Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) identificaram pela primeira vez a presença de nitazeno, um opioide extremamente forte, em drogas sintéticas vendidas em São Paulo. A substância é descrita como até 20 vezes mais potente que o fentanil, um anestésico que, por sua vez, supera em 100 vezes a morfina, e em 50 vezes a heroína, por exemplo.
Os cientistas, que trabalharam junto à polícia técnica-científica de São Paulo, descobriram que, de julho de 2022 a abril de 2023, um total de 140 amostras de ervas e pílulas apreendidas pela polícia continham um opioide, isolado ou misturado a outra substância. Dentre eles, 95% era nitazeno. Segundo o estudo, os canabinoides sintéticos, também chamados de drogas K, são as substâncias mais associadas aos opioides.
A pesquisa aponta, ainda, que há dois anos tem sido observado um aumento consistente no número de apreensões de nitazeno, o que representa uma mudança no cenário brasileiro, cujos dados relacionados ao uso de opioides sempre foram baixos.
Um estudo de 2021 feito por pesquisadores brasileiros do Centro de Pesquisa Aplicada em Saúde Mental e Dependência da Universidade Simon Fraser, no Canadá, concluiu que apenas 111 de todas as mortes relacionadas a substâncias psicoativas no Brasil estavam associadas a opioides entre 1998 e 2018. Isto é, apenas 0,08% do total.
Por outro lado, as internações relacionadas ao uso de opioides no Sistema Único de Saúde (SUS) aumentaram nos últimos anos, conforme dados levantados pelo Ministério de Saúde a pedido do Estadão. No ano de 2023, foram registradas 1.934 hospitalizações. Nos anos anteriores foram: 1.676 em 2022, 1.242 em 2021, 958 em 2020, e 1.265 em 2019. Já segundo o relatório USP e da Unicamp, o aumento nas vendas de opioides prescritos e as apreensões de opioides sintéticos pela polícia de São Paulo levantam uma preocupação sobre o abuso dessas substâncias no País.
Os baixos índices de abuso de opioides no Brasil podem ser atribuídos a uma combinação de fatores, incluindo uma legislação rigorosa que limita o acesso a esses medicamentos tanto para a população quanto para profissionais de saúde. Os médicos prescrevem os remédios apenas em casos extremamente necessários. Como resultado, a maioria dos pacientes é tratada com medicamentos não opioides, como dipirona e paracetamol.
Por essa razão, os pesquisadores ficaram surpresos ao encontrar o nitazeno, o que acendeu um alerta importante. É o que relata José Luiz Costa, um dos autores da pesquisa e coordenador do Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Campinas (CIATox). “De um modo geral, o brasileiro e o latino-americano costumam buscar (drogas) estimulantes e não depressores do sistema nervoso central. Temos um perfil de abuso de drogas diferente da Europa e Estados Unidos. Isso nos faz pensar: de onde isso está vindo? Por que isso está sendo adicionado nessas drogas agora?”.
O estudo tenta explicar a mudança no padrão brasileiro, que pode ser atribuída a diferentes causas, como o perfil dos usuários, acesso facilitado, legislação, questões socioculturais, bem como o surgimento do fenômeno em todo o mundo. Mas Costa destaca que ainda é cedo para alcançar essa resposta. De todo modo, ele aponta que o dado é preocupante.
O que é Nitazeno?
Os nitazenos são um tipo de opioide, medicações potentes para tratar dor (analgésicos). Segundo médicos, eles são importantes e devem ser prescritos em casos de dor de escala elevada, como em pacientes com câncer — a principal indicação é nos cuidados paliativos —, e em alguns processos cirúrgicos.
O nitazeno, em específico, foi sintetizado pela primeira vez por uma empresa suíça na década de 1950, que buscava desenvolver opioides analgésicos mais seguros para uso farmacológico. No entanto, logo se descobriu que esses compostos tinham um alto potencial de abuso e toxicidade. Por isso, eles nunca chegaram a ser usados em humanos, como explica a médica psiquiatra Maria Amália Pedrosa, coordenadora do Ambulatório de Álcool e Drogas do Instituto Perdizes do Hospital das Clínicas da USP (HCFMUSP).
“É um opioide sintético que existe há muito tempo. Foi sintetizado para fins analgésicos, mas, por sua potência, não foram feitos estudos em humanos”, resume a médica.
Como ele age no organismo?
O psiquiatra Thiago Fidalgo, professor da Disciplina de Álcool, Drogas e Políticas Públicas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que o nitazeno age da mesma maneira que os outros opioides. Eles fazem parte de uma classe de medicamentos chamada de “depressores do sistema nervoso central”. Quando chegam ao organismo, diminuem a atividade cerebral, a frequência cardíaca e respiratória. Assim, promovem relaxamento, mas, a depender da quantidade e potência da substância, podem levar à morte.
A diferença do nitazeno em relação a outras substâncias está na sua intensidade. Segundo Maria, enquanto o fentanil pode ser utilizado em hospitais, especialmente antes de uma intubação e outras medidas, o mesmo não se aplica ao nitazeno. A molécula dessa substância consegue ativar os receptores do corpo de forma muito mais potente, tornando seu uso mais arriscado.
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Quais os riscos?
Como não há estudos em humanos realizados com a substância, não é possível mensurar claramente os riscos do uso do nitazeno, que podem ser ainda maiores do que o estimado atualmente. Segundo Maria, a substância se relaciona, especialmente, com receptores do organismo ligados à dor e ao sistema respiratório, podendo levar a problemas relacionados a esses dois aspectos.
“Na questão dos receptores relacionados à analgesia, ele tem um risco gigantesco de dependência, porque causa tolerância, necessitando de doses maiores para atingir o mesmo efeito”, diz. Nesse sentido, ele também proporciona sensação de recompensa e bem-estar, que estão por trás do vício, fazendo o usuário sentir que precisa de cada vez mais doses do medicamento.
Por outro lado, ele pode levar à disfunção e parada cardiorrespiratória, ao agir deprimindo esse sistema, reduzindo a frequência da respiração e oxigenação. Assim, por ser extremamente potente, é fácil que ingerindo pequenas quantidades já se tenha uma overdose.
Além disso, há efeitos no cérebro e no comportamento. De acordo com a médica do HCFMUSP, a dependência e a abstinência podem resultar em alterações comportamentais, assim como durante o uso da droga haja alterações no nível da consciência e do comportamento.
Além disso, ao reduzir o nível de oxigenação do cérebro, também pode levar a desordens funcionais desse órgão. As consequências são comportamento desorganizado, alterações na fala e psicomotricidade, sintomas psicóticos e desorientação.
Vale destacar que todos os casos contendo nitazenos foram encontrados em matrizes de ervas, nos quais a polícia esperava encontrar apenas canabinoides sintéticos. Esse cenário levanta uma preocupação adicional: a maioria dos usuários não está ciente de que está consumindo essas substâncias e está em uma situação de risco. O estudo destaca, ainda, que o efeito de fumar um opioide potente junto com canabinoides sintéticos é imprevisível.
“A razão exata para essa mistura ainda não é clara, mas o que se sabe é que esse opioide tem um potencial extremamente alto de causar dependência. A probabilidade de um usuário se viciar após uma única utilização é muito alta, o que pode contribuir para o mercado ilegal de drogas”, comenta Felipe Thyrso coordenador da Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo.
Diante disso, a análise conclui que ainda há muito a ser feito para entender as consequências dos resultados fornecidos e que, embora haja relativamente poucas apreensões de opioides em comparação com outras drogas no País, é preciso manter as autoridades policiais e de saúde vigilantes.
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