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Mudar 14 hábitos poderia evitar quase metade dos casos de demência no mundo; saiba quais

Em relatório divulgado nesta quarta, comitê de especialistas atualiza fatores de risco modificáveis que reduzem chance da doença; perda visual e colesterol alto aparecem na lista pela primeira vez

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Foto do author Leon Ferrari

Perda visual e colesterol LDL elevado passaram a integrar a lista de fatores de risco modificáveis para a demência, que agora conta com 14 itens. A inclusão é resultado do trabalho de uma comissão de especialistas reunidos pela respeitada revista científica The Lancet para analisar as melhores e mais atualizadas evidências científicas. A terceira edição do relatório foi publicada nesta quarta-feira, 31.

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A publicação aponta que 45% dos casos da doença no mundo poderiam ser evitados com a mudança de 14 hábitos ou condições de saúde. “Nosso relatório revela que há muito mais que pode e deve ser feito para reduzir o risco de demência”, destacou Gill Livingston, autora principal, em comunicado à imprensa.

O relatório foca nas demências neurodegenerativas crônicas, como o Alzheimer, que progridem com o tempo e ainda não têm cura, e não naquelas que podem ser reversíveis, como as ocasionadas por algumas doenças infecciosas.

Cerca de 45% dos casos de demência poderiam ser evitados se 14 fatores de risco modificáveis fossem eliminados Foto: Proxima Studio/Adobe Stock

Segundo os pesquisadores, cada vez mais fica claro que “o risco pode ser modificado, mesmo em pessoas com risco genético aumentado de demência”. Um dos caminhos para isso é fortalecer a reserva cognitiva, uma espécie de “poupança” do cérebro acumulada com hábitos saudáveis e estímulo cognitivo que nos ajudam a resistir a alterações cerebrais e lesões que se acumulam ao longo da vida.

“O fator genético nas demências não é tão alto como as pessoas pensam. Se você tem uma história familiar de demência, não significa que você necessariamente vai desenvolver a doença. O ambiente, que são esses fatores de risco (do relatório), são muito mais importantes”, disse ao Estadão a médica Cleusa Ferri, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e uma das autoras do estudo.

Só o tratamento adequado do colesterol LDL elevado poderia evitar 7% dos casos de demência no mundo. A perda visual é responsável por 2%. O relatório também delineia como cada vez mais entendemos que a prevenção tem de começar o mais cedo possível e durante todo o curso da vida, porém, nunca é tarde para mudar e há benefícios dessas mudanças em qualquer idade. No estudo, os especialistas destacam em que momento da vida há mais evidências de que a eliminação desse fator traria uma maior proteção: início da vida (0 a 17 anos), meia-idade (18 aos 65) e idade avançada (mais de 65 anos).

O relatório traz uma visão global, ainda com mais estudos de países ricos, em especial norte-americanos e europeus. Nesse sentido, acredita-se que o benefício da mudança desses fatores de risco possa ser ainda maior em países de média e baixa renda como o Brasil, afinal, a prevalência deles costuma ser maior nessas nações.

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Em 2020, a lista contava com 12 itens, que seriam capazes de reduzir 40% dos casos de demência no mundo. Um estudo brasileiro, publicado no jornal científico Alzheimer’s & Dementia, olhou para eles com base na realidade brasileira e concluiu que poderiam evitar 48,2% dos casos por aqui. Os fatores principais foram a educação, a perda auditiva e a hipertensão.

O combate aos fatores de risco também deve ser endereçado por políticas públicas, de acordo com os pesquisadores. Isso porque vulnerabilidade socioeconômica e dificuldades de acesso ao sistema de saúde, por exemplo, podem dificultar a missão de quem quer mudar um desses hábitos. “No Brasil, por exemplo, a redução do tabagismo tem muito a ver mais com campanhas feitas no passado”, lembra Cleusa. “As políticas públicas têm um poder muito maior do que o foco no indivíduo.”

Confira a lista completa de fatores de risco modificáveis:

1 - Baixa escolaridade

De acordo com o relatório, todas as crianças devem ter acesso à educação, e uma “longa duração” de instrução é benéfica contra a demência. O efeito protetor parece ser impulsionado pelo nível de escolaridade (básico, médio, superior etc).

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Por quê? A proteção pode ser entendida de diversas formas: a pessoa tem mais chance de ter um trabalho cognitivamente estimulante; mais acesso a informações sobre saúde e também aos cuidados; maior obtenção ocupacional e situação financeira, que permite mais escolhas sobre onde viver e o que comer, por exemplo. Sobretudo, a alta estimulação cognitiva da aprendizagem ajuda a manter reserva cognitiva por causa da maior circulação de proteínas que permitem a reparação cerebral e também maior eficiência e menos declínio nas redes cerebrais funcionais.

Recomendação: Assegurar que uma educação de boa qualidade esteja disponível para todos e incentivar atividades cognitivamente estimulantes na meia-idade para proteger a cognição.

2 - Perda auditiva

Duas em cada dez pessoas no mundo vivem com perda auditiva, que, em geral, está associada à exposição ao ruído e infecções não tratadas. Muitas vezes, ela não é tratada, alerta o relatório.

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Por quê? Há vários motivos pelos quais essa condição pode levar à demência. Há mecanismos psicossociais, como solidão, depressão e isolamento social. Além disso, há possíveis prejuízos à reserva cognitiva, ao passo que a pessoa vivencia menos estímulos sonoros. À medida que a severidade da perda auditiva aumenta, o risco de demência também cresce, frisaram os cientistas.

Recomendação: Tornar os aparelhos auditivos acessíveis para pessoas com perda auditiva e diminuir a exposição a ruídos prejudiciais.

3 - Depressão

A relação entre depressão e demência é provavelmente bidirecional, relatam os pesquisadores. Ela pode tanto ser um fator de risco, em especial no meio da vida, quanto, anos antes do diagnóstico, um sintoma de uma demência que evolui ou uma reação ao comprometimento cognitivo.

Por quê? A ciência ainda não compreende tão bem os mecanismos que ligam a depressão ao risco de demência. No entanto, uma das hipóteses aponta que esses pacientes podem reduzir o contato social e também terem menos cuidados pessoais. Além disso, acredita-se que essa relação pode ocorrer por causa da superprodução de cortisol, apelidado de “hormônio do estresse”, que leva a atrofia de áreas do cérebro ou aumenta a inflamação.

Recomendação: Tratar a depressão de forma eficaz.

4 - Tabagismo

No relatório anterior, o tabagismo aparecia como um fator de risco na idade avançada. A edição atual o coloca na meia-idade. “Fumar na meia-idade parece ser um fator de risco mais forte para demência do que fumar na velhice, possivelmente devido a melhorias no tratamento de doenças cardiovasculares e cânceres relacionados ao tabagismo, que aumentam a chance de os fumantes viverem o suficiente para desenvolver demência”, explicaram. Os estudos apontam que parar de fumar reduz o risco de demência em comparação a quem mantém o hábito.

Por quê? Segundo Cleusa, os possíveis mecanismos têm a ver com prejuízos à saúde cardiovascular e também com processos inflamatórios e estresse celular devido ao tabagismo.

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Recomendação: Reduzir o consumo de cigarros através de educação, controle de preços e prevenção do fumo em locais públicos, além de tornar os conselhos para cessação do tabagismo acessíveis.

5 - Trauma craniano

As lesões cerebrais traumáticas são aquelas causadas por um impacto externo (trauma). Segundo o relatório em países de média e baixa renda, como Brasil, eles estão associados mais a acidentes de trânsito, enquanto em países ricos, a quedas e violência.

Alguns esportes, como rugby, futebol americano e hóquei no gelo, estão associados a um risco maior de lesões repetidas. As “cabeceadas” no futebol também aumentam risco. “Existe uma preocupação crescente de que jogadores de futebol profissional e amador vivam e morram mais de doenças neurodegenerativas do que a população geral”, escreverem.

Por quê? De acordo com o relatório, essas lesões podem exacerbar a demência por meio de trauma direto.

Recomendação: Incentivar o uso de capacetes e proteção para a cabeça em esportes de contato e em bicicletas.

6 - Colesterol alto

Aqui os especialistas falam sobre níveis elevados do LDL, apelidado de colesterol ruim. Segundo Cleveland Clinic, dos Estados Unidos, a lipoproteína de baixa densidade (LDL) transporta gorduras pela corrente sanguínea, uma vez que não consegue se mover pelo sangue por conta própria. No entanto, em excesso, pode se acumular nas paredes das artérias, formando placas.

Por quê? Segundo os pesquisadores, o excesso de colesterol cerebral está associado a um aumento do risco de acidente vascular cerebral e de deposição das proteínas do Alzheimer.

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Recomendação: Detectar e tratar o colesterol LDL elevado a partir da meia-idade.

7 - Inatividade física

“O exercício em qualquer idade parece ser benéfico para a cognição”, escreveram. O efeito protetor pode depender não apenas da duração da prática, mas também do tipo e da intensidade (leve, moderada ou intensa). Um estudo mostrou que a maior redução no risco ocorreu aos indivíduos passarem de uma inatividade extrema para “alguma atividade física”.

Por quê? Se movimentar parece promover mudanças no fluxo sanguíneo devido à redução da hipertensão e aumento do óxido nítrico, o que resulta numa maior plasticidade cerebral (capacidade do cérebro de se adaptar e aprender) e redução da neuroinflamação. Estudos em camundongos apontam que uma miocina (um tipo de enzima) que é liberada durante o exercício pode ter efeito protetor para o cérebro.

Recomendação: Incentivar a prática de exercícios.

8 - Diabetes tipo 2

O diabetes tipo 2 é uma doença crônica que afeta a forma como o corpo usa o açúcar (glicose) para obter energia, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso acontece porque, apesar de o pâncreas produzir insulina, esse hormônio não consegue atuar direito – e é ele que permite a entrada do açúcar dentro das células para gerar energia. Se a insulina não funciona corretamente, o açúcar sobra na circulação, favorecendo complicações.

As causas dela estão diretamente relacionadas ao excesso de peso (sobrepeso e obesidade), sedentarismo, triglicerídeos elevados, hipertensão e hábitos alimentares inadequados.

No relatório anterior, a comissão colocou a diabetes tipo 2 como um fator de risco para demência na idade avançada. Na nova edição, ela aparece já na meia-idade. “Em um estudo, o risco de demência aumentava com cada redução de 5 anos na idade de início do diabetes tipo 2, até os 70 anos de idade.”

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Por quê? Os mecanismos ainda não estão completamente claros. No entanto, pode ter a ver com complicações vasculares, incluindo o risco de acidente vascular cerebral. Segundo os pesquisadores, a resistência à insulina é um mecanismo molecular comum que liga o diabetes à doença de Alzheimer, por exemplo, e leva a uma maior toxicidade das proteínas que se acumulam e causam o problema, além de estresse oxidativo e neuroinflamação.

Recomendação: Manter um peso saudável e tratar a obesidade o mais cedo possível.

9 - Hipertensão

Segundo o Ministério da Saúde, hipertensão arterial ou pressão alta é uma doença crônica caracterizada por níveis elevados da pressão sanguínea nas artérias.

Por quê? No relatório de 2020, os pesquisadores apontaram que o risco para demência pode ser explicado devido à redução dos volumes cerebrais, por exemplo. A hipertensão também aumenta o risco de AVC e outros problemas cardiovasculares, que, por sua vez, podem levar a lesões cerebrais.

Recomendação: Prevenir o desenvolvimento da hipertensão com alimentação saudável e exercícios e, quando a doença já existir, mantê-la controlada com hábitos de vida saudáveis e uso de medicamentos quando necessário.

10 - Obesidade

Por quê? Há algumas hipóteses. A primeira é de que a obesidade é mais comum em pessoas que se movimentam pouco e está associada a diabetes e à hipertensão, que também são fatores de risco para a demência. Em alguns estudos, perdas de peso modestas intencionais foram associadas a melhorias cognitivas, o que pode indicar que exista um efeito benéfico de comportamentos saudáveis. Além disso, segundo os pesquisadores, a gordofobia (preconceito contra pessoas gordas) está ligada a concentrações aumentadas de cortisol, o hormônio do estresse.

Recomendação: Manter um peso saudável e tratar a obesidade o mais cedo possível.

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11 - Consumo excessivo de álcool

Os autores escreveram que a redução do consumo excessivo de álcool ou o consumo leve sustentado estão associados a um menor risco de demência em comparação com o consumo excessivo. Para eles, ele é caracterizado como abusivo quando há ingestão de 168 gramas (ou 168 mililitros) de álcool por semana.

Conforme já mostrou o Estadão, de maneira geral, a ciência vem demonstrando cada vez mais que não existe quantidade segura da bebida que não afete a saúde. Por mais que possam existir alguns supostos benefícios (até muito recentemente afirmava-se que beber uma taça de vinho por dia ajudava a proteger o coração), os malefícios do álcool são maiores e aumentam os riscos de várias doenças, entre elas o câncer.

Por quê? O risco para a demência pode se dar por perda de consciência induzida pelo álcool. Segundo os pesquisadores, alguns estudos demonstraram redução do volume de massa (ou matéria) cinzenta do cérebro (responsável pela nossa capacidade de pensamento, linguagem, julgamento e percepção).

Recomendação: Reduzir o consumo excessivo de álcool através do controle de preços e aumento da conscientização sobre níveis e riscos do consumo excessivo.

12 - Isolamento social

Aqui, os cientistas falam da falta de contato social, mais do que o sentimento de solidão, que é algo subjetivo (ou seja, a pessoa pode estar cercada de pessoas, mas se sentir sozinho). A maioria dos estudos que encontraram associação entre isolamento e demência tem critérios bem definidos para ela, como morar sozinho, ver amigos e/ou familiares menos de uma vez ao mês ou não participar de atividades em grupo semanalmente.

Por quê? “O contato social de qualquer forma tem um efeito potencialmente benéfico no risco de demência, aumentando a reserva cognitiva, promovendo comportamentos saudáveis e reduzindo o estresse e a inflamação”, escreveram os pesquisadores. Alguns estudos apontam uma associação com menor volume de matéria cinzenta nas regiões temporais, frontais e outras regiões do cérebro.

Recomendação: Priorizar ambientes comunitários e moradias de apoio para aumentar o contato social.

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13 - Exposição à poluição do ar

Isso vale tanto para a poluição em ambientes domésticos quanto externos.

Por quê? No relatório de 2020, estudos em animais mostraram que os poluentes particulados (que ficam suspensos no ar) aceleram processos neurodegenerativos por meio de doenças cerebrovasculares e cardiovasculares, além da deposição das proteínas do Alzheimer.

Recomendação: Reduzir a exposição à poluição do ar.

14 - Perda visual

Novidade na lista, a prevalência da perda de visão evitável e cegueira, que inclui problemas comuns de visão para os quais são prescritos óculos, em adultos com 50 anos ou mais, é estimada em 12,6%.

Por quê? Pode ocorrer por causa da associação com outros fatores de risco para demência, como diabetes. Do ponto de vista da reserva cognitiva, assim como na perda auditiva, aqui temos menos estimulação visual. Segundo os pesquisadores, há ainda processos neuropatológicos compartilhados tanto na retina quanto no cérebro.

Recomendação: Tornar o rastreamento e tratamento para perda de visão acessíveis para todos.

Na mira

No relatório, os cientistas destacam que existem outros fatores de risco potencialmente modificáveis. Eles consideraram alguns deles, mas avaliaram que, por ora, faltam evidências consistentes suficientes para incluí-los na lista.

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Alguns que estão na mira da ciência são:

  • Dormir pouco e/ou dormir demais
  • Alimentação não saudável e desequilibrada
  • Transtornos mentais, como esquizofrenia, ansiedade e estresse pós-traumático
  • Menopausa (em especial, a de início precoce)
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