena Júnior Hekurari Yanomami, morador da comunidade Surucucu, quando os remédios estavam dentro do prazo de validade, o maior problema dos habitantes da região era a falta de medicamentos, e não o excesso.
“Em 2020, nós Yanomami cobramos muito, avisamos muito que o medicamento tava faltando na Terra Indígena Yanomami. Muita gente, muitas crianças morreram por falta de medicamento. Antibióticos, azitromicina, de febre, e outros. Naqueles anos, 2020, 2021, 2022, faltou medicamento na comunidade. E profissionais, também. Na época, denunciamos à Polícia Federal e eles descobriram que havia desvios de medicamentos”, diz ele, que é presidente da Urihi Associação Yanomami.
“Eu mesmo denunciei bastante essa falta de medicamentos. Polícia Federal e Ministério Público Federal começaram a investigar e descobriram que tinha muita coisa errada”, disse Júnior Hekurari ao Estadão.
De acordo com o indígena, os líderes Yanomami receberam relatos de gestores da unidade de saúde que desviavam os medicamentos para garimpeiros durante a gestão de Bolsonaro. Hekurari conta que esses profissionais trocavam os fármacos por ouro extraídos pelos garimpos. “Foi a irresponsabilidade do governo passado (de Jair Bolsonaro) que deixou o povo Yanomami morrer por falta de medicamento”, afirmou.
No último dia 31 de janeiro, a Polícia Civil de Roraima (PC-RR) encontrou vários sacos de lixo e caixas de medicamentos vencidos numa casa abandonada em Boa Vista. Os produtos eram destinados a unidade de saúde que trata os Yanomami. O flagrante ocorreu durante uma apuração sobre tráfico de drogas no bairro São Francisco, na zona Norte da cidade.
Na ocasião, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, declarou que os medicamentos já estavam vencidos desde o governo Bolsonaro. As investigações sobre o caso foram repassadas à Polícia Federal (PF). De acordo com Hekurari, essas drogas teriam sido escondidas pelos gestores do DSEI-YY após os indígenas denunciarem a entrega dos fármacos para os garimpeiros.
“Com certeza aqueles medicamentos (achados em Boa Vista), como a gente denunciava bastante, eles ficaram com medo e esconderam lá. Era para estar na terra indígena. A responsabilidade (é) do governo passado, de deixar o povo Yanomami morrer, por falta de medicamento”, diz ele.
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Dados do Ministério da Saúde mostram possível aumento da mortalidade Yanomami no governo Lula
Nesta última quinta-feira, 22, dados do Ministério da Saúde obtidos pelo site Poder360 mostraram um possível aumento da mortalidade dos Yanomami no primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foram 363 óbitos em 2023, ante 343 em 2022 – uma alta de 5,8%. A pasta nega, e diz que há subnotificação das mortes do último ano da gestão de Bolsonaro.
Lideranças do povo originário ouvidos pelo Estadão atribuem as mortes principalmente à destruição do modo de vida tradicional dos Yanomami e à entrada de garimpeiros ilegais no território. Essa incursão do garimpo teria exposto os indígenas a doenças e a atos de violência.
Além da falta de medicamentos, os Yanomami sofrem com a desnutrição e a fome. Em janeiro de 2023, o ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a abertura de uma investigação sobre um possível crime de genocídio contra os Yanomami por parte do governo do ex-presidente.
Leia a nota do Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde informa que, no início de 2023, a atual gestão se deparou com um cenário de crise humanitária do povo Yanomami causado pela desassistência e desestruturação da saúde indígena nos últimos anos. A Pasta também herdou estoques de medicamentos sem tempo hábil para distribuição e uso, comprados sem critérios ou planejamento. Desde então, o Ministério está reestruturando as políticas de saúde indígena e retomou a gestão dos estoques, evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade.
Desde o início da operação de emergência no território, todos os medicamentos e insumos necessários para salvar vidas são utilizados pelas equipes de saúde. Não há falta de medicamentos ou insumos para assistência dessa população. Os medicamentos que foram comprados nos anos anteriores e estavam com a data de validade próxima do vencimento, foram descartados.
Para mitigar a perda de insumos, o Ministério instituiu, em 2023, um comitê permanente para monitorar a situação e adotar ações emergenciais como pactuação junto aos estados, municípios e DSEIs para racionalizar a distribuição do estoque atual, dando prioridade aos itens de menor prazo de validade.
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