Mudanças climáticas: proteger-se do calor é mais caro do que do frio, alerta Paulo Saldiva

Patologista e professor da USP, referência nos estudos de poluição ambiental, fala sobre mortalidade relacionada às temperaturas extremas

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Foto: MARCELO CHELLO/ESTADÃO
Entrevista comPaulo Saldivapatologista, professor da Faculdade de Medicina da USP e membro do comitê da OMS que estabeleceu os padrões de qualidade do ar

O patologista Paulo Saldiva enxerga cada corpo como uma cidade ou um pequeno planeta. Para ele, cada órgão é um bairro e as artérias são os rios. “Você pode imaginar que quando não chove, faz febre e desidrata. Quando chove demais, faz edema e inunda”, explica, em entrevista ao Estadão. Desde o final da década de 1970, ele estuda minuciosamente essas “pequenas cidades” no subsolo da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), onde funciona um serviço de verificação de óbitos da capital. O lugar lhe deu uma visão privilegiada do que tem ocorrido em nosso planeta. “Você aprende muito a entender uma cidade ou um planeta a partir da vida de um componente deles.”

Observando pequenos fragmentos do corpo humano, ele participou de pesquisas pioneiras que mostravam a associação entre mortalidade e variação da poluição atmosférica, que lhe renderam convites para dois comitês da Organização Mundial da Saúde (OMS). Um deles definiu padrões de qualidade do ar e o outro, o potencial carcinogênico da poluição atmosférica.

Não tardou para que as mudanças climáticas, principalmente as temperaturas extremas, se tornassem objeto de estudo dele. Participou de uma das pesquisas mais emblemáticas desta década, que mostrou fortes evidências de excesso de risco de morte quando a temperatura torna-se extrema. A pesquisa, que teve dados de 384 cidades do mundo, foi publicada em 2015 pela respeitada revista científica The Lancet. Eles demonstraram, por exemplo, que o risco de morte dos habitantes pode aumentar em quase 50% durante extremos de frio e de calor.

O patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP Foto: Marcelo Chello/Estadão

Em entrevista ao Estadão, o médico afirma que as mudanças climáticas já matam, prematuramente, as pessoas mais vulneráveis a variações de temperatura, como idosos e crianças. “É como se estivéssemos em um tubo de ensaio, aumentando a temperatura e contando quantas pessoas morrem ou adoecem.”

Ele alerta que se proteger contra o calor é mais caro do que do frio, por depender de sistemas de condicionamento do ar, e destaca que países mais ricos, os que mais contribuíram para essas alterações, serão os que sobreviverão melhor a elas. “Possivelmente, o saldo bancário e o CEP vão contar mais que talvez os genes.”

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Confira os principais trechos da entrevista:

Recentemente, o senhor falou que ‘a saúde humana é um enorme indicador do que já está acontecendo em função do clima’. O que esse indicador está dizendo?

A saúde é a tromba de um elefante mais complexo. Os indicadores de saúde são um reflexo da educação, do urbanismo, da gestão local, do transporte, de tudo. Se a saúde melhorar, você vai saber que isso pode ter ocorrido pela melhora no sistema educacional, queda na violência. A saúde, se for bem compreendida, é um indicador muito preciso do nível de cidadania. A saúde podia ser incorporada como um denominador comum do resultado de políticas transetoriais.

Quando você tem aumento dos casos de febre amarela na zona norte, você está falando do quê? De devastação de corredores ecológicos. O mosquito não passa de mil metros, mas o macaco infectado passa. Se você for ver por que está aparecendo febre amarela, for fuçar, vai saber que a devastação de ecossistemas está fazendo a gente ter coisas que a gente imaginou que tinham acabado. A saúde é um grande indicador da saúde planetária.

O senhor fala que cada indivíduo é uma cidade ou mesmo um planeta. O que esses planetinhas estão falando? O que o senhor via antes e agora? O que as mudanças climáticas estão fazendo?

As mudanças climáticas estão pegando as pessoas mais frágeis e fazendo elas morrerem antes. Não importa só saber quanto vai ser a temperatura, tem que saber como é que vai ser a demografia. A população está diminuindo, as pessoas vão estar mais velhas, o termostato delas está quebrando.

Possivelmente, os primeiros sapiens saíram do continente africano e chegaram nos polos às custas de processos, não só de evolução, epigenética, cultura, organização social, mas também de um sistema muito eficiente de termorregulação. Tem vários mecanismos fisiológicos para isso. Só que ele quebra, por aterosclerose, que impede o vaso de contrair; por diabetes, que faz o termostato não transmitir mais tanto a mudança de temperatura. Você tem a fragilidade do adoecimento. E na criança, o termostato está sendo construído. Por isso, você nasce e vai com um berço aquecido. Não importa só a temperatura. Importa a vulnerabilidade do receptor.

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Por que eu insisto na saúde como tema regulador de clima? Porque todo mundo tem medo de morrer. Enquanto está morrendo o urso, você vai falar ‘que pena do urso’, mas ele come muito peixe, está longe. O ser humano pode mudar hábitos conscientemente. Os bichos nasceram e se adaptam. Demora um tempo. Vão migrar para outro lugar. Mas hoje você não consegue migrar. O ser humano tem barreiras criadas por fenômenos culturais.

A adaptação fisiológica e a aclimatação existem. É uma mudança que você faz em uma ou duas gerações. A seleção natural é mais difícil. Você tem a aclimatação, mudança de características fenotípicas e fisiológicas, que permitam você sobreviver. Só que aqueles que eram com design antigo não têm reciclagem, eles vão morrer. Você começa a colocar gente dentro das espécies ameaçadas, uma parte de nós.

Eu sou um biólogo de um bicho só, mas acredito que o bicho que está provocando essa mudança são os hábitos culturais que a gente foi acostumado, para os quais não tem solução consensual. Acho que talvez a saúde possa ajudar quando você quantifica, quando você precifica. A saúde não regula a produção industrial, o combustível, o uso e a ocupação do solo, mas pode fundar a sociedade protetora do ser humano.

Então uma parte de nós vai se tornar uma espécie ou já se tornou uma espécie em extinção?

Não é bem uma espécie em extinção, você vai perder variabilidade, vai perder indivíduos. Hoje, a única alternativa que eu considero eficaz, que está ajudando (a controlar as mudanças do clima), é a redução da população mundial. A China já começou a cair, o Brasil já começou a cair, e com isso, teoricamente, vai reduzir o número de indivíduos da espécie daqui a 100, 200 anos. Mas se os hábitos de consumo se mantiverem iguais, não vai adiantar diminuir.

Quem são essas pessoas que estão sendo mais ameaçadas pelo risco do clima?

É unânime, já se sabe, são crianças abaixo de 5 anos e pessoas acima de 70. São esses que vão pagar a conta, por enquanto, dessa história. Hoje, por incrível que pareça, nós temos mais gente no mundo morrendo de frio do que de calor. Mas isso vai mudar em 20 anos. O calor vai ser o grande problema.

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O problema do calor é que, para reduzir a exposição ao calor, é muito mais caro do que reduzir a do frio. No frio você põe um casaco, acende uma fogueira, se aproxima um do outro. Para calor, não. Você tem que usar ar-condicionado. Ou você tem que parar de sair para trabalhar no sol. Os mecanismos disponíveis hoje para reduzir as ilhas de calor, além de implementar a vegetação e mudar as casas, dependem também de condicionamento de ar.

O senhor sempre fala que a pessoa morre pela temperatura extrema, mas não é isso que vai estar na certidão de óbito dela. O que que vai estar lá?

Infarto do miocárdio, AVC (acidente vascular cerebral), pneumonia, insuficiência renal, infecção renal. O que vai estar escrito no atestado das pessoas é pneumonia em criança, desidratação em criança, é pneumonia em idoso, infecção urinária — porque quando no calor, por exemplo, você desidrata, o rim começa a trabalhar que nem maluco, você tem uma insuficiência para puxar a água de volta, o fluxo urinário cai, uma bactéria pode subir, nadar contra a corrente e infectar. O sangue fica mais concentrado, vai fazer um trombo. Esse trombo pode ocluir uma artéria cerebral, uma coronária ou uma artéria mesentérica, e dar infarto no cérebro, infarto no miocárdio ou infarto intestinal. É assim que vai aparecer.

O senhor poderia falar um pouco mais sobre a adaptação? Como vai funcionar?

Seleção natural demora séculos. Epigenética, que é a modulação de genes, pode correr de uma geração para outra, mas vai demorar décadas. Outra coisa pode ser mudança de habitação. Pode ser adaptação da cidade. Isso demora anos. Plantar árvores para ondas de calor demora também até ela crescer. Fazer telhado verde demora mesmo. Se você for esperar que ocorra uma adaptação biológica nossa, a velocidade da mudança climática vai superar a nossa capacidade biológica de adaptação fisiológica ao calor. Vai demorar pelo menos algumas décadas para que isso ocorra. Isso pode significar mais mortes prematuras.

Mas é possível falar em extinção?

Não, não vai extinguir. Já houve extinção de civilizações, mas a espécie não sumiu. Você vai destruir o modo de vida de algumas regiões, mas a espécie não vai ser extinta. Não acho que vai ter desaparecimento da espécie.

Relatórios da ONU falam que as mudanças climáticas podem degradar a expectativa de vida mais do que a pandemia da covid degradou. Voltamos 12 anos atrás com a covid. É possível?

É provável. Só que depende de onde você está falando, de que lugar. No mundo vai cair a expectativa de vida, é possível. Agora vai ter lugar que não vai sentir isso. A grosso modo, os países mais ricos terão mais mecanismos de defesa contra isso, e você vai incorporar à seleção natural um componente socioeconômico, que não é biológico. Possivelmente, o saldo bancário e o CEP vão contar mais que os genes.

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Os países que mais contribuíram para as mudanças climáticas, muito provavelmente, vão ser os que vão sobreviver melhor a elas?

Tenho certeza disso.

Como entra a discussão sobre justiça climática? Está madura? O que a gente precisa?

Ela está ficando madura. Não é que a gente foi ficando mais desigual. Se você voltar na janela de tempo, desde o colonialismo, foi profundamente desigual. Sempre fomos desiguais. E a mudança climática vai ser mais um dos fatores que vai manter essa desigualdade. Por ser global e pela visibilidade que ela tem, talvez seja uma chance de reduzirmos. Talvez ela seja uma oportunidade para a humanidade refletir sobre seus próprios destinos.

Além de morte, falamos de adoecimento. O SUS tem como fazer frente a isso?

O SUS não está ainda plenamente capacitado para fazer frente à variação demográfica. Experimente ficar velho e adoecer. Ele já não está fazendo frente ao que já está ocorrendo independentemente do clima. É lógico que ele está ajudando, mas já não está dando conta do que existe. Nem a saúde suplementar está dando conta.

Tem hoje coisas que já estão acontecendo, e o SUS não está dando conta. Se aumentar, vai ser pior. Você vai ter que ter melhoria da gestão, usar mais telemedicina de forma humana, para levar a atendimento básico. Não precisa esperar a mudança climática para mostrar a dramaticidade do desafio da saúde no futuro. Agora, se você tiver mais gente que adoeça ou complica, é óbvio que isso vai prejudicar ainda mais a estrutura do SUS mantendo-se esse tipo de assistência. Você tem que investir muito em prevenção, mas muito. A solução é reduzir a demanda.

Por isso que eu sou otimista. Você vai ter a chance de mudar em face das necessidades que vão aparecer. Do ponto de vista da saúde, é capaz de o fluxo melhorar. Mas o clima, acho mais difícil.

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