A definição de morte súbita compreende óbitos inesperados, que surpreendem a família dos pacientes e os médicos. Conforme a Medicina avança e as ferramentas diagnósticas se tornam mais sofisticadas, mais se percebe que ela não é tão súbita assim: as principais causas podem deixar sinais de que algo não vai bem.
É o caso da cardiomiopatia hipertrófica, causa mais importante de morte súbita em atletas e muito prevalente no Brasil, de acordo com o cardiologista Fábio Fernandes, médico do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP, integrante da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e um dos responsáveis pela recém-lançada diretriz de diagnóstico e tratamento do problema. É a primeira vez que uma padronização é proposta para essa doença no Brasil – antes, os médicos seguiam documentos da Europa e dos Estados Unidos.
“Muito paciente pode ter tido uma dor no peito, uma palpitação, um desmaio, uma falta de ar. Tem uma cardiomiopatia hipertrófica, não sabe, está em risco e correndo um Ironman”, diz, entrevista ao Estadão, fazendo referência a uma prova esportiva intensa, que compreende natação, ciclismo e corrida.
O diagnóstico do quadro não é uma sentença de morte nem significa ter que abandonar completamente o exercício físico, considerado um dos pilares para a prevenção e o controle de doenças, incluindo os problemas cardiovasculares. Trata-se, na verdade, de ter ciência de um problema sério e se exercitar com segurança.
Essa cardiomiopatia tem tratamento, que pode ser farmacológico ou cirúrgico, e, quando o médico detecta um risco de morte súbita, um cardiodesfibrilador implantável (CDI) pode salvar vidas.
Confira os principais trechos da entrevista.
O que é a cardiomiopatia hipertrófica?
Em uma linguagem leiga, quando você carrega peso, teu músculo reage frente a uma força, então ele fica hipertrófico. O coração, quando tem uma sobrecarga, está carregando um pesinho, por exemplo. O paciente que é muito hipertenso, que tem uma estenose aórtica, a válvula fecha, ele tem que fazer aquela força, também está carregando um pesinho. Só que isso é uma hipertrofia reacional, uma sobrecarga de volume ou de pressão, em termos médicos.
Quando olhamos para as células cardíacas que contraem, costumo dizer que é como se você tivesse um barco de remo. Há dez remadores, e cada remada que você faz é a contração do músculo cardíaco. Numa fibra cardíaca normal, desses dez remadores, só dois remam e os outros oito ficam tranquilos. Na cardiomiopatia hipertrófica, você tem nove remando. É um estado de hipercontração e hiperelaxamento, e por isso que o coração hipertrofia.
A definição da cardiomiopatia hipertrófica é um aumento do tamanho do coração sem uma causa definida. Geralmente ela é genética. Uma porcentagem de 50% a 60% tem causas genéticas.
Por que essa hipertrofia do coração é ruim?
Em longo prazo, a hipertrofia aumenta, assim como a fibrose. É uma hipertrofia com uma fibrose, que são cicatrizes no coração, que se tornam patológicas e podem levar a arritmias graves e à morte súbita.
Outra coisa: quando há essa hipertrofia, não há um estímulo para a circulação coronariana acompanhar. Você tem o que a gente chama de desbalanço entre oferta e consumo. O coração tem uma maior necessidade de receber sangue e nutrientes, mas o sangue que chega até ele passa a não ser o suficiente. Então, o paciente pode ter dor.
A hipertrofia também altera o relaxamento do coração. O coração contrai muito bem, mas relaxa com muita dificuldade. É o que a gente chama de insuficiência cardíaca (IC) com fração de ejeção preservada (ICFEP).
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Por que, até agora, não tínhamos uma diretriz brasileira e seguíamos as internacionais?
O conhecimento médico científico sobre a cardiomiopatia hipertrófica teve um avanço enorme nas últimas décadas. Temos um melhor entendimento da fisiopatologia da doença, um aumento expressivo da caracterização dos métodos de imagem, que incluem a ressonância, e principalmente a genética tem ajudado na caracterização de alterações que corroboram com ela.
Além disso, existem tratamentos, tanto intervencionistas, como cirurgia, bem como drogas novas, para tratar a cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva. Toda vez que esse conhecimento avança de tal forma, há necessidade de a gente ter uma diretriz. E uma diretriz com experiência nacional.
A diretriz vem para orientar o cardiologista clínico na melhor prática baseada em evidência. Hoje, não importa a opinião pessoal do Fábio, não importa a opinião pessoal do fulano, mas, sim, a medicina baseada em evidência.
Qual o tamanho do desafio dessa doença para o Brasil?
É uma doença que é extremamente prevalente. Talvez seja a doença genética mais prevalente no mundo e no Brasil. Ela já foi reportada em mais de 120 países, e tem uma prevalência que pode chegar a 1 para 200, ou 1 para 500.
Talvez, no Brasil, existam mais de 400 mil pessoas que tenham a doença. Dessas, 90% são assintomáticas, e somente 10% são sintomáticas. Às vezes, você pode ter um problema, que é potencialmente complexo, porque é a principal causa de morte súbita em atletas, e não saber.
Cerca de 70% dos pacientes têm uma obstrução do coração, têm um sopro rude do coração, que é facilmente audível para o clínico. Se você faz uma avaliação pré-participação de atividade física, um eletrocardiograma, uma ausculta cardíaca e vê o histórico da pessoa, pode estratificar e proteger melhor o paciente.
Um dos riscos é a morte súbita, como o senhor já citou. Qual é a definição de morte súbita?
A melhor definição é a morte inesperada. O clínico não espera, o paciente não espera, o familiar não espera. Grande parte das mortes súbitas ocorre por fibrilação ventricular, ou seja, há um foco de arritmia. Na hora que você tem uma arritmia, o coração fibrila, deixa de contrair e para.
Hoje, você tem indícios, que são parâmetros clínicos, eletrocardiográficos, de ressonância e de história familiar, para definir pacientes de maior risco a ter uma morte súbita. A morte súbita pode ser evitada em uma porcentagem grande de pacientes.
Estudos antigos mostravam uma mortalidade de pacientes com cardiomiopatia hipertrófica de 6,5%. Hoje, é menos de 0,5% ao ano.
O senhor fala da morte súbita cardíaca. Qual a incidência dela no Brasil?
A principal causa de morte súbita é a doença cardiovascular. A principal causa de mortalidade no Brasil, ainda mais do que câncer, é a doença cardiovascular. A Sociedade Brasileira de Cardiologia tem feito várias campanhas para tentar chamar a atenção para isso.
Por isso é importante fazer uma avaliação clínica antes de começar uma atividade física. Hoje, você consegue identificar pacientes de maior risco e tratá-los adequadamente, inclusive até indicar um cardiodesfibrilador implantável (CDI).
O senhor diz que grande parte dessas mortes pode ser evitada. O que falta?
Conscientização. Quantas pessoas fazem um checkup? Quantas pessoas fazem uma avaliação pré-atividade física? Observamos um aumento da procura médica quando, infelizmente, acontece uma desgraça, como um jogador de futebol que morre subitamente, um jogador de basquete que morre subitamente.
Quem deve fazer esse checkup e quando isso deve ocorrer?
Se você vai fazer um exercício físico de alto impacto e alta intensidade, como esportes competitivos, futebol, maratona, corrida, basquete e tênis, um exame físico, um eletrocardiograma, consegue estratificar uma boa parte dos pacientes (de risco). Você tem histórico (de saúde), algumas sintomatologias e outros exames complementares (que ajudam a fechar um diagnóstico).
Costumo brincar que a morte súbita não é tão súbita assim. Às vezes, dá alguns indícios. Antes dela, o paciente teve uma dor no peito, uma arritmia, um desmaio. É preciso atentar a esses sintomas para poder avaliar melhor.
Quem tem diagnóstico de cardiomiopatia hipertrófica não pode fazer exercício?
Cada caso tem que ser individualizado. Antes, a cardiomiopatia hipertrófica era uma doença para a qual se contraindicava todo tipo de atividade física. Hoje, na própria diretriz, existem critérios para quais atividades físicas o paciente pode fazer, e quais são as limitações.
No caso de cardiomiopatia hipertrófica, sempre vai ser necessário fazer uma atividade física sob supervisão, com orientação do médico do esporte. O ideal é o paciente procurar um médico especializado, um cardiologista, de preferência especializado em esporte, para poder ter orientação sobre reabilitação.
Na diretriz, vocês citam uma carga importante de morte súbita por cardiomiopatia hipertrófica em adolescentes e adultos jovens. Mas citam um estudo sueco que mostra que o risco de morte súbita é maior em crianças e adolescentes quando comparados com pacientes adultos. Por quê?
A doença geralmente se manifesta no final da adolescência e início da idade adulta. Se ela começa muito precocemente, numa criança muito jovem, geralmente são formas mais agressivas da doença. Tem mais hipertrofia, tem mais fibrose, e esse paciente pode ter maior risco de morte súbita.
Geralmente, aos 20 anos é quando começa a alterar o eletrocardiograma. Com 21, começa a ter hipertrofia. Lógico, pode ter gente que vai ter mais tarde, pacientes que começam com 40.
Por que há maiores riscos de complicações para esse adulto jovem?
A história natural (da doença) mostra que à medida que você vai ficando mais velho, vai diminuindo o risco de morte súbita.
Quando falamos da relação com a morte súbita, a cardiomiopatia pode parecer uma sentença de morte...
Ontem eu atendi um paciente super diferenciado: para ele, acabou a vida. Falou: ‘já vou fazer seguro, já vou fazer isso’. Não, não é isso, não é isso. Falei: o que eu quero colocar para você é que agora vai fazer exercício com segurança, limitar a frequência, procurar uma pessoa pra fazer a reabilitação.
Não é uma sentença de morte. Cardiomiopatia hipertrófica é uma doença que merece um acompanhamento regular, e precisamos identificar os pacientes de maior risco para prevenção de complicações.
A morte súbita é importante, porque gera uma comoção muito grande, mas a minoria dos pacientes acaba tendo isso. Para se ter noção, dos pacientes que colocam CDI, só 4% têm choque em um ano (quando o aparelho detecta uma arritmia, corrigindo-a). O paciente muitas vezes vai ter um choque depois de 10 anos. É que nem andar com o carro blindado, você nunca sabe se vai ser assaltado. Mas se um dia for, está protegido.
Não é uma sentença de morte. É uma sentença de um cuidado mais rigoroso.
O que é esse cardiodesfibrilador implantável, o CDI?
É como se fosse um marca-passo. Pode ser colocado dentro do coração, ou ser transcutâneo. Ele detecta a arritmia. Então, se o paciente tem uma arritmia grave, dá um choque. São aparelhinhos super inteligentes e salvam vidas.
Como funciona o tratamento para diferentes tipos de paciente?
Tratamos de acordo com o sintoma de insuficiência cardíaca. Ao assintomático é aconselhado um acompanhamento. Quando há sintomas, nos pacientes com a forma obstrutiva da doença, temos as drogas novas ou a redução septal (reduz o tamanho da parede muscular que divide o lado direito do lado esquerdo do coração), que pode ser alcoolização ou miotomia.
Como falei antes, 70% dos pacientes têm uma forma chamada miocardiopatia hipertrófica obstrutiva. O coração contrai bem, mas relaxa mais devagar. Isso aumenta a pressão, dá falta de ar, dá cansaço. Lembra do remador? Temos que fazer com que esses remadores parem de remar. Para isso, utilizamos drogas chamadas inotrópicas negativas, que diminuem a força de contração.
Isso é para tratar a insuficiência cardíaca, e o CDI é para a prevenção de morte súbita (ou seja, pode ser que alguém precise tomar o remédio e também usar o implante, por exemplo).
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