Ajustar a antena da TV de tubo para ver o Chacrinha, rebobinar a fita K7. Brincar na rua, encher o bolso de bala de coco embrulhada no papel de seda no fim da festinha. Fábio Souza, de 41 anos, e Denise Santos, de 41 anos, adoram resgatar as lembranças de quando eram crianças, nos anos 80 e 90, e as compartilham com milhares de pessoas no seu canal Do Seu Tempo, no YouTube e no Instagram. “Ajudamos as pessoas a remexerem o fundo do baú de suas mentes para resgatar lembranças dessa época e sentir saudade do que foi bom”, diz.
Durante a pandemia, eles viram a audiência do canal se multiplicar, de 20 mil para 73 mil seguidores. “Percebi que nesse período as pessoas ficaram mais introspectivas e passaram a refletir sobre a vida. Olharam para o passado para rever suas trajetórias e ficaram mais nostálgicas”, diz Denise. O casal de namorados aproveitou essa onda de saudade e o tempo livre durante o isolamento social, em 2020, para investir no canal. Passaram a fazer lives sobre o tema e até lançaram um podcast em 2021, o Nostalgicast. Ela garante: apesar de se referir sempre ao passado, as recordações só lhe fazem bem. “Quando penso naquele tempo, vejo que a minha vida foi bacana.”
Estudos científicos comprovam a sensação relatada por Denise. Resgatar as lembranças boas do passado ajuda a elevar a felicidade, segundo pesquisas da Universidade de Southampton, na Inglaterra, e da Universidade de Zhejiang, na China. Eles realizaram seis estudos no início da pandemia que comprovaram esse efeito positivo.
No estudo, 3,7 mil participantes dos Estados Unidos, Reino Unido e China apontaram seus níveis de solidão, nostalgia e felicidade em uma escala de 1 a 7, no início da pandemia, quando havia isolamento social. Baseados nas respostas, os pesquisadores observaram que as pessoas que recorriam à nostalgia quando solitários conseguiam aumentar o grau de felicidade. Para complementar, foram realizados mais três experimentos.
Um deles dividia os participantes em dois grupos. No primeiro, as pessoas eram convidadas a falar sobre o sentimento de nostalgia e pensar em um evento do passado. Escreviam quatro palavras sobre ele e depois, durante três minutos, redigiam sobre as sensações do resgate nostálgico. O outro grupo, de controle, fez as mesmas tarefas, mas sobre um evento comum, não associado ao passado. O grupo que teve contato com as lembranças do passado apresentou um aumento de felicidade pequeno, mas significativo estatisticamente, em relação ao grupo de controle. Os pesquisadores observaram que a sensação positiva era imediata, mas também podia durar até dois dias após o experimento.
De acordo com o professor Clay Routledge, de Psicologia da Universidade de North Dakota, nos Estados Unidos, nostalgia pode ajudar a aumentar a criatividade e a unir as pessoas. Segundo Routledge, ela é um recurso existencial autorregulador usado naturalmente e frequentemente para navegar no estresse e na incerteza e encontrar a motivação para seguir em frente.
As definições das palavras nostalgia e saudade nos dicionários se referem a lembranças do passado, atreladas tanto a sentimentos positivos como negativos. “É preciso desmistificar a ideia de que a saudade é sempre ruim. Sentir saudade é natural, indica que uma pessoa teve relações boas. Ajuda a honrar esse tempo vivido, sentir-se agradecido”, comenta Valéria Tinoco, psicóloga do 4 Estações Instituto de Psicologia. Ela é especialista em formação e rompimento de vínculos afetivos.
A proprietária do pensionato para idosas Lar Lareira, Alessandra Crispin, de 84 anos, observa que as senhoras residentes gostam de conversar sobre as experiências boas vividas, especialmente com os seus filhos, mas não ficam presas ao passado, pois querem viver o presente com alegria. É o caso de Renata Bertini Angeli, de 84 anos, que vive temporariamente lá, por ter machucado o braço. Ela diz que sente muita saudade do seu marido, que faleceu há três anos, e gosta de se lembrar das viagens que fizeram juntos. “Ele foi um grande companheiro, que viveu comigo por 31 anos, mas não fico me prendendo ao passado. Na minha idade, quero viver o presente e planejar o futuro”, diz. Quando o braço estiver melhor, Renata já sabe o que vai fazer: pintar cerâmica e fazer viagens de carro.
Quem faz planos e tem um sentido na vida não se apega ao passado de forma melancólica, afirma a psicóloga Valmari Cristina Aranha Toscano, diretora da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). “Olhar demais para o que já passou pode ser um indício de um presente árido e de falta de investimento no futuro. É um sinal de alerta, pode ser indício de um quadro de depressão.”
Valmari conta o caso de uma mulher de 93 anos que estava com câncer e, para sair da zona de sofrimento, retornou a um passado que nunca existiu: começou a sentir saudade do marido, pensando nele como homem perfeito, quando na verdade havia sido agressivo e mulherengo. “Há quem volte a um passado que nunca existiu, olhando tudo de forma fantasiosa”, diz. Para outra mulher idosa, que sofria por não ter se casado com o primeiro namorado, há 50 anos, ela questionou: “Será que ele continuaria maravilhoso como na sua fantasia que você nunca viveu, se vocês tivessem se casado e criado filhos, com muitos boletos a pagar?”
Nostalgia que machuca
A palavra nostalgia formou-se com a junção de duas palavras gregas: nostos, que significa retorno para casa, e algos, que é dor. Mesmo com as facilidades das tecnologias de comunicação, a saudade de estar longe da terra natal pode ser intensa. A advogada Francis Irina Salazar, de 42 anos, sente falta das tradições da cultura venezuelana, pois está refugiada no Brasil desde 2018. Nas datas comemorativas, dói a saudade dos parentes e amigos com quem passava as festividades seguindo os costumes da sua cidade, Pariaguan.
A saudade me abala. Às vezes, me paralisa, me faz sentir que nada tem sentido. Ao mesmo tempo, são as lembranças que me fazem suportar essa dor
Francis Irina Salazar, refugiada no Brasil
“A saudade me abala. Às vezes, me paralisa, me faz sentir que nada tem sentido. Ao mesmo tempo, são as lembranças que me fazem suportar essa dor”, conta. Por quase três anos, ela ficou longe dos seus filhos, para poder trabalhar, já que não conseguia emprego na sua cidade. “Sentia muita culpa por tê-los deixado lá e me sentia sozinha. Tinha dias em que saía sem rumo e chorava muito.”
Com apoio da ONG Estou Refugiado, Francis conseguiu trabalho em São Paulo, em uma empresa de segurança, como assistente administrativa. Juntou dinheiro e, com ajuda de doações, viajou até a Venezuela em dezembro para buscar os filhos, Jorge, de 13 anos, e Emily, de 6 anos. “Estar com eles me deixa mais tranquila, mas o resto da minha família está lá”, lamenta.
Por conta da pandemia, o intérprete Lidong Sun, de 46 anos, está há dois anos sem retornar a Pequim, sua terra natal, onde vivem os seus pais. Ele explica que, atualmente, as opções de voos para a China são poucas, por isso as passagens são caras. Além disso, testes da covid-19 são exigidos ao longo da viagem até a China, feita com conexões a partir do Brasil. Isso reduz ainda mais as opções de itinerários. “Eu converso por videoconferência semanalmente com os meus pais, mas minha consciência não está tranquila. Gostaria de visitá-los pelo menos uma vez ao ano”, diz.
Sentimentos que vêm à tona
Sun sabe muito bem o que é sentir saudade. Durante dois anos, de 2005 a 2007, ele manteve um relacionamento a distância com o seu atual namorado, que é brasileiro. “Naquela época, a comunicação era por e-mail. Por conta do fuso horário, eu precisava fazer uma ligação telefônica, que era cara, antes de sair do trabalho, e tinha que me contentar em ouvir a voz dele”, conta.
Embora esteja bem adaptado ao Brasil, Sun sente saudade da comida chinesa. Tenta preparar os pratos em casa, mas não se contenta com o resultado. “O sabor não é igual. A pandemia me atrapalha até para ir ao restaurante chinês em São Paulo, pois não gosto de ir em lugar lotado”, diz.
O brasileiro Guilherme Sadao Mendes Ymanaka, de 28 anos, por sua vez, vai atrás de uma coxinha ou de uma pizza de frango com catupiry para matar a saudade da comida brasileira em Vancouver, no Canadá, onde trabalha como coordenador de produção de animações. Também por conta das incertezas causadas pela pandemia, ele está há dois anos sem voltar ao Brasil. Quando chegou ao país para estudar animação 3D, em setembro de 2019, ficou maravilhado com a sua nova realidade e não sentiu tantas saudades nem do Brasil, nem da família ou dos amigos.
Com o isolamento social imposto pela pandemia, porém, tudo o que estava curtindo se perdeu. “Parei de ver as pessoas que havia conhecido, de visitar lugares legais e as aulas passaram a ser online. Fiquei preso em casa, sozinho”, conta. No fim de 2020, com pouca luz solar e baixíssimas temperaturas, ele se sentiu bastante melancólico e solitário. “Para lidar com a saudade, fugia dela. Buscava distrações, como jogar videogames”, diz.
No Canadá, Ymanaka sente que é mais difícil fazer laços sociais. Por isso, fica com saudade do jeito caloroso dos brasileiros. Apesar disso, ele está determinado a se adaptar e a se fixar definitivamente em Vancouver, onde vê futuro para a sua carreira. “Por mais que eu sinta saudades dos tempos legais que passaram, dos grupos sociais dos quais participava, sei que não há como voltar para eles da mesma forma. Aceitar isso e seguir em frente é o que eu escolhi.”
Por mais que sinta falta dos grupos sociais dos quais participava, sei que não há como voltar para eles da mesma. Aceitar isso e seguir em frente é o que escolhi
Guilherme Ymanaka, brasileiro morador do Canadá
Luto e a ferida aberta
A saudade pode causar uma dor aguda, como de uma ferida aberta. Quando esse sentimento for elaborado, a ferida estará cicatrizada e a saudade será uma boa lembrança, diz a psicóloga Valéria Tinoco, do Instituto 4 Estações, focado em atendimento de pessoas que enfrentam perdas e luto.
A ferida de Cícera Sonia Teixeira, de 50 anos, está aberta. Sua irmã Betânia, mais conhecida como Bel, morreu em março de covid-19. “A gente não era só irmã, mas alma gêmea. Não há nada que diminua a saudade que sinto todos os dias dela. Quando vejo a casa dela, dói tanto que penso em vendê-la ou até derrubá-la”, desabafa Cícera.
Quando a dor da saudade é grande, é preciso respeitar o sentimento da pessoa, orienta a psicóloga Valéria Tinoco. “Falar sobre a pessoa perdida, ver fotos, pode ser bom. Mas para algumas pessoas é doloroso. É preciso permitir que a pessoa encontre a melhor forma de lidar com a saudade”, diz. Segundo a psicóloga, não se deve retirar à força os elementos relacionados à pessoa que partiu. “Se uma terceira pessoa vem e retira tudo o que conecta uma pessoa à outra pessoa que foi perdida, tira de repente a própria bagagem de quem fica. Dessa forma, ela perde um pedaço, não consegue se conectar mais com a sua própria história e não se reconhece.”
Um pedaço do cãozinho Kiko, que morreu há quase 3 anos, virou lembrança na forma de um pingente que traz os pelos dele. Com o adereço no pescoço, Erika Rodrigues Santos de Souza, administradora de 41 anos, sente estar mais próxima do seu amado bicho de estimação. “Ele era apaixonado por mim. A gente tinha um vínculo muito forte”, conta ela, emocionada. Erika e seu marido resgataram Kiko, que vivia na rua. Vítima de maus tratos, Kiko tinha muitos problemas de saúde. “Quando ele faleceu, eu passei seis meses muito mal. Eu via ele em todo canto da casa, podia ouvir o choro dele. Nem todo mundo entendia o que eu estava sentindo”, diz Erika. Com lágrimas nos olhos, entregou o chumaço de pelo que havia guardado para confeccionar a peça, mas valeu a pena. “Com esse pingente, sinto que carrego um pedacinho dele comigo”, diz.
Nem todo mundo respeita e valida o luto das pessoas que sentem falta de animais, objetos, lugares, épocas e trabalhos, mas o sentimento de saudade é igual, observa a psicóloga Valéria. “A saudade acontece quando há entrega de afeto, um relacionamento significativo. Amor é amor, não sentimos apenas por pessoas”, diz.
A psicóloga Beatriz Breves fala da importância de olhar para todos os nossos sentimentos, sem reprimi-los, como forma de conversar consigo mesmo. “Se há sofrimento, a gente precisa identificar e acolher. Ninguém ignora um machucado na perna, então por que fazer isso com os nossos sentimentos”, diz. Para ela, é preciso “treinar” olhar para os sentimentos sempre, percebendo a complexidade entre eles, para tirar ensinamentos. E a saudade sempre anda acompanhada de outros sentimentos que temos que identificar. “Eles são um chamado para uma reflexão, que é pessoal. Devemos levar em consideração que cada ser humano é único.”
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