Mesmo ciente de epidemia, secretária antidengue da Saúde passou janeiro em férias no exterior

Secretária de Vigilância em Saúde Ethel Maciel passou todo o mês de janeiro longe da pasta, em férias autorizadas pela ministra Nísia Trindade. Relatórios alertaram sobre pandemia ao longo de 2023. Procurado, ministério disse que substituta garantiu continuidade das ações

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Foto do author Daniel  Weterman
Atualização:

Em meio à pior epidemia de dengue da história do País, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, autorizou férias para a secretária responsável pelo combate à doença. Ethel Maciel é epidemiologista e atual titular da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA) do ministério. Ela passou todo o mês de janeiro de férias, e inclusive em viagens ao exterior – um dos destinos foi a Índia, conforme postagem da própria secretária nas redes sociais. Procurado, o Ministério da Saúde disse que ela foi “devidamente substituída”, “tendo sido garantidos a continuidade e o monitoramento das ações planejadas”.

A secretária de Vigilância em Saúde, Ethel Maciel, na cidade indiana de Varanasi Foto: Instagram via @ethelmaciel

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No dia 1º de janeiro, Ethel Maciel postou uma série de fotos no Instagram nas quais participa de cerimônias religiosas hindus e budistas. Ao menos uma das fotos é na cidade indiana de Varanasi, considerada a mais sagrada do hinduísmo e banhada pelo rio Ganges. “Despeço de 2023 com gratidão. Com as energias do hinduísmo e do budismo abraço 2024 e desejo muita sabedoria para atravessarmos os desafios que nos esperam”, escreveu ela.

Na última terça-feira, 2, o País atingiu a marca de 2.624.300 casos prováveis de dengue, sendo 24.218 deles casos graves, segundo dados do Ministério da Saúde. Desde o início deste ano, já são 1.020 mortes por dengue confirmadas, com mais 1.531 em investigação. O número de casos é recorde e supera em quase 1 milhão a marca anterior, de 2015, quando foram registrados 1,68 milhão de infecções. Segundo o ministério, o número de casos novos já começou a retroceder no Distrito Federal e em sete Estados. A epidemia segue aumentando em outros sete Estados, principalmente na região Nordeste.

Nos últimos meses, o avanço da epidemia de dengue tem causado desgaste ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Nas redes sociais, a oposição passou a chamar o petista de “presidengue” e a culpá-lo pelo avanço da doença. Em meados do mês passado, Lula cobrou mais eficácia da pasta de Nísia Trindade no enfrentamento à dengue numa reunião ministerial no Palácio do Planalto – e o tom das críticas foi tão forte que ela teria chorado durante o encontro.

Afastamentos de secretários do Ministério da Saúde precisam ser autorizados pela ministra da pasta, Nísia Trindade. A última agenda pública de Ethel em 2023 foi no dia 21 de dezembro, uma quinta-feira. Na terça após o natal, dia 26, a agenda oficial da epidemiologista mostra que ela foi substituída por Angélica Espinosa Barbosa Miranda, diretora de Programa da secretaria chefiada por Ethel. Na agenda oficial, a substituição vai até o dia 24 de janeiro. Mas, no Diário Oficial da União (DOU), Angélica assina como secretária substituta até o dia 31 daquele mês. Ethel Maciel recebeu cerca de R$ 11 mil a título de férias em janeiro, segundo o Portal da Transparência.

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Nota técnica de novembro alertou para ‘possibilidade de epidemia de maiores proporções na história do Brasil’

Quando autorizou as férias de Ethel Maciel, Nísia já sabia que o País poderia enfrentar uma situação grave em relação à dengue nos próximos meses. No dia 22 de novembro passado, o Ministério da Saúde publicou um documento informando sobre a possibilidade de recorde nos casos de dengue. O documento foi assinado pela própria Ethel Maciel. Professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Ethel é doutora em epidemiologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e desenvolveu uma pesquisa de pós-doutorado na Johns Hopkins University (EUA).

O afastamento durante o mês de janeiro aparece na agenda oficial de Ethel Maciel Foto: E-agendas/CGU - reprodução

Batizada de Nota Informativa nº 30/2023, o documento chama a atenção para a “possibilidade de uma epidemia de maiores proporções que as já documentadas na série histórica do País” em decorrência do aumento de um dos sorotipos da doença, o DENV3. Um dos menos prevalentes até então, o DENV3 possui “alto número de indivíduos suscetíveis” no Brasil, facilitando o aumento repentino no número de casos.

A nota menciona também um relatório da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de outubro de 2023, que previa “cerca de 2.211.873 casos suspeitos de dengue (...) para o ano de 2024 no Brasil”. A estimativa da equipe da Fiocruz fala em até 3,5 milhões de casos, e foi elaborada a partir de um modelo estatístico. “No caso de estimativas por Unidades Federadas (UF), há expectativa de aumento em quase todas as UF com destaque para a Região Nordeste”, diz um trecho.

A nota é assinada pela coordenadora-geral de Vigilância de Arboviroses, Livia Frutuoso, pela diretora do Departamento de Doenças Transmissíveis, Alda Maria da Cruz, e pela própria secretária Ethel Maciel.

Sanitarista e professor da Universidade de Brasília (UnB), Jonas Brant explica que os casos de dengue no Brasil são cíclicos: a cada dois ou três anos em baixa, espera-se um pico no número de pessoas infectadas pelo vírus. Além disso, o clima no fim de 2023 foi propício para a doença, com duas semanas de calor recorde no fim do ano. A epidemia anual de dengue, que costuma ter seu pico em abril e maio, acabou começando mais cedo.

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“E a gente tem um cenário também de desestruturação do cenário da vigilância entomológica e da dengue no Brasil. No período da pandemia, e na gestão Bolsonaro, isso não foi prioridade. Com a pandemia (de Covid-19), todos os recursos foram para a Covid. Então, todo esse trabalho do agente de endemias que visita as casas, isso não foi priorizado. Essa estrutura estava fragilizada”, diz Brant.

“E justamente em dezembro é quando a gente tem uma fragilidade na nossa capacidade de resposta devido ao final de ano. Toda a desmobilização que a gente tem, em função até da mudança do ano fiscal. Então, tudo isso facilitou para que o vírus pudesse aumentar o número de casos no fim do ano passado e início deste”, acrescenta ele.

Sobre as férias de Ethel Maciel, Brant avalia que o mais importante é saber se o Ministério da Saúde tinha se planejado para enfrentar a epidemia de dengue, independentemente da presença ou não da secretária. “É difícil julgar o contexto que estava vivendo o ministério. É importante que um gestor tenha planos de contingência, tenha organizado a equipe, para que ele não seja insubstituível. É importante que uma equipe possa operar independentemente das pessoas que estejam ali, e sim porque ela tem uma boa organização”, diz ele.

Ministério da Saúde: ações não foram interrompidas por férias

Em nota enviada ao Estadão, o Ministério da Saúde disse que as ações de combate à dengue não foram interrompidas pelas férias de Ethel Maciel. “Quase todos os departamentos da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente atuam nas atividades relacionadas ao enfrentamento à dengue. São 407 profissionais atuando intensamente no planejamento, organização, coordenação e controle das medidas contra a dengue nos departamentos de Emergências, de Imunizações e de Doenças Transmissíveis”, disse a pasta.

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“Durante seu afastamento, a secretária Ethel Maciel foi devidamente substituída pela doutora Angélica Espinosa – médica, com mestrado e doutorado em Doenças Infecciosas e Saúde Pública – tendo sido garantidos a continuidade e o monitoramento das ações planejadas”, diz a nota.

“A Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde mantém o constante acompanhamento sobre o cenário epidemiológico da dengue no Brasil, tendo adotado todas as ações necessárias com a devida antecedência e planejamento para o enfrentamento da doença em todo o território nacional”, disse a pasta.

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