A pressão no sistema de saúde do País, causada pelo espalhamento da variante Ômicron, está nas filas dos postos de saúde, na falta de medicamentos antigripais nas farmácias, na escassez de testes para detecção de covid-19 nos laboratórios privados e, em janeiro, após longo represamento de dados, nos levantamentos do Ministério de Saúde. A explosão de casos diários, que já passam de 200 mil, já eleva as internações. A média móvel de mortes aumentou 121% em duas semanas.
Especialistas alertam que a chegada e a evolução da Ômicron, ao longo do mês de dezembro, não foram registradas pelo Ministério da Saúde. Alguns usam a expressão “voo cego” para ilustrar a situação dos gestores públicos e dos hospitais privados. Quando os sistemas da pasta sofreram um ataque hacker, em 10 de dezembro, o número de casos, hospitalizações e mortes por covid-19 estava no nível mais baixo do ano. Isso foi antes das celebrações de fim de ano, do surto de gripe em várias cidades e do avanço da variante Ômicron.
Em janeiro, o ministério informou que quatro de suas plataformas haviam sido restabelecidas ainda em dezembro e que a instabilidade não teria interferido na vigilância de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave. Isso é o oposto do que dizem os pesquisadores. “Tivemos um apagão epidemiológico importante. Esses números estabilizados, segundo o Governo Federal, envolvem os dados retrospectivos? Para chegarmos à média móvel recorde de 100 mil deve ter havido uma variação importante em janeiro”, opina Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.
O especialista se refere à média móvel de 100 mil diagnósticos diários registrada na quarta-feira, 19. Foi a primeira vez que esse número foi atingido desde o início da pandemia. Em comparação à média de 14 dias atrás, a variação foi de +487%, de acordo com os dados do consórcio de veículos de imprensa formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL em parceria com 27 secretarias estaduais de Saúde.
Mesmo sem os dados oficiais, o avanço da doença é flagrante. Com o surto de gripe misturado ao crescimento de casos de covid-19, pessoas com sintomas gripais lotam as unidades de saúde neste início de ano no interior e na capital de São Paulo. Com isso, as vendas de medicamentos antigripais nas farmácias dispararam. A procura por remédios para coriza, febre e dor de cabeça, muitos comercializados sem receita, triplicou em alguns estabelecimentos, na comparação com o mesmo período do ano passado. A Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) já identificou falta de determinados itens.
A recuperação dos dados do Ministério de Saúde não resolveu o problema da subnotificação de casos, na opinião de Julio Croda, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Na visão do especialista, a questão é recorrente. “Desde outubro, o e-Sus não reportou adequadamente os testes de antígeno. Ainda não sabemos o real impacto da Ômicron. Os números ainda são subestimados. A maioria dos resultados é da rede privada”, afirma.
Outro entrave é a falta de testes de detecção de covid-19. Em várias partes do Brasil, gestores públicos e laboratórios privados têm dificuldades para conseguir mais exames. A rede de saúde da capital paulista definiu no sábado, 15, que só casos considerados prioritários - como gestantes, pacientes com comorbidade e moradores de rua - seriam testados.
O número de casos neste início do ano impressiona na comparação com os períodos anteriores. Apenas nos primeiros 19 dias do ano, o número de casos de covid (1.135.488) equivale a 30% do total de casos confirmados ao longo de todo o segundo semestre de 2021 (3.726.209). O número de casos nos primeiros 19 dias do ano (1.135.488) já supera em 132% o total de casos confirmados no último trimestre de 2021 (859.596). Outra comparação: o mês de janeiro já registra 8% do total de casos do ano passado inteiro.
Impacto nas mortes
Em razão do grande número de pessoas acometidas pela Ômicron em pouco tempo, uma parcela necessitará de cuidados médicos intensivos, especialmente entre os grupos não imunizados ou ainda com o esquema vacinal incompleto. Isso significa mais internações e, eventualmente, óbitos. A curva de mortes começou a subir recentemente por conta do tempo entre o contágio, hospitalização, óbito, confirmação da causa e, finalmente, o registro. No dia 31 de dezembro, a média móvel registrava 97 óbitos diários. No dia 19, essa mesma métrica registrava 215 óbitos diários. É um aumento de 121% em pouco mais de duas semanas.
Dessa forma, a média móvel de vítimas atingiu agora um patamar acima do que estava às vésperas do ataque hacker ao Ministério da Saúde, quando a média indicava 183 mortos pela doença a cada dia. Desde o dia 3 de dezembro de 2021, o País não ultrapassava as 200 mortes diárias.
“Embora parte do aumento de casos derive da normalização dos dados nas bases do Ministério da Saúde, a curva de óbitos tem ascendido de forma sustentável, indicando uma tendência de aumento, com a perspectiva de que continue para as próximas semanas”, opina Wallace Casaca, matemático da Unesp e um dos responsáveis pela plataforma SP Covid-19 Info Tracker, que projeta infecções, óbitos e recuperados em São Paulo.
Os especialistas pontuam que o crescimento dos óbitos não deve acompanhar o ritmo do aumento de casos em razão da campanha de vacinação. Tomar duas doses significa reduzir a manifestação mais severa da doença. “Nos outros países, nós observamos uma explosão de casos, um aumento não proporcional de internações e um número menor de óbitos”, afirma Croda.
Nesse contexto, Domingos Alves alerta que a doença pode avançar exatamente nas regiões que ainda não atingiram pelo 70% de imunização da população. O especialista mostra preocupação com os estados das regiões Norte, como o Acre (47%) e Amazonas (54%), do Centro-Oeste (Mato Grosso tem 59% da população vacinada), além do Rio de Janeiro (66%). “Isso (índice de vacinação) pode levar ao aumento das internações em UTIs e também dos óbitos. São estados com maior risco. Isso pode fazer com que a cepa perdure por mais tempo”, alerta.
Comparação com outros países
A angústia de dois anos de pandemia deixa uma pergunta no ar: quando vamos sair dessa? Embora seja difícil cravar o que vai acontecer nas próximas semanas, a observação empírica dos momentos pandêmicos de outros países permite algumas previsões sobre o comportamento das curvas de casos e óbitos no Brasil. Em linhas gerais, as experiências no Reino Unido e África do Sul apontam um período de quatro a seis meses para a ascensão de casos e óbitos e um período equivalente para a queda.
Estudo da Universidade de Washington aponta um platô da curva epidêmica da Ômicron no Brasil com 800 a 1200 óbitos diários. Segundo os especialistas, esse patamar deve ocorrer no final do mês e início do mês que vem. Depois desse patamar, seriam mais quatro semanas para a queda rápida. “Creio que (os casos) deverão cair na primeira ou segunda semana de fevereiro, baseado na África do Sul e Reino Unido”, projeta o epidemiologista Paulo Lotufo, da USP.
Obviamente, as extrapolações não consideram a possibilidade de festas e aglomerações no carnaval e destacam a necessidade de adoção de medidas efetivas para colocar um freio na Ômicron. Por isso, Domingos Alves é mais cauteloso. “É preciso cuidado nas estimativas. O risco no Brasil é bem grande. Devemos ter uma epidemia do mesmo patamar nos EUA, talvez até mais grave”, projeta o especialista.
Um dos pontos de atenção do especialista é a vacinação das crianças que, em sua visão, começou tarde. “Nos Estados Unidos, a porcentagem de casos em crianças saltou de 5% para 20%. Aqui, nós demoramos muito para vacinar as crianças, o que pode levar a uma situação grave”.
A vacinação das crianças começou no País nesta sexta-feira, 14, quase um mês após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) dar aval ao imunizante. Contrário à vacinação, o governo Jair Bolsonaro colocou em xeque a segurança e a eficácia da vacina e convocou uma consulta pública sobre o assunto, embora o produto seja recomendado por médicos, cientistas e usado em mais de 40 países.
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