Oito em cada dez pacientes apresentam disfunções cognitivas pós-covid, aponta estudo do InCor

Pacientes tiveram lapsos de memória, falhas de atenção e sonolência mesmo em casos leves e assintomáticos; funções podem ser recuperadas com diagnóstico precoce

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A memória era uma aliada da produtora Ivana Sarmanho, de 55 anos. Sabia datas de aniversário, o lado e a faixa exata de uma música em um disco de vinil. Mas isso mudou após a covid-19. Episódios de esquecimento e alterações no sono começaram a fazer parte do seu dia a dia. Ela foi uma das participantes de um estudo realizado no Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) que apontou a relação entre a infecção pelo vírus e disfunções cognitivas. De acordo com a pesquisa, 80% dos participantes apresentaram perda de memória, dificuldade de concentração, problemas de compreensão ou confusão em algum nível.

O trabalho foi conduzido pela neuropsicóloga Lívia Stocco Sanches Valentin, que também é professora da FMUSP, que resolveu investigar os impactos da covid-19 na parte cognitiva. "Sou especialista em anestesiologia e, com a infecção, tem a invasão das vias aéreas, que causa dessaturação de oxigênio, o que, fatalmente, vai afetar o sistema nervoso central. O sangue vai chegar rarefeito no cérebro, que vai ficar comprometido, causando tanto AVC e isquemia, quanto atingindo as funções neuropsicológicas."

'Percebi que meus reflexos estavam lentos, minhas respostas estavam lentas', diz Ivana Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

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Na primeira fase, foram analisados 185 pacientes entre março e setembro do ano passado, que tiveram os resultados comparados com um grupo de controle. Atualmente, há 430 pessoas e o InCor ainda aceita voluntários.

Para o estudo, foi usada uma ferramenta desenvolvida por Lívia em 2010, chamada MentalPlus, um game criado para avaliar as disfunções neurológicas em pacientes com sequelas de anestesia geral profunda, principalmente idosos.

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"Como já usava o MentalPlus, abri mais um protocolo de pesquisa para avaliar as funções cognitivas na covid e vimos o estrago. Quando a gente diz que são recuperados, os pacientes não entendem que é algo maior. Até fala que saiu ileso, mas não por completo, porque permanece o cansaço, a tosse, a dor de cabeça ou a questão cognitiva, mesmo que leve. Tem a falha de memória, a pessoa se confunde em tarefas simples e acaba justificando essas falhas com outras coisas do dia a dia: preocupações financeiras, muito tempo em quarentena, por não viajar. As pessoas não entendem que a disfunção cognitiva é o quadro mais grave que é deixado como sequela."

Segundo o estudo, a memória de curto prazo de 62,7% dos participantes foi afetada. Já a de longo prazo, teve alterações em 26,8% dos voluntários. Em relação à percepção visual, o impacto foi notado em 92,4%.

Além de apresentar os danos causados pela doença, o aplicativo também funciona no tratamento dos pacientes. "Quem tem disfunção, passa por reabilitação com o mesmo teste e passa a ser reabilitado com dez sessões. Vai jogar em fases diferentes e, na 12ª etapa, é reavaliado e para ver se conseguiu se reabilitar totalmente ou não. Alguns não se reabilitam totalmente e vão para a terceira fase, que é com eletroestimulação."

A pesquisadora explica que a ferramenta foi validada em 2014 para uso no Brasil e nos demais países do mundo, e que ela já foi aplicada nos cinco continentes. Para casos pós-covid, pode ser usada com pacientes entre 8 e 88 anos. A meta é apresentar os resultados finais do estudo para a Organização Mundial da Saúde (OMS) para que a metodologia seja usada no diagnóstico e tratamento de pacientes com disfunções cognitivas.

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"Estamos superando os 400 voluntários e fomos incentivados a continuar para ajudar nessa questão de saúde pública, porque precisamos saber o que fazer no pós-covid. No Brasil e no mundo, é um estudo pioneiro pensando no pós-covid."

Voluntária se surpreendeu ao não conseguir ter êxito no jogo

Ivana teve covid-19 em maio, teve sintomas leves, tosse espaçada e febre baixa, mas já resolveu acionar a médica que a acompanha, pois tem pré-hipertensão.

"Ela sugeriu que eu fizesse o exame em um domingo. Quando voltei do PCR, fui almoçar e cadê olfato e paladar? Já tive certeza que era covid." A produtora teve uma boa evolução, no entanto, percebia que algo não ia bem.

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"Já tinha prestado atenção que minha memória não estava como era. Sei a data de aniversário das pessoas, faço muitas associações. Sou muito ligada em música, gosto muito de vinil, mas comecei a ouvir músicas da minha playlist e já não sabia quem estava cantando."

Dois meses depois da infecção, soube do estudo do InCor por um amigo e resolveu participar. "Participei do estudo da vacina da dengue, estou sempre de braços dados com a ciência. Eles me colocaram um app, tipo um game, mas confesso que, quando fiz, senti algo diferente. Achei que as coisas estavam difíceis. Eu jogo videogame e me sinto à vontade jogando. Percebi que meus reflexos estavam lentos, minhas respostas estavam lentas."

Com a reabilitação, ela já sentiu melhora. "O cérebro é plástico. Estou melhor, mas tenho um caminho a percorrer, assim como tem a reabilitação física, tenho de ter estímulos. Fico brincando de ver se me lembro das coisas e leio bastante."

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