Em junho de 1889, Vincent van Gogh (1853-1890) deu as últimas pinceladas em uma de suas obras-primas: A Noite Estrelada, em exposição permanente, desde 1941, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o MoMA. O pintor holandês estava internado em um sanatório em Saint-Rémy-de-Provence, na França, quando pintou uma de suas telas mais famosas da janela de seu quarto. Se fosse hoje, 135 anos depois, muito provavelmente Van Gogh não teria conseguido. Algo parecido acontece com Carlos Eduardo Fairbairn. Ele não é pintor impressionista, mas fotógrafo astronômico. Sua especialidade é capturar estrelas, galáxias e nebulosas.
Em 2017, Kiko Fairbairn ganhou o Astronomy Photographer of the Year, o mais importante prêmio de fotografia astronômica do planeta, na categoria jovem fotógrafo. O clique campeão flagrou a Grande Nuvem de Magalhães, galáxia-satélite da Via Láctea, a 160 mil anos-luz da Terra. Para conseguir tal proeza, Kiko não precisou ir tão longe: viajou para Luziânia, a 150 km de Goiânia (GO). “Atualmente, não seria possível”, admite. “A matéria-prima da fotografia noturna é o céu escuro. Para captar as belezas do cosmo, preciso de locais com o mínimo de poluição luminosa. Infelizmente, noites estreladas estão cada vez mais difíceis de serem encontradas”.
O efeito mais aparente da poluição luminosa é o sky glow, expressão de origem inglesa que pode ser traduzida como “brilho do céu”. É quando não se consegue avistar as estrelas por causa do excesso de luz artificial. Em vez de escuro, o firmamento ganha um indesejado tom amarelo ou laranja, no caso de lâmpadas de vapor de sódio, e branco ou azul, de vapor de mercúrio. E mais: o efeito sky glow pode ser visto a 300 quilômetros da Terra. Os dados são da Dark Sky International, organização de combate à poluição luminosa no Arizona (EUA). Não por acaso, os primeiros alertas sobre os perigos da poluição luminosa partiram deles, os astrônomos.
“Com a redução do número de estrelas, os observatórios das grandes cidades perderam sua capacidade de pesquisar e descobrir, através do uso de telescópios, astros mais tênues, como nebulosas e galáxias. Hoje, os observatórios de ponta estão em áreas remotas, longe do impacto da iluminação artificial excessiva”, afirma o astrônomo Daniel Mello, do Observatório do Valongo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Os prejuízos causados pela poluição luminosa não se limitam a ofuscar o brilho das estrelas ou a dificultar a pesquisa científica. Vão além. “Cidades excessivamente iluminadas predispõem os seus habitantes a problemas de saúde como estresse, insônia e ansiedade”, afirma Mello. Obesidade, diabetes e câncer também entram na lista de possíveis malefícios. “Não queremos deixar as cidades às escuras. Queremos iluminá-las de forma racional”, observa.
Sono é o mais prejudicado
Antes de se mudar para São José dos Campos, onde fica a sede do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a astrofísica Tânia Dominici morou no Rio de Janeiro. À noite, tinha dificuldade para dormir porque seu quarto ficava totalmente iluminado pelos holofotes instalados no estacionamento de um hospital vizinho ao seu prédio.
O tipo de poluição luminosa que atrapalhava suas noites de sono – apesar de ela morar no 10º andar – é o light trespass (“luz intrusa”). “É quando a luz planejada para iluminar um ambiente invade outro”, explica.
Dominici chegou a conversar com a direção do hospital. Propôs mudanças no sistema de iluminação da unidade, mas reconhece que a solução do problema não é imediata. “Hoje, não moro mais no mesmo local e não posso atestar se houve melhoria. Porém, os problemas de luz intrusa permanecem em minha vida: ainda terei que conviver por um bom tempo com a visão de um guindaste iluminado com LED azul, a luz mais poluente que existe”, queixa-se. “O problema não é a luz artificial. Mas, a falta de critério no uso dela”, pondera a astrofísica.
Outros males
Se o sky glow é o efeito mais aparente da poluição luminosa, seu dano mais visível é a insônia, entre outros distúrbios do sono. Mas, com o tempo, a situação pode se agravar, resultando em outros problemas de saúde, como diabetes, obesidade e hipertensão.
É o que aponta um estudo da Escola de Medicina da Universidade Northwestern, no Illinois (EUA), publicado na revista científica SLEEP. A neurologista Minjee Kim dividiu um grupo de 552 voluntários, entre 63 e 84 anos, em dois subgrupos. Enquanto o primeiro dormiu totalmente no breu, o segundo foi submetido a algum grau de claridade. Conclusão: os índices de diabetes, obesidade e hipertensão entre os indivíduos do segundo grupo foi maior: 17,8%, 40,7% e 73% contra 9,8%, 26,7% e 59,2%, respectivamente. Para minimizar o impacto, a neurologista Phyllis Zee, outra coordenadora do estudo, sugere medidas paliativas como o uso de máscaras para dormir, a instalação de cortinas blackout ou a mudança da posição da cama.
Outro estudo, da Universidade de Connecticut (EUA), comparou o índice de iluminação pública em 147 comunidades de Israel com o total de casos de câncer de mama. Entre outros achados, os pesquisadores descobriram que mulheres que viviam em áreas com luz artificial suficiente para ler um livro fora de casa apresentaram um risco 73% maior de desenvolver tumor do que as que moravam em locais menos afetados pela poluição luminosa.
A exposição excessiva à luz artificial, explica o fisiologista José Cipolla Neto, pesquisador do Laboratório de Neurobiologia da Universidade de São Paulo (USP), desregula nosso ritmo circadiano – de cerca de um dia, como o próprio nome já diz. Dependendo do horário, a luminosidade pode atrasar ou adiantar os ponteiros do nosso “relógio biológico”. De um jeito ou de outro, isso provoca um strike que derruba todos os pinos. Melhor dizendo: atinge vários sistemas, como cardiovascular, imunológico e metabólico, entre outros.
Celular e quarto não combinam
O perigo, muitas vezes, não está em holofotes potentes ou em anúncios luminosos. Nem invade a janela do quarto na calada da noite. Está em aparelhos eletrônicos aparentemente inofensivos, como smartphones, tablets e TVs. É o que garante Mário André Leocádio Miguel, do Conselho de Cronobiologia da Associação Brasileira de Sono (ABS). Ele explica que, à noite, a glândula pineal, localizada em nosso cérebro, produz um hormônio chamado melatonina. É ele que, entre outras funções, nos induz ao sono. Acontece que a luz azul emitida por todo e qualquer aparelho de tela inibe a produção da melatonina. É por essas e outras que os médicos do sono recomendam: duas ou três horas antes de dormir, nada de usar dispositivos eletrônicos ou de assistir à TV.
Tem mais: levar celular para dentro do quarto? Nem pensar! “Mesmo dormindo, não estamos alheios ao que acontece ao nosso redor. O simples fato de saber que, a qualquer momento, podemos receber uma mensagem já deixa nosso sono mais superficial”, alerta. Uma dica: na hora de comprar lâmpadas, o médico sugere modelos de cor fria e alta intensidade para a sala ou o escritório, e cor quente e baixa intensidade para o quarto. “Quanto mais intensa a luz, maior sua capacidade de estimular nosso cérebro”, explica.
Dois estudos, um inglês e outro italiano, dão a exata dimensão do problema. O primeiro deles, da Universidade de Exeter, revela que, entre 1992 e 2017, o excesso de luz artificial aumentou 49%. Coordenado pelo espanhol Alejandro Sánchez de Miguel, o levantamento cruzou dados da iluminação pública de diversos países com imagens de satélites de diferentes fontes. O segundo estudo, do Instituto de Tecnologia e Ciência da Poluição Luminosa, indica que 60% dos brasileiros não veem a Via Láctea. Achou muito? Nos EUA, segundo o Atlas Global da Poluição Luminosa, sob a responsabilidade do italiano Fabio Falchi, esse percentual chega a 80%.
Impactos na natureza
Nós, humanos, não somos as únicas vítimas da poluição luminosa. Bichos e plantas também não estão imunes aos seus efeitos nocivos.
O neurocientista John Fontenele Araújo, doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Fisiologia e Comportamento da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), explica que, desde os tempos das cavernas, quando nossos antepassados caçavam seu próprio almoço, seres humanos são animais diurnos. Ou seja, trabalham de dia e descansam à noite. Mas há algumas espécies, como sapos, vagalumes e morcegos, entre outras tantas, que têm hábitos noturnos. E, no caso deles, o excesso de luz artificial não compromete apenas o sono. Afeta, também, a reprodução, a alimentação e a migração.
O veterinário Ciro Cruvinel, gerente técnico do BioParque do Rio de Janeiro, dá dois exemplos: o de pássaros e o de tartarugas marinhas. No primeiro caso, algumas espécies que caçam e migram à noite são atraídas pela iluminação excessiva e acabam colidindo contra prédios envidraçados. No segundo, tartarugas marinhas se reproduzem nos oceanos, mas fazem seus ninhos na praia. E, ao saírem dos ovos, elas se orientam pela claridade da lua. “O excesso de luz artificial, porém, atrai os filhotes na direção oposta. E, em vez de chegar ao mar, eles morrem atropelados nas rodovias”, adverte o veterinário.
Algumas espécies de inseto, acrescenta Cruvinel, também são prejudicadas pela luminosidade intensa. Atraídas por lâmpadas, em locais públicos ou dentro de casa, morrem de exaustão. Se tais insetos forem polinizadores, como abelhas, besouros e mariposas, sobra também para as plantas. “É durante a noite que elas renovam moléculas importantes para serem usadas no dia seguinte. Um bom exemplo disso é a síntese da clorofila”, ilustra o biólogo André Mantovani, do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. “Processos de crescimento e reprodução também podem ser impactados em menor ou maior grau pela luz artificial”.
A exemplo dos animais, as plantas também são regidas por um ritmo circadiano. Daí porque os cientistas orientam que, em locais públicos, como praças, parques e jardins, os postes de luz sejam direcionados para o chão e não para as árvores ou para o céu.
Possíveis saídas
Daniel Mello e Tânia Dominici fazem parte do conselho consultivo da Céus Estrelados do Brasil. O objetivo da rede não é abrir mão dos benefícios da iluminação artificial, como segurança e bem-estar, mas iluminar apenas o que for preciso, durante o tempo que for necessário e com a iluminação adequada para cada caso.
Algumas das soluções apontadas passam pela criação de leis. Como a PL 1975/2021, que propõe a certificação de áreas de céus escuros para incentivar o astroturismo, e a PL 1400/2021, que propõe a tipificação da poluição luminosa como crime ambiental, ambas em tramitação no Congresso.
Outras ações, porém, estão ao alcance de todos, como comprar lâmpadas inteligentes – do tipo que o usuário controla a intensidade da luz por meio de aplicativo ou comando de voz – e instalar sensores de movimento ou temporizadores digitais.
“A melhor forma de combater a poluição luminosa é adequar o uso da luz à necessidade das pessoas. Portanto, apague a luz quando não estiver usando”, aconselha o físico Christopher Kyba, do Centro de Pesquisa em Geociências, na Alemanha. “Sabe por que as luzes de Natal fazem tanto sucesso? Porque só ficam acesas no fim do ano. Se iluminassem casas, igrejas e hoteis o ano todo, perderiam a graça”.
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