‘Nunca foi tão difícil ser adolescente’, diz educadora e psicanalista

Autora do livro As Dores da Adolescência, Carolina Delboni acredita que, embora os desafios dessa fase sejam naturais, o mundo contemporâneo adicionou um peso extra — e o aumento dos transtornos mentais entre jovens é apenas um dos reflexos disso

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Foto do author Victória  Ribeiro
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Foto: mildes
Entrevista comCarolina DelboniEducadora, psicanalista e autora do livro "As Dores da Adolescência: Como entender, acolher e cuidar"

Rebeldes, esquisitos, chatos, aborrecentes… A lista de adjetivos usados para definir adolescentes é extensa – e, muitas vezes, nada gentil. Que essa fase da vida é complexa, não restam dúvidas. No entanto, o que frequentemente é visto como rebeldia ou provocação pode ter explicações pouco discutidas, transformando esse período em uma experiência que pode ser marcada por grandes incompreensões.

“Para ter ideia, a adolescência, como fase de desenvolvimento humano, foi reconhecida pela medicina há apenas 200 anos. Ou seja, estamos falando de algo muito recente, considerando a evolução humana e o tempo de existência da espécie. E o que fomos fazendo durante esse período? Criamos uma série de estigmas e preconceitos”, afirma a educadora e psicanalista Carolina Delboni.

Autora do livro “As Dores da Adolescência: Como entender, acolher e cuidar” (Summus Editorial), lançado nesta quinta-feira, 20, Carolina acredita que, embora algumas complexidades sejam inerentes à adolescência, independentemente do contexto social, o mundo contemporâneo adicionou um peso extra à balança. “Nunca foi tão difícil ser adolescente”, opina a educadora, que também é colunista do Estadão. Se para os adultos o bombardeio de informações – especialmente nas redes sociais – influencia percepções, desejos e opiniões, imagine só para quem ainda está em plena construção da própria identidade.

“É uma verdadeira montanha-russa, especialmente porque o cérebro está em desenvolvimento, o que explica muitos dos comportamentos típicos da adolescência”, complementa. Além disso, há de se levar em conta que existe um grande contraste entre as exigências emocionais dessa fase – como as mudanças corporais e a evolução da relação com os pais, que estão se ajustando à saída da infância – e a falta de bagagem para lidar com esse misto de emoções.

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“Eu costumo dizer que, quando a pessoa chega à adolescência, ela encontra uma caixa de sapato vazia. Cada vez que ela vive uma experiência, vai colocando algo dentro dessa caixa. Mas esse é um processo lento. Quando surgem situações novas, como uma decepção com uma amizade ou um relacionamento, ela não tem recursos emocionais para lidar com isso, porque nunca passou por algo parecido antes”, explica a educadora.

A grande questão é que, ao contrário de quem viveu a adolescência nos anos 1980 e 1990, quando as referências vinham, na maioria das vezes, de revistas (e olhe lá), e a rotina se resumia a ir da escola para casa e se encontrar com os amigos em clubes, praças ou shoppings, hoje o ambiente digital permite circular em milhares de mundos diferentes — o que não apenas dificulta o processo, mas o amplifica de formas que eram inimagináveis há algumas décadas. Conversamos com Carolina sobre as complexidades dessa fase. Confira:

Para a educadora Carolina Delboni, o mundo contemporâneo adicionou camadas extras de desafios à adolescência, uma fase naturalmente complexa Foto: Valerii Honcharuk/Adobe Stock

Muita gente tem a impressão de que os modelos de criação e até o sistema escolar eram mais rígidos antigamente. Levando isso em consideração, podemos mesmo dizer que o cenário para os adolescentes de hoje é mais desafiador?

Sim, eu acredito que sim. A gente vive num mundo bem mais complexo do que o dos anos 1970 ou 1980. Para entender a cabeça do adolescente hoje, é necessário imaginar a tela de um computador com infinitas abas abertas. É uma enxurrada constante de informações, sem tempo para respirar.

Agora, pensa: o adolescente está em um momento de formação. O corpo, o cérebro e as emoções ainda estão em processo de construção. Já é uma fase difícil por si só, porque tudo nesse processo faz com que ele reaja às experiências com mais intensidade. Só que ele ainda não tem todas as ferramentas para lidar com essa avalanche de informações e estímulos. E a situação é tão complexa que, se a gente olhar para os adultos, vê que muitos também estão perdidos nesse cenário. O Brasil, por exemplo, é o segundo país com mais casos de burnout. E se os adultos já estão sofrendo com esse ritmo, imagine os adolescentes, que estão vivendo tudo isso pela primeira vez e de forma mais intensa.

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Além disso, o ambiente digital mudou completamente as interações sociais dos adolescentes. Antes, a vida social girava em torno de escola, casa, clubes, praças... Hoje, os jovens transitam por múltiplos espaços, tanto físicos quanto virtuais. Gerenciar isso não é nada fácil. E, para piorar, existem questões globais que afetam essa geração de forma profunda: polarização política, guerras, crises econômicas em lugares antes estáveis e, claro, a crise climática. Inclusive, não é incomum ouvir adolescentes dizendo que não querem ter filhos porque não sabem se o mundo vai existir no futuro. A ideia de “utopia”, que sempre esteve presente em outras gerações, perdeu o significado para eles.

O ambiente digital mudou completamente as interações sociais dos adolescentes

Carolina Delboni, educadora e psicanalista

Quais os principais impactos disso?

Existem algumas dores da adolescência que todo mundo passa, independentemente da época. A transição da infância para essa fase não é nada fácil, né? No meio disso, a relação com os pais muda - eles deixam de ser essa referência intocável, e isso é complicado para ambos. Tem também a mudança do corpo, que, para muita gente, é um baita desafio. Mas, hoje em dia, além dessas dores clássicas, temos também as chamadas “dores contemporâneas”, que são muito influenciadas pelo nosso mundo digital.

Como resultado, temos observado um aumento de jovens com ansiedade, depressão e outros problemas de saúde mental — e, em alguns casos, esses números superam os de adultos. E não para por aí. Também estamos falando de um aumento nos casos de automutilação, suicídio e, claro, bullying. E, quando falo de bullying, não me refiro àquela “zoeira” de antigamente. Isso é algo que sempre procuro esclarecer para os pais. A rejeição, claro, sempre foi parte da adolescência, pois, nessa fase, o jovem está em busca de seu lugar no mundo, querendo se encaixar e encontrar seu grupo. E, nesse processo, a rejeição e diminuir o outro acabam se tornando uma espécie de “moeda de troca”. Por exemplo: o que eu preciso fazer para você pertencer a esse grupo? Ou o que você vai me dar em troca para fazer parte dele?

O grande problema é que, hoje, a pressão social é muito mais cruel, e lidar com isso se tornou muito mais difícil, porque não se restringe mais ao espaço físico da escola. Antigamente, o adolescente até tinha um certo alívio ao chegar em casa — o que, convenhamos, já era complicado — mas, com o avanço da tecnologia, esse “respiro” praticamente desapareceu. O bullying agora o acompanha no WhatsApp, nas redes sociais, nos jogos online.

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Carolina também é autora dos livros "Eudice" e "Desafios da adolescência na contemporaneidade: uma conversa com pais e educadores" Foto: Arquivo pessoal

Sabendo que certos desafios e sofrimentos fazem parte dessa fase, como diferenciar o que é natural do que pode indicar um problema de saúde mental?

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A criança aprende brincando, mas o adolescente se forma a partir das suas relações sociais. Ele vai descobrir quem é e construir sua identidade através do contato com os outros. Por quê? Porque, dentro de casa, ele já tem o amor incondicional da família — pais, avós, tios, enfim. No entanto, ele precisa perceber se as pessoas fora de casa, no mundo, também o aceitam e se o que ele pensa e sente é validado. Ele quer saber se a música que gosta faz sentido para os outros, se o seu jeito de agir é “legal” e se o estilo de cabelo é considerado “descolado” ou não.

Para medir a saúde psicoemocional do adolescente, o principal indicador está nesse processo de socialização. Isso não significa que ele não possa passar algumas horas na internet, mas, se começar a se afastar das relações sociais, é como se estivesse “parando de oxigenar”, assim como uma criança que perde o brincar. Esse distanciamento pode se manifestar em comportamentos como inventar desculpas para não ir à escola, querer ficar o tempo todo em casa ou apresentar queda no desempenho escolar. Quando isso acontece, é fundamental ficar atento, pois pode ser um sinal de que algo não está bem.

O adolescente se forma a partir das suas relações sociais

Carolina Delboni, educadora e psicanalista

Você afirma que os adolescentes são ‘incompreendidos’. Quais são os reflexos disso em meio a essa complexidade atual?

Sim. A adolescência começou a ser estudada mais a fundo só recentemente, e isso impacta diretamente a forma como pais, familiares e até mesmo as escolas lidam com essa fase. Hoje, temos mais informações sobre o assunto, mas, se compararmos com o que já se sabe sobre a primeira infância, a diferença é enorme.

Quando você vai numa livraria procurar algo sobre a primeira infância, o vendedor vai te mostrar uma prateleira cheia de livros. Agora, tenta procurar algo sobre a adolescência. No máximo, você vai achar uns 10, 15 títulos, e olhe lá. O conteúdo é bem limitado e, além disso, quem tem acesso? Só uma parte pequena da população.

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E uma das consequências disso é que, pela falta de informação, surgem estigmas e preconceitos. Quando você não entende algo, o mais fácil é julgar. E assim, os adolescentes crescem ouvindo que são aborrecentes, chatos, mal-humorados, monossilábicos. Agora, imagina viver em casa ouvindo isso o tempo todo ou em um evento de família, onde o adolescente sempre é o “chato da vez”, com cara fechada. Como você espera que ele reaja? Depois, a gente reclama porque ele não sorri ou não fala. Mas como ele vai sorrir para alguém que está o tempo inteiro reclamando?

É preciso ter um olhar mais acolhedor para entender o que está por trás desse comportamento — e, na maioria das vezes, as explicações são biológicas. O sono é um exemplo clássico. Estudos mostram que o horário ideal para o adolescente começar a escola seria por volta das 9h da manhã, porque é nesse horário que os picos hormonais estão mais baixos e ele consegue estar mais atento. Já os idosos, por outro lado, tendem a dormir mais cedo e acordar mais cedo. Ou seja, a biologia do corpo humano vai mudando ao longo da vida. E, embora essas oscilações sejam naturais, muitas vezes acabam sendo interpretadas como afrontas pelos pais, o que torna a convivência mais difícil para ambos os lados.

Pela falta de informação, surgem estigmas e preconceitos (sobre os adolescentes)

Carolina Delboni, educadora e psicanalista

Mas ao mesmo tempo, essa era digitalizada parece não ser fácil para os pais também…

Sem dúvidas. Basta olhar os índices de transtornos mentais entre adultos no Brasil. Em alguns casos, ainda há camadas extras de complexidade, como a desigualdade social e econômica. E, realmente, fica difícil. Como vou cuidar de um adolescente se eu mesmo não estou bem? Como vou educar alguém se estou emocionalmente esgotado? Se o Brasil tem o segundo maior número de adultos com burnout no mundo, como esse pai ou essa mãe vai chegar em casa e ainda ter forças para cuidar de um filho, educá-lo, estando completamente exausto? É, de fato, muito difícil.

E quais são os caminhos para dar esse apoio quando as armadilhas do mundo contemporâneo afetam até mesmo aqueles que são os responsáveis pelo cuidado?

Uma coisa que sempre falo para os pais e famílias é: não deixem de lado as redes de apoio que vocês constroem. Sabe aqueles grupos de WhatsApp dos pais da escola? Então, quando as crianças estão no ensino infantil ou nos primeiros anos do fundamental, esses grupos surgem, e a galera troca ideias, tira dúvidas, organiza encontros. Mas, quando os filhos crescem, muitos pais acabam abandonando. Porém, esses grupos são um ótimo exemplo do lado positivo da era digital. É ali que, muitas vezes, eles vão perceber que as dificuldades que estão enfrentando dentro de casa com seus filhos, outras famílias também estão passando. E o mais legal é que, às vezes, a solução de um pode ajudar o outro.

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Outro ponto importante é reviver a própria adolescência. Claro, sem cair na armadilha de comparações: “Na minha época, eu fazia isso e aquilo, tudo era diferente”. Não dá para comparar, mas dá para refletir e usar como referência. “Eu me lembro da minha adolescência e sei que, muitas vezes, mentia para os meus pais. E por que eu fazia isso?”. Eu, como pai ou mãe, preciso me convencer de que algumas coisas, mesmo que me desagradem, são etapas do processo. Por exemplo, se ele vai a um lugar, posso dizer: “Você vai a tal lugar, mas, por favor, preste atenção nisso. Se algo te incomodar, me ligue. Não tenha medo de me chamar.”

A adolescência é como um elástico. Às vezes, os pais precisam dar um pouco de folga para o adolescente viver suas experiências. Em outros momentos, o elástico precisa ser puxado para o outro lado, e aí é hora de colocar limites. Por isso, dentro de cada família, é importante escolher as batalhas. O que é inegociável? O que podemos conversar e chegar a um consenso? O que pode ser flexibilizado?