Obesidade é também uma doença psiquiátrica? Especialistas analisam

Forte associação entre a obesidade e transtornos mentais suscita a discussão, revelando a complexidade de uma doença que ainda não é totalmente compreendida

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Foto do author Leon Ferrari

ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA* - A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a obesidade como uma doença crônica complexa caracterizada por “depósitos excessivos de gordura”, que podem prejudicar a saúde. Na maioria dos casos, é multifatorial, ou seja, causada por uma mistura entre um ambiente considerado obesogênico, fatores psicossociais e variantes genéticas.

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A obesidade leva ao aumento do risco de diabetes tipo 2 e doenças cardíacas, além de pelo menos 13 tipos de câncer. E também de transtornos mentais — neste caso, a recíproca também é verdadeira.

De acordo com um estudo chinês, de 2013, publicado na revista científica BMC Psychiatry, dois a cada cinco pacientes com sobrepeso ou obesidade tinham ao menos um transtorno psiquiátrico.

Mais recentemente, em 2023, um robusto estudo austríaco, publicado no periódico Translational Psychiatry, do grupo Nature, comparou a progressão de saúde mental ao longo dos anos entre 3 milhões de pacientes sem obesidade e mais de 161 mil com o diagnóstico, usando dados do registro nacional austríaco de serviços de internação de 1997 a 2014.

Os pesquisadores observaram que pacientes com obesidade apresentavam maior risco de enfrentar todos os transtornos psiquiátricos elencados no estudo quando comparados a indivíduos sem o diagnóstico do problema. Por exemplo, eles tinham 2,52 vezes mais chances de encarar episódios de depressão, além de uma probabilidade 2,65 vezes maior de serem diagnosticados com depressão recorrente. Esse grupo ainda era 2,13 vezes mais propenso a ter transtorno de ansiedade.

“Do ponto de vista clínico, esses resultados enfatizam a necessidade de aumentar a conscientização sobre diagnósticos psiquiátricos em pacientes com obesidade e, se necessário, consultar especialistas em um estágio inicial do diagnóstico”, disse o autor principal Michael Leutner, da Medical University of Vienna, em comunicado à imprensa, quando o estudo foi publicado.

Mas essa relação entre obesidade e maior risco de distúrbios mentais é o suficiente para dizer que ela é também uma doença psiquiátrica?

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Pesquisadores têm debatido se é possível definir a obesidade como uma doença psiquiátrica Foto: New Africa/Adobe Stock

Quando essa pergunta é feita, a conversa se torna mais nebulosa e os especialistas concordam em discordar. A discussão, porém, revela o quão complexa é obesidade e quanto ainda precisamos avançar em sua compreensão, ao passo que, segundo a Federação Mundial de Obesidade (WOF, na sigla em inglês), mais da metade da população adulta mundial viverá com sobrepeso e obesidade até 2035 se nada for feito.

No último Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que ocorreu no final de outubro, em Brasília, onde esse debate ganhou espaço, ficou claro que o consenso é que transtornos mentais e a obesidade estão intimamente ligados, e os médicos precisam estar atentos a isso. Outro ponto pacífico é que estigmas históricos relacionados à doença — que a associaram à falta de vontade e ao desleixo — são simplistas e prejudicam o combate de uma situação que os especialistas já consideram uma epidemia.

Sistêmica

O psiquiatra e professor Táki Cordás, coordenador da Assistência Clínica e do Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Instituto de Psiquiatria da USP (IPq-HCFMUSP), avalia que a obesidade também pode ser considerada uma doença psiquiátrica.

“Você vai considerar a obesidade como uma doença também psiquiátrica na medida em que pode considerá-la também (um problema) em urologia, neurologia, ginecologia. É uma doença sistêmica. Ou seja, é uma doença da medicina toda”, disse, ao Estadão. “Estamos lidando com o ser humano. O ser humano não é para ser fatiado.”

Durante sua apresentação no congresso, Cordás dedicou-se a mostrar como, desde a Grécia antiga, construiu-se um estigma relacionado ao excesso de peso, e, por consequência, à obesidade. “Há mais de 2,5 mil anos a obesidade vai ao psiquiatra. Há mais de 2,5 mil anos a obesidade sofre de preconceito.”

“O estigma leva ao aumento do risco de depressão, ansiedade, transtornos alimentares. Só isso já seria suficiente para ter obesidade como parte da psiquiatria, ou pelo menos como interesse da psiquiatria”, afirmou.

Personalidade

O psiquiatra Adriano Segal, da comissão de obesidade da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), lembrou que a doença não está presente nos guias de psiquiatria, como o famoso Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-5). “Apesar de haver uma grande associação, não há demonstração de um padrão de personalidade da pessoa que tem obesidade.”

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“Muitas das características que se atribuem à pacientes com obesidade são chavões históricos ou más técnicas de coping (esforço de adaptação para lidar com eventos estressantes) que os pacientes têm”, explica.

Segal reforçou, no entanto, a complexidade da obesidade durante o congresso. Segundo ele, esse quadro não se compara à nenhuma outra doença crônica, como diabetes tipo 2, sobretudo em termos de estigma e intersecção com problemas de saúde mental.

Nesse sentido, ele apresentou vários estudos que mostram como os tratamento contra a obesidade tem um impacto no sistema nervoso central do cérebro, o que pode levar a resultados positivos também na saúde mental. As opções terapêuticas atualmente são: mudança de estilo de vida, terapia cognitivo comportamental, nutrição, atividade física, remédios antiobesidade e cirurgia bariátrica.

Na visão dele, é difícil um psiquiatra tratar a obesidade sozinho – mas esse profissional é cada vez mais importante dentro da equipe multidisciplinar que lida com esse quadro.

Estigmas

O endocrinologista Neuton Dornelas, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), também se opõe à ideia de considerar a obesidade uma doença psiquiátrica. Durante o evento em Brasília, ele apresentou uma revisão de 2009, publicada no International Journal of Eating Disorders, e que buscou responder se a obesidade deveria ser incluída no DSM-5, que seria divulgado em breve.

Inclusive, o título do artigo é: “Obesidade: é um transtorno mental?” Para os autores, havia poucas evidências para sustentar que ela seja causada por disfunção mental. “Se há poucas evidências para apoiar a classificação da obesidade como um transtorno mental no DSM-5, existem muitas razões para considerar a adiposidade na avaliação e no manejo de transtornos psiquiátricos”, escreveram.

“A obesidade é uma doença que também repercute nas doenças psiquiátricas”, disse Dornelas, no congresso. Nesse sentido, ele alertou os médicos sobre como a postura deles com o paciente pode ser prejudicial. “Às vezes, não nos damos conta de que estamos criando situações que levam os pacientes potencialmente ao psiquiatra.”

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Ele, então, apresentou dados de um levantamento da SBEM em parceria com a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), que investigou o estigma em torno da obesidade. Cerca de 3,6 mil pessoas responderam um formulário eletrônico em fevereiro de 2022. Mais de sete a cada dez (75,4%) tinham diagnóstico de obesidade.

Um total de 85,3% dos participantes relatou ter sofrido constrangimento por causa do seu peso. Variou de 67,86% para pessoas em sobrepeso até 98,15% para pacientes com obesidade grau 3.

Grande parte (72%) relatou que o constrangimento ocorreu em casa; 60,4% disse que isso aconteceu também durante uma consulta médica.

“As pessoas foram tachadas ao longo do tempo de não terem boa vontade”, fala Dornelas. Isso, diz, prejudica a adesão ao tratamento e pode ser motivo para não retornar ao consultório médico.

Ouvir o paciente

É nesse sentido que a endocrinologista Marise Lima, professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e da Universidade de Pernambuco (UPE), que estava na plateia, comenta como estudar sobre psiquiatria mudou a forma como ela ouve seus pacientes.

“A gente que é clínico é muito objetivo, se preocupa muito com desfecho, e perdemos a percepção da investigação, na qual o psiquiatra é mestre.” Como transtornos psiquiátricos são altamente prevalentes em pacientes com obesidade, ela avalia que é preciso “investir um pouquinho mais nessa conversa”.

“Ficar falando menos em número, que é muito simplista. Quando a gente aproveita para, por exemplo, perguntar como é o comportamento, se há outros sintomas, muitas pessoas que eu anteriormente tratava apenas por excesso de peso, na verdade, tinham (também) condições psiquiátricas.” É por isso que ela acha que considerar a obesidade também como uma doença psiquiátrica pode ser interessante.

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Comer emocional

Rogeria Taragano, psicóloga clínica especialista em transtornos alimentares e colaboradora do Ambulatório de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o Ambulim, que não esteve no Congresso, avalia que ainda não temos evidências suficientes para considerar a obesidade também como um transtorno mental – o que não significa que as questões emocionais não devam ser trabalhadas no tratamento.

Ela explica que o trabalho dos psicólogos nessa equipe multidisciplinar é, além de lidar com o estigma e pressões que esses pacientes sofrem, olhar para o comportamento alimentar. É preciso atenção especial em relação ao “comer desorganizado”, que pode ser considerado um “comer emocional”, uma área emergente de estudo.

“O comer emocional costuma estar muito presente em casos de excesso de peso ou mesmo obesidade, porque é esse fenômeno que faz com que a pessoa transfira para a comida a dificuldade de lidar com algumas emoções. E o curioso é que não é necessariamente só com as emoções mais difíceis, mas, às vezes, até com as muito positivas”, explica. “Estudos mostram que os tratamentos que trabalham bastante nessa questão de identificação e regulação emocional tendem a ter um desfecho melhor em termos de evolução.”

Em certa medida, diz ela, o comer emocional é parte da vida de todos nós. Ele se torna um problema quando se torna um mecanismo utilizado com muita frequência. “É diferente você ir tomar um café e comer um bolo com um amigo e não estar com fome. Você não come para se nutrir, mas porque é gostoso. E não há nenhum problema nisso. Agora, se é algo que ocorre todos os dias e, ao invés de comer um pedaço de bolo, come ele inteiro para regular uma emoção, passa a ser negativo.”

Além disso, há um trabalho para lidar com a pressa por resultados após aderir ao tratamento, e, às vezes, com a frustração gerado por ela. “O suporte terapêutico entra para ajudar a pessoa a manter a motivação, e fazer com que ela entenda que aquela dificuldade que está enfrentando é normal, é humana, diferente daquilo que aparece nas redes sociais.”

Entendimento pode mudar?

Hilton Libanori, cirurgião bariátrico e do aparelho digestivo do Hospital Israelita Albert Einstein, lembrou da evolução da compreensão sobre a úlcera péptica gastroduodenal. Trata-se de uma ferida que ocorre no tecido de revestimento do estômago ou do duodeno (a primeira parte do intestino). “Gostaria que sempre que eu falasse de doença péptica, vocês pensassem em obesidade”, disse, logo no início da apresentação no congresso.

Inicialmente, o tratamento desse quadro era clínico, com foco na dieta e em questões psiquiátricas — discutia-se a psicogênese das úlceras, lembra. Foram várias as teorias para explicar a causa, e a mais aceita, por muito tempo, foi que seria multifatorial. “Lembra alguma coisa?”, brincou, referindo-se claramente à obesidade.

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“Em uma boa porcentagem (dos pacientes), as úlceras cicatrizavam. Porém, em um ano, em 60% dos pacientes, recidivava (voltava). Ou seja, o tratamento clínico pode funcionar, mas é uma doença altamente recidivante.”

Foi então que os cirurgiões entraram na jogada. Uma coisa interessante, disse ele, é que a cirurgia da úlcera péptica envolvia várias técnicas, assim como a cirurgia bariátrica. “E quando tem várias técnicas, significa que ou não existe uma técnica realmente boa, ou que talvez aquela doença não seja de tratamento cirúrgico.”

Até o aparecimento de novas medicações, como Tagamet e o Omeprazol — um remédio bem caro na época —, predominou o tratamento cirúrgico, nota. Mas a recidiva seguia como um problema.

“Até que dois pesquisadores australianos desconhecidos chegaram, em 1980, em um congresso e apresentaram um paper sobre a bactéria Helicobacter pylori, que, segundo eles, respondia por 90% das úlceras duodenais e até 60% a 70% das gástricas.” Foram Robin Warren e Barry Marshall, que, anos depois, receberam o Nobel de Medicina pela descoberta.

“Ninguém acreditou no que eles falaram. Demoraram três anos para conseguir publicar esse trabalho numa revista de impacto, que foi a The Lancet. E, a partir dos anos 1990, praticamente passamos a tratar a Helicobacter pylori.”

Na apresentação, ele mostrou uma linha do tempo da predominância das estratégias terapêuticas da doença péptica e também da obesidade. “São praticamente iguais. Hoje, diminuiu a cirurgia, sem dúvida, e ganha o tratamento clínico com os medicamentos novos. Agora, eu realmente acredito que o futuro do tratamento de obesidade não seja uma injeção que a gente dá uma vez por semana nem uma vez por mês.”

“Acho que ainda vai aparecer alguma coisa a ser discutida, como a Helicobacter pylori”, finaliza.

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*O repórter viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatra

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