Os corredores cheios e o barulho de voz de criança deram lugar ao silêncio. A fachada da escola, colorida com desenhos infantis, ganhou tinta branca e até a grama do parquinho, lugar de tantas brincadeiras, teve de ser retirada. Enquanto parte dos colégios tenta se adaptar a um novo normal mediado pelas telas, para outros a pandemia do novo coronavírus significou o fim da linha.
Mais afetadas pela crise, escolas particulares da educação infantil de São Paulo estão fechando as portas e aquelas que não encerraram as atividades registram queda de até 80% nas receitas e perda de metade dos alunos. Até setembro, data prevista para o retorno presencial, temem não conseguir ficar de pé. A fim de manter o vínculo com estudantes e pais, algumas instituições apelam para atividades remotas, grupos online e até festinhas no estilo drive-thru.
"Sobraram duas matrículas. O que eu faço com dois alunos?" A indagação de Eliane Fuzaro, de 54 anos, só encontrou uma resposta: fechar. A escola de educação infantil que fundou no Parque Novo Mundo, na zona norte de São Paulo, tinha 30 alunos - a maior parte moradores do bairro - até que veio a pandemia, a unidade foi fechada e os cancelamentos de matrículas se disseminaram.
"Eu havia refeito a frente da escola, fiz parque e grama novinha. Estava investindo e mães de ex-alunos grávidas já reservavam vagas. Minha expectativa era outra, completamente diferente." Os contratos com as professoras foram suspensos, o imóvel - alugado - está sendo reformado para ser devolvido ao proprietário e agora Eliane busca acordo com as educadoras porque falta dinheiro até para pagar as demissões.
A penúria das escolas de educação infantil é mais grave do que o dos demais colégios porque essas instituições recebem os alunos mais novos. Pela legislação brasileira, até os 4 anos de idade não é obrigatório estar matriculado. Além disso, são as que enfrentam mais dificuldades de manter aulas online, com crianças tão pequenas. É comum que os pais cancelem os contratos até que a escola possa voltar a funcionar no modelo presencial ou que uma vacina contra o coronavírus seja descoberta.
É o caso da administradora Talita Carneiro, de 27 anos. Mãe de Miguel, de 3, ela cancelou o contrato com a escola particular onde o menino estudava depois de notar que o filho não acompanhava as aulas online. "O Miguel não queria sentar para fazer as atividades. Depois teve aula online e ele sofreu porque viu os coleguinhas, viu a 'tia'. Passaram videoaula e ele só assistia a chamadinha e não queria mais." Como muitos pais, Talita não pretende mandar o filho, diagnosticado com autismo, para a escola este ano.
No Ipiranga, na zona sul de São Paulo, os móveis e até o cenário de uma unidade da Escola Shekinah já foram retirados. O espaço, destinado a bebês de até 2 anos, foi fechado após a perda de metade das matrículas. "O berçário é a base, o bebê começa na escola e fica. O aluguel do imóvel era caríssimo. Lá eu fiz a cenografia como se fosse um buffet (de festas). Deu dó ver desmontar tudo aquilo. É um sonho que a gente tem, tenho escola há 23 anos e hoje vejo que a educação no Brasil é para os fortes", diz Sheila Alcântara, de 39 anos, mantenedora do colégio. Em outras unidades, a escola vem dando descontos, mas também registrou cancelamentos de matrículas e já demitiu 10% dos funcionários. "Todos os dias recebemos ligação com pedido de cancelamento", diz Sheila. Na Escola Lua de Algodão, na zona oeste de São Paulo, foram mais de 20 rescisões apenas na semana em que o governo estadual anunciou que as aulas presenciais só voltariam em setembro. Segundo Luisa Pereira, diretora financeira da escola, a situação se agravou com o prolongamento da quarentena. "Todo mundo achava que seria algo rápido." No Lua de Algodão, alguns colaboradores tiveram de ser demitidos depois que o faturamento despencou para 35% a 40% das receitas pré-pandemia. A escola atendia 120 alunos e perdeu 45. Agora, com a reabertura econômica em curso na capital, Luísa diz que há demanda de parte dos pais para mandar os filhos de volta à sala de aula porque não tem com quem deixar as crianças. Muitos voltaram a trabalhar e recorrem aos avós ou a babás.
PORTAS FECHADAS
Presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), Ademar Batista Pereira estima que 10% das escolas de educação infantil particulares já tenham fechado no Brasil e as unidades que atendem crianças de 0 a 5 anos tenham perdido 60% dos alunos. O País tem 32,8 mil escolas privadas de educação infantil, segundo dados do Censo Escolar, de 2018. O cenário é mais grave nas instituições para as crianças menores ainda, de 0 a 3 anos, e naquelas de periferia.O Semeei, sindicato que representa as escolas de educação infantil de São Paulo, prevê que 80% dos colégios particulares para essa faixa etária (dos 12 mil existentes no Estado) não consigam reabrir em setembro, quando deve ser autorizado o retorno presencial. "Elas não suportam cinco meses sem receita, são todas empresas pequenas, a minoria tem reserva", diz o presidente do Semeei, Eliomar Rodrigues. No caso do Colégio Grão de Mostarda, em São José dos Campos, no interior paulista, o déficit na conta jurídica da escola já atingiu até as reservas pessoais da diretora Silvana Goes. Antes da pandemia, eram 50 alunos. Agora, uma turma fechou e Silvana tenta dar descontos para manter os que ficaram. "O pai fala de pagar R$ 300, o que faço? Eu aceito. No meu berçário, sendo honesta, quem está comigo é porque entende que preciso do dinheiro." Para Leticia Rocca, mantenedora da PlayCare, em Moema, 2019, o ano de inauguração da escola, parecia ser o mais desafiador. Foi difícil conquistar os primeiros 45 alunos, mas perder parte deles foi rápido. "Estamos tentando juntar forças, ainda temos pais muito parceiros e são eles que estão segurando a gente", diz Leticia, que começou a empreender na área de educação depois de trabalhar no setor aéreo. A escola perdeu 80% das receitas e fechou a turma do berçário. "Estamos entubados, precisamos abrir."
Escolas se reinventam para manter alunos
Enquanto não pode abrir, a PlayCare investe no vínculo de pais e alunos com as professoras. Na semana passada, fez um festa junina na porta do colégio para que os pequenos pudessem brincar - de dentro do carro - e, principalmente, rever as professoras. A ideia, segundo Leticia, partiu das próprias educadoras, ansiosas com a incerteza sobre o retorno. As atividades online também ocorrem, mas a escola trata com cuidado as interações por meio das telas.
"Nunca foi nossa intenção fazer uma substituição, fazemos para manter o vínculo, para que as crianças lembrem e para facilitar o retorno. Passamos atividades para casa, mas são bebês. Não existe EAD para a educação infantil", diz Leticia. No Grão de Mostarda, são feitas aulas online e reunião virtual de pais - mesma estratégia adotada no Lua de Algodão. "Temos encontros (online) com os pais para compartilhar experiências tanto positivas, quanto frustrações. Eles acumulam uma série de tarefas e se cobram muito por isso, pela atenção despendida. Esse tem sido o ponto mais angustiante, de conciliar home office com a rotina da criança", diz Luisa, do Lua de Algodão. Eduardo Marino, diretor de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, voltada para a primeira infância, diz que aulas virtuais para crianças de 0 a 3 anos não funcionam e não são recomendadas. "O que funciona e pode ajudar bastante é o contato dos pais com os educadores para que os pais assumam um pouco esse papel de estimulador, de promover interações com a criança, brincar, dentro das possibilidades que o isolamento social tem trazido."
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