O que não mata pode deixar cronicamente doente, diz bióloga que estuda e tem covid longa há 5 anos

Letícia Soares foi infectada pelo coronavírus em abril de 2020 e, desde então, convive com problemas crônicos, como fadiga e dores articulares; atualmente, ela integra um grupo internacional que investiga a covid longa, focando no reconhecimento e na compreensão da doença

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Foto do author Victória  Ribeiro
Atualização:
Foto: Uendel Galter/Estadão
Entrevista comLeticia SoaresBióloga e líder do projeto internacional "Patient Led Research Collaborative – for Long Covid"

Era abril de 2020 quando as principais notícias falavam dos hospitais superlotados, caixões empilhados na Itália e ruas vazias em pontos turísticos icônicos. Tudo por causa do novo coronavírus, que inclusive tinha acabado de chegar ao Brasil – o primeiro caso havia sido confirmado no dia 26 de fevereiro. No meio desse cenário de incertezas, a bióloga brasileira Letícia Soares, então com 35 anos, foi infectada pela covid-19. Na época, morava no Canadá com o companheiro, um trabalhador considerado essencial e, portanto, sem a opção de aderir ao isolamento social. “Ele tinha contato com pessoas de diferentes países e regiões, então não demorou para que nós dois fôssemos infectados”, lembra.

No início, os sintomas de Letícia foram aqueles clássicos: dor de cabeça forte, problemas gastrointestinais e, em seguida, uma fadiga intensa acompanhada de dificuldades cognitivas e dores musculares e nas articulações. Na época, lembra a bióloga, o coronavírus ainda era visto de forma quase binária. “Ou você morria, ou melhorava em 15 dias”. Mas, no caso dela, o prazo passou e as coisas seguiram as mesmas.

“Não fui internada, mas passei 32 dias seguidos na cama. Depois disso, comecei a melhorar, mas muito pouco. Por exemplo, em casa, havia uma escada, e eu subia engatinhando ou fazendo paradas”, conta. “Falava com minha médica, e ela dizia que já não era mais covid, que devia ser outra coisa, pois a fase aguda durava esse tempo e pronto. Mas eu sentia que algo não estava certo e que o vírus tinha deixado algo ali.”

Quase cinco anos depois, mesmo não possuindo mais a carga viral do coronavírus, Letícia ainda lida com os sintomas que não tinha antes da infecção: fadiga crônica, dores musculares e articulares, dificuldade para dormir e lapsos de memória. “Esqueço conversas, experiências… Cheguei a esquecer que minha avó já faleceu. Também tenho dificuldade com funções executivas. Eu adorava cozinhar, era meu hobby, mas hoje nem seguir uma receita consigo direito, porque me perco na organização das etapas.”

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Segundo ela, a intensidade varia conforme o esforço físico ou cognitivo — e nem precisa ser nada exagerado. A piora costuma aparecer entre 24 e 48 horas depois. “Se caminho dois ou três quarteirões ou vou ao supermercado, por exemplo, já sei que vou passar os dias seguintes de cama, sem forças nem para tarefas básicas, como tomar banho. O problema é que, hoje, a única forma de evitar isso é evitar o esforço, o que torna tudo muito limitante.”

Esqueço conversas, experiências… Cheguei a esquecer que minha avó já faleceu

Letícia Soares, bióloga

Se na época a covid-19 já era uma doença pouco compreendida, para quem desenvolveu a versão persistente a incerteza era ainda maior. Apesar de hoje ser acompanhada por pelo menos seis especialistas, Letícia conta que levou quatro anos para encontrar profissionais que validassem sua condição.

Nessa jornada, a compreensão surgiu do Twitter. Foi lá que ela encontrou outras pessoas vivendo a mesma realidade e, em 2021, se uniu ao Patient-Led Research Collaborative for Long Covid, um grupo internacional de pesquisa que investiga a síndrome pós-covid. A partir de um estudo sobre os sintomas prolongados, o grupo conseguiu quantificar as experiências de quem, até então, vivia em uma espécie de limbo estatístico. O estudo revelou que a covid longa pode envolver mais de 200 sintomas diferentes, com os mais comuns sendo fadiga, alterações sensório-motoras, mal-estar pós-esforço, disfunção cognitiva e a chamada “névoa cerebral”.

Leticia Soares retornou para o Brasil em 2023 e hoje vive em Salvador Foto: Uendel Galter/Estadão

Atualmente, o projeto conta com diversas pesquisas sobre o tema, abordando desde os impactos neuropsiquiátricos até as consequências para a saúde reprodutiva e as reinfecções. Além disso, o grupo tem atuado como consultor para outras instituições de pesquisa, como já foi o caso da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

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Embora a falta de reconhecimento ainda seja uma queixa comum entre quem vive com covid longa, Letícia reconhece que houve avanços desde o início da pandemia. Em 2024, por exemplo, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do IBGE, incluiu pela primeira vez a covid persistente em seu levantamento e constatou que 23% dos brasileiros apresentam ou apresentaram sintomas prolongados da doença. Esse número, no entanto, pode ser ainda maior, já que muitas pessoas não chegam a fazer o teste de covid e convivem com os sintomas sem associá-los à infecção.

Ainda assim, o cenário está longe do ideal. “Existe uma barreira quase epistêmica na forma como o impacto das infecções é compreendido, tanto no Brasil quanto no resto do mundo”, avalia Letícia. “Culturalmente, a gente precisaria de uma mudança de pensamento: sair da ideia de que ‘o que não te mata te fortalece’ para ‘o que não te mata pode te deixar cronicamente doente’.”

Como a covid longa impactou suas relações interpessoais?

Com fadiga e dor fica muito difícil socializar. Antes, bate-papo, encontros casuais, eventos... Tudo fluía naturalmente. Agora, cada interação precisa ser planejada. Se vou almoçar na casa de alguém, por exemplo, preciso me programar para descansar antes e depois. Com o trabalho e a rotina sugando quase tudo, socializar acaba ficando em último plano.

Mas o mais difícil mesmo é a falta de compreensão. Doenças crônicas ainda carregam muito estigma e capacitismo – parece que existe um “jeito certo” de lidar com elas, e quem não “vence” a doença é julgado, como se faltasse esforço ou força de vontade. Então, o isolamento social é muito, muito grande. Muitas pessoas se afastaram – e, em alguns casos, fui eu que precisei me afastar, para me preservar mesmo. Costumo dizer que é um luto constante. Existe a pessoa que eu era antes e a que sou agora. Com as minhas relações, é a mesma coisa.

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Leticia e a sua companheira canina, Ziggy Foto: Uendel Galter/Estadão

Você acha que a doença pode ser considerada uma ‘deficiência’?

Pelos impactos funcionais e pelas limitações no dia a dia, eu diria que sim. E seria importante que isso fosse reconhecido na legislação brasileira. Sem esse reconhecimento, muita gente fica sem qualquer tipo de proteção legal ou acesso a direitos básicos para pessoas com deficiência.

Existe a pessoa que eu era antes e a que sou agora

Letícia Soares, bióloga

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E você acha que ela ainda é subestimada pela comunidade médica e científica?

Sim e não. A covid longa é uma das doenças mais estudadas hoje. Já são mais de 80 mil artigos publicados. Graças a essas pesquisas, já entendemos melhor os mecanismos da doença, os sintomas e as diferentes formas como ela se manifesta. O Brasil, inclusive, está entre os 10 países que mais publicam sobre o tema. O problema é que os investimentos ainda não acompanham o impacto real da doença.

Existe também uma barreira conceitual sobre como infecções podem desencadear doenças crônicas. A covid longa só reforça algo que já se sabe há muito tempo: algumas infecções deixam sequelas. A mononucleose, por exemplo, tem relação com esclerose múltipla. Já existem evidências ligando vírus da gripe, coronavírus e hepatites a condições neurológicas. Mas, culturalmente, ainda se insiste na ideia de que “o que não te mata te fortalece”, quando, na verdade, deveria ser “o que não te mata pode te deixar cronicamente doente”.

Fora isso, há barreiras econômicas e políticas. Existe uma pressão para minimizar os impactos da covid e fazer com que tudo pareça resolvido. A prioridade tem sido colocar as pessoas de volta ao trabalho a qualquer custo. Foram anos traumáticos – perda de renda, empobrecimento, mortes em massa – e, em vez de políticas públicas de acolhimento, o discurso foi simplesmente “segue a vida”.

No dia a dia, encontrar profissionais de saúde que realmente escutem e acolham tem sido uma batalha. Isso aconteceu comigo tanto nos primeiros anos lidando com a covid longa no Canadá quanto agora, no Brasil. Mesmo com alguns médicos bons no caminho, não dá pra dizer que eu tenha um acompanhamento interdisciplinar. Na prática, tenho que fazer um verdadeiro malabarismo entre reumatologista, neurologista, otorrino, endocrinologista… E assim vai. Esse é o desafio de todo paciente de covid longa hoje. Não existe um cuidado coordenado, e cada um se vira como pode.

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Hoje, a bióloga é acompanhada por ao menos seis tipos de especialistas, tanto da rede pública quanto particular Foto: Uendel Galter/Estadão

E o negacionismo? Deixou uma herança?

Com certeza. O negacionismo científico não é de hoje, mas, no último governo, ficou escancarado e custou muitas vidas. Além disso, doenças crônicas associadas a infecções sempre foram negligenciadas em políticas públicas, pesquisas e serviços de saúde. A covid só entrou para essa lista.

Mas não é só isso. Existe também um legado de misoginia política, acadêmica e médica. Fadiga e dor, por exemplo, são sintomas que já carregam estigma, e quando o relato vem de uma mulher, a coisa piora. A dor é muito subestimada. Com isso, eu já fui acusada por médicos de estar inventando sintomas para conseguir receita de opioides, só para você ter noção. Também teve uma vez que um neurologista simplesmente descartou qualquer relação entre infecções e condições neurológicas, algo amplamente documentado na literatura científica. Para ele, o que eu sentia era efeito do uso prolongado de máscara durante a pandemia. Uma coisa absurda e que não deveria sair de um profissional da saúde.

Encontrar profissionais de saúde que realmente escutem e acolham tem sido uma batalha

Letícia Soares, bióloga

Existe algum critério médico estabelecido para diagnosticar a doença?

Sim, existe uma definição oficial da Organização Mundial de Saúde (OMS), além de uma mais recente da Academia Nacional de Ciências e Medicina dos Estados Unidos, que descreve de forma mais detalhada a história natural da doença. Resumidamente, o diagnóstico é baseado em sintomas e condições que surgem ou se agravam após a infecção por covid-19 e persistem por pelo menos três meses, mesmo que os testes convencionais já não indiquem a presença do vírus.

Há quem diga que os sintomas podem ser resultado do estresse da pandemia ou de questões emocionais, como ansiedade e depressão. Como você costuma responder a esse tipo de argumentação?

Pessoas com covid longa podem, de fato, enfrentar questões de saúde mental, mas não como causa direta da doença, e sim como consequência do impacto incapacitante que ela provoca. Um exemplo claro disso é que nenhuma medicação antidepressiva ou ansiolítica tem eficácia no tratamento ou cura da covid longa.

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Quem são os principais afetados pela covid longa?

Qualquer pessoa pode desenvolver covid longa, até quem teve covid sem sintomas, quem não precisou de hospital e até quem foi vacinado. E quanto mais vezes a pessoa pega covid, maior a chance de ter a versão longa da doença. Mas alguns grupos são mais vulneráveis, como mulheres, populações marginalizadas, como negros e indígenas, pessoas neurodivergentes, com deficiência e também trabalhadores mais expostos.

No caso das mulheres, tem uma questão biológica, possivelmente relacionada aos hormônios e ao sistema imunológico. Já para os outros grupos, os fatores são mais socioeconômicos e estruturais – estamos falando de motoristas de aplicativos, entregadores e a galera do setor de serviços em geral.

Quando essas pessoas desenvolvem covid longa, o impacto é grande. Muitas não conseguem mais trabalhar como antes, perdem renda e ainda têm que gastar mais com saúde. Isso acaba afetando toda a família.

Desde 2021, Letícia se dedica profissionalmente ao estudo da covid longa Foto: Uendel Galter/Estadão

Outro ponto é que a covid longa não segue um padrão único. Enquanto algumas pessoas mantêm sintomas desde a infecção, outras só começam a apresentá-los meses depois – como os neurológicos, que geralmente aparecem por volta do quinto mês. A duração também varia: algumas pessoas sofrem por meses, outras por anos, como no meu caso. Hoje, já entendemos melhor como essas trajetórias podem se desenvolver, e isso está bem documentado na literatura médica.

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Para os próximos anos, quais são as lacunas que a ciência deve preencher?

Ah, são várias, mas a maior delas é o investimento em pesquisas para controlar ou até curar a covid longa. Apesar de tantas pessoas afetadas, o financiamento ainda é muito baixo. Por outro lado, o Brasil tem um grande potencial intelectual. Os cientistas são extremamente criativos, e o que falta é apoio para que eles se dediquem à pesquisa sobre covid longa e doenças crônicas associadas a infecções.

Além disso, há uma enorme necessidade de educação em saúde pública. As pessoas precisam entender não apenas os riscos de desenvolver a covid longa, mas também os impactos dessa doença na vida delas e na sociedade como um todo. Essa educação deve estar conectada a políticas públicas que ofereçam as ferramentas necessárias para prevenir a infecção, como o uso de máscaras adequadas, e fornecer apoio para quem desenvolve a doença.

Acredito que a covid longa pode deixar um legado importante na forma como lidamos com doenças infecciosas. Com tantas pessoas vivendo com essa condição, é hora de repensar a forma como tratamos as consequências das infecções de modo geral.

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