‘Não quero parar de sentir saudade. Penso nele todos os dias’, diz Lucinha Araújo, mãe de Cazuza

Ativista e escritora afirma que não empregaria IA para lidar com o luto; Christian Dunker vê potencial na tecnologia como objeto de pesquisa, mas não como forma de substituir quem se foi

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Por André Bernardo

No dia 6 de julho de 1990, Cazuza chamou a mãe, aos berros, em seu quarto, na cobertura da Prudente de Morais, em Ipanema: “Mããããe, estou morrendo…”. Lucinha Araújo entrou em desespero. “Para com isso, Cazuza! A gente já não combinou de não falar de morte aqui em casa?”, deu um esporro no filho. “Mas, mãe, o que posso fazer se estou morrendo de fome”, explicou o roqueiro. “A que horas sai o rango nesta casa?”. E caiu na gargalhada. Um dia depois, Cazuza se foi. “Ainda hoje, sinto saudades dele. E não é de vez em quando, não. É todo dia! Mas não quero parar de sentir. Penso nele dia sim, outro também”, brinca.

Quando bate saudade, Lucinha ouve uma das músicas de Cazuza, à frente do Barão Vermelho ou em carreira solo. Ou lê um dos poemas que escreveu. “Não tenho uma música favorita. Gosto de todas! Mas, no momento, a que eu mais ouço é: ‘Viver é bom/ Nas curvas da estrada/ Solidão, que nada!’”, cantarola.

Lucinha Araújo em seu escritório, no Rio de Janeiro: 'Quero manter viva a memória do meu filho' Foto: Pedro Kirilos

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Para atenuar a falta que Cazuza lhe faz, Lucinha não para de bolar projetos. Primeiro, criou a Sociedade Viva Cazuza, no bairro de Laranjeiras, Zona Sul do Rio de Janeiro, para atender crianças e jovens diagnosticados com HIV. Depois, fundou o Centro Cultural Cazuza em Vassouras (RJ), cidade onde nasceu. Na última semana, lançou dois livros: Meu Lance É Poesia, organizado por Ramos Nunes Mello, com os 238 poemas escritos por Cazuza entre 1975 e 1989, e Protegi Teu Nome Por Amor, só com fotografias do filho.

E no ano que vem tem mais: Cazuza será tema do samba-enredo da Camisa Verde e Branco, de São Paulo; de um documentário do baixista e produtor musical Nilo Romero, parceiro em músicas como Brasil; de uma exposição imersiva no Rio e em São Paulo... “Quero manter viva a memória do meu filho”, afirma Lucinha. “Essa é a razão de ser da minha vida desde o dia em que ele se foi.”

Como mostrado em reportagem do Estadão, nos Estados Unidos, já existem startups de IA que têm a proposta de ajudar os usuários a lidar com a morte de amigos e familiares. Através de mensagens de texto, chamadas de vídeo ou interações holográficas, essas empresas permitem o “contato” com pessoas falecidas. “Não há inteligência artificial que seja capaz de superar a perda de um marido ou de um filho”, garante Lucinha. “O luto existe e, por mais doloroso que seja, é preciso enfrentá-lo.”

Lucinha Araújo diz que não utilizaria IA para lidar com a saudade que sente de Cazuza Foto: Pedro Kirilos

Lucinha Araújo não é a única a transformar saudade em literatura – em 1997, publicou a biografia Cazuza: Só as Mães São Felizes (Globo), em parceria com Regina Echeverria. Algo parecido aconteceu com a professora Bettina Bopp. Em 2005, seu irmão, Itamar, entrou em coma depois de sofrer um infarto e sete paradas cardíacas, aos 41 anos. Na esperança de que Ita (seu apelido de infância) pudesse voltar a qualquer momento, Bettina criou o blog Pra Quando Você Acordar, transformado em livro em 2022.

Nele, Bettina reúne 113 das incontáveis cartas que escreveu para o irmão, contando, entre outras novidades, quem tinha nascido, casado ou morrido. Cada capítulo começa com a frase “você não vai acreditar, mas…” e tem como título o verso de uma música, como “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, de Dom de Iludir, de Caetano Veloso, ou “na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais”, de Como Nossos Pais, de Belchior. Itamar morreu no dia 8 de setembro de 2020, aos 56 anos.

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“Sabe quando você sonha com quem morreu? A princípio, a sensação é boa. Parece que nada aconteceu. Mas, de repente, você acorda e descobre que tudo não passou de uma mentira. Aí, fica triste de novo”, compara.

Certa ocasião, Bettina foi a um centro espírita para receber uma carta supostamente psicografada do pai, que tinha acabado de morrer. Logo no comecinho, a carta dizia: “Minha princesinha…”. Bettina achou estranho. Muito estranho. “Meu pai nunca me chamou assim. E, acredito, nunca chamaria. Quando criança, me chamava de ‘perereca’ porque eu não parava quieta, vivia pulando. Na hora, pensei: ‘Hummm, esse não é o meu pai!’”.

“Às vezes, me pergunto: como o Ita estaria hoje? Em quem teria votado? O que estaria fazendo? Bem, prefiro continuar investigando a me confrontar com um ‘fantasma digital’ que pode dizer coisas que o Ita nunca diria.”

Christian Dunker utilizou a escrita como ferramenta para elaborar o luto pela morte da mãe Foto: ALEX SILVA

Ninguém está livre de sofrer pela perda de um amigo ou familiar. Nem mesmo um dos mais respeitados psicanalistas brasileiros. Foi para elaborar a morte da mãe, Elisabete, em 2016, que Christian Dunker lançou, sete anos depois, Lutos Finitos e Infinitos (Paidós, 2023). Primeiro, ela recebeu o diagnóstico de Alzheimer. Em seguida, começou a perder a memória. Por fim, sofreu um acidente doméstico.

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“A gente morre um pouco quando perde alguém que ama”, afirma o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). “No caso do Alzheimer, você perde a pessoa em vida. É longo e doloroso”.

No caso da IA, Dunker vê dois pontos positivos: fazer uma espécie de inventário virtual em memória de quem se foi e ajudar quem ficou a verbalizar o que está sentindo. “No meu caso, há um interesse puramente científico. Não me interessa substituir aquela que foi tão importante para mim por sua versão artificial. Não vejo como isso pode ser útil no processo de luto. Mas, como objeto de pesquisa, seria uma experiência interessante”, especula.

Em seu consultório, a psicóloga clínica Márcia Noleto já atendeu inúmeros casos de luto. E cada um dos enlutados inventava um jeito diferente de não se esquecer daquele que se foi. Uns criavam grupos de WhatsApp e, toda vez que sentiam saudade, redigiam bilhetes ou faziam desabafos. Outros aproveitavam datas importantes do calendário para postar vídeos e fotos nas redes sociais. Outros, ainda, faziam pingentes com as cinzas da cremação ou, então, guardavam-nas no interior de bichinhos de pelúcia.

No documentário Um Beijo do Gordo, a ex-mulher de Jô Soares, Flávia Pedras, revela que transformou parte das cinzas do apresentador e humorista em diamante. “Para nós, essas e outras decisões podem parecer um tanto bizarras. Mas, para quem está vivendo o luto, faz todo sentido”, explica Márcia. “São ideias criativas que os ajudam a manter a calma e a se despedir aos poucos daqueles que morreram”.

Fundadora do Grupo Mães SemNome e autora do recém-lançado Luto Materno (Via Verita, 2024), Márcia também já passou por uma situação dessas. Foi no dia 17 de junho de 2011, quando soube, por telefone, que sua filha tinha sofrido um acidente de helicóptero a caminho de Trancoso, na Bahia. Três dias depois, o corpo de Mariana foi encontrado nas águas da Praia de Itapororoca, em Porto Seguro. Ela tinha 20 anos.

“Temos a viúva e o viúvo, a órfã e o órfão, mas não temos ainda uma denominação no dicionário para a mãe que perde um filho. Não há nome para essa dor”, diz no livro Lutos, escrito em parceria com Mariana Magalhães.

“Quando minha filha morreu, uma das primeiras providências que tomei foi guardar fotos e vídeos dela na nuvem. Era reconfortante saber que, sempre que quisesse, poderia revê-la”, recorda. “Hoje, quando uma pessoa não quer ou não pode sair de casa para ir a uma sessão presencial de terapia, o que ela faz? Opta pela modalidade online, não é isso? Acredito que, no futuro, os enlutados vão preferir interagir com um avatar a ir ao cemitério”.

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