O ativista holândes Teun Toebes percorreu 11 países de quatro continentes para saber como vivem as pessoas com demência no mundo. Durante o Congresso Brain 2024: Cérebro, Comportamento e Emoções, realizado no Rio de Janeiro no fim de junho, ele e o diretor Jonathan de Jong apresentaram um trecho do documentário Human Forever e trouxeram um questionamento: onde você gostaria de viver e ser cuidado caso envelheça com demência?
A discussão pode parecer distante da realidade de um jovem de 25 anos como Toebes, mas ele discorda. O ativista acredita que, ao questionar a qualidade de vida de pessoas com demência hoje, quando ele próprio não tem um diagnóstico, tem mais chances de ser ouvido do que quando envelhecer. Além disso, como alerta o documentário, “há uma chance em cinco de este filme ser sobre você”.
Atualmente, mais de 55 milhões de pessoas vivem com demência no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), e o número aumenta a cada três segundos. A estimativa é de que, em 2050, sejam 139 milhões com a condição.
No Brasil, com o envelhecimento acelerado da população - enquanto países europeus tiveram mais de um século para se preparar, o Brasil viverá o mesmo processo em cerca de 30 anos -, a tendência também é de crescimento de casos, o que ressalta a importância do questionamento de Toebes e Jong.
Toebes acredita que não há uma única resposta e que nenhum país deve simplesmente copiar os modelos de outros. Durante o congresso, ele questionou o modelo adotado em países ricos europeus, de instituições de cuidados de longa duração específicos para a demência, a maioria com portões fechados para o mundo externo. Também frisou que o modelo de cuidado dentro da comunidade, nas famílias, como na maioria dos países latinos e na África, tem riquezas e não deve ser desprezado.
“Se realmente ouvirmos as pessoas com demência, elas mostrarão que não precisam apenas de bons cuidados. Não se trata (só) da qualidade do cuidado. O objetivo principal é a qualidade de vida”, defendeu. “Viver juntos é a solução para sobreviver, é a resposta. O que muitas vezes pensamos na Holanda é que não precisamos uns dos outros, que somos todos indivíduos. Se nos vemos (apenas) como indivíduos, não podemos criar uma sociedade.”
Conexão também faz parte da resposta do geriatra João Carlos Barbosa Machado, professor e coordenador do internato de Saúde do Idoso da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. “Às vezes, as pessoas estão em casa com a família, mas estão no canto do quarto, ninguém cuida delas”, disse. “Acho que o movimento mais importante que precisamos fazer para mudar as coisas, independentemente da cultura, é estabelecer conexões com as pessoas.”
Tanto especialistas que participaram do congresso quanto aqueles consultados posteriormente pelo Estadão concordam que os cuidados precisam ser centrados no paciente, ou seja, devem levar em conta quem a pessoa é, suas habilidades e preferências. Mas onde prestar esse cuidado?
“Só vamos realmente conseguir disponibilizar um cuidado centrado na pessoa, independentemente de ser no contexto comunitário ou de uma instituição, quando engajarmos toda a sociedade e os interesses políticos para resolver a situação”, adianta o geriatra Patrick Alexander Wachholz, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Veja abaixo seis pontos que devem ser considerados na discussão e na reflexão sobre o tema.
1 - Como funcionam as instituições para idosos do Brasil?
Se em países europeus são comuns casas de repouso especializadas, como para pessoas com demência, no Brasil, segundo especialistas, ainda são mais comuns os cuidados domésticos e familiares e lares de cuidados de longa permanência mistos, que incluem desde pessoas idosas que necessitam de auxílio nas atividades diárias até pacientes psiquiátricos, em geral divididos em alas ou andares por nível de complexidade do cuidado.
De acordo com o governo federal, as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) públicas são destinadas ao “domicílio coletivo de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, com ou sem suporte familiar e em condições de liberdade, dignidade e cidadania”. Elas precisam seguir resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para solicitação de vaga, é necessário o atendimento pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) ou, caso não haja CREAS no município, pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).
Embora sejam considerados espaços residenciais, acabam seguindo modelos “hospitalocêntricos”, com rotinas fixas, como hora para todos dormirem e comerem, segundo especialistas. Invisibilizadas, dizem os especialistas, algumas dessas instituições apresentam condições precárias e também não conseguem arcar com os recursos necessários para serem registradas na Anvisa.
Durante o congresso, Machado apresentou aos convidados internacionais o termo “ILPI-ismo”, uma espécie de preconceito ou aversão a essas instituições. “As pessoas não sabem o que significa, mas são contra. Não podemos ser contra coisas que não conhecemos”, afirmou.
A invisibilização e também o preconceito dificultam discutir melhores caminhos para essas instituições, e como elas podem fornecer cuidados centrados na pessoa, que exigiria abandonar rotinas fixas. No entanto, elas podem se tornar cada vez mais necessárias ao passo que a população envelhece e as famílias ficam cada vez mais enxutas.
“Temos menos de 1% das pessoas no Brasil em instituições para idosos, o que é insuficiente para as pessoas que realmente precisam de cuidados e não podem ser atendidas em casa”, aponta Machado. Os dados são do primeiro censo das ILPIs brasileiras do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), publicado em 2010, que identificou na época que cerca de 90 mil pessoas vivam em 3,5 mil instituições. Aumentar o número de lares e de pessoas vivendo neles não é consensual entre os especialistas (leia mais abaixo).
Considerando apenas as instituições registradas, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) informou que o Censo SUAS de 2023 contabilizou 1.942 ILPIs públicas, que acolhem 69.358 idosos.
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Segundo os médicos, a escolha por uma casa de repouso depende do binômio paciente-cuidador. Ou seja, depende não só do grau de dependência da pessoa idosa com ou sem demência, mas a disponibilidade e a possibilidade de um familiar de assumir os cuidados.
Puxadas pelo setor privado, o número de ILPIs têm crescido no Brasil, aponta Wachholz. Ele participou de um estudo publicado na revista científica Geriatrics, Gerontology and Aging, da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, em 2021, que estimou que, entre casas registradas e não registradas, o número já ultrapassa 7 mil. A maior parte delas concentradas nas regiões Sul e Sudeste. Mesmo que os serviços privados estejam em crescimento, eles não seriam acessíveis para a maioria da população pelo alto custo mensal.
“Dos municípios brasileiros, 64% não possuem pelo menos uma ILPI, seja pública, privada ou filantrópica. Apesar de a gente ter tido um aumento significativo no número de instituições, elas parecem muito concentradas exatamente nas regiões que têm mais poder aquisitivo”, afirmou Wachholz.
Em 2023, o Estadão mostrou que um estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) apontou que o número de leitos em instituições de longa permanência ou de reabilitação caiu de 0,6 para mil idosos em 2010 para 0,4 para mil idosos em 2021.
2 - Quem cuida no Brasil?
Um grupo de trabalho criado pelo governo federal para trabalhar na elaboração da Política Nacional de Cuidados declarou, no início do mês, que “a forma como se dá a oferta de cuidados e como as pessoas os recebem não é capaz de atender em forma equitativa as necessidades de cuidado da população, e tem sobrecarregado as mulheres brasileiras.” Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, elas dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens nos afazeres domésticos ou no cuidado de pessoas.
“Em toda a América Latina, o cuidado é dispensado a pessoas que dele precisam basicamente por mulheres. E para assumir esse cuidado, muitas vezes ela tem que abdicar de estar no mercado de trabalho. Isso torna o envelhecimento dela de risco, porque, por exemplo, ela não tem a possibilidade de ter um ganho remunerado que permita uma aposentadoria para garantir um envelhecimento digno”, alerta Wachholz.
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3 - Construir mais ILPIs? Remunerar cuidadores? Há outras alternativas?
Para garantir o cuidado, os especialistas acham que precisamos considerar algumas opções sobre o “onde”, mas ainda não temos uma resposta do que vai ser melhor. O foco, porém, tem que ser o cuidado centrado na pessoa.
A demência causada pelo Alzheimer não tem cura, mas especialistas apontam que é possível, em alguns casos, retardar a progressão dos sistemas. A OMS recomenda que essas pessoas sejam fisicamente ativas e participem de atividades e interações sociais que estimulem o cérebro e mantenham as funções diárias — há também algumas opções farmacológicas. É preciso garantir isso onde quer que essas pessoas estejam.
O ativista holandês Teun Toebes reforça que precisamos, sobretudo, escutar as pessoas com demência sobre o que elas querem. “Deveríamos ser mais humildes na área da saúde. Muitas vezes achamos que temos a resposta, mas a questão é: a resposta está baseada nas necessidades de alguém com demência ou nas necessidades do sistema de saúde?”
A geriatra Claudia Kimie Suemoto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), destaca que também precisamos olhar para o meio do caminho entre os cuidados unicamente domésticos ou em uma instituição de longa permanência. “Estive no Japão há cerca de dez anos. Na época, eles tinham um programa muito legal. O governo fornecia uma rede de suporte. Eles tinham cuidadores contratados que entravam na casa dessas pessoas idosas, alguns com demência, mas não tão graves, e davam suporte. Eles preparavam a comida, limpavam a casa e faziam companhia.”
Ela pensa que, para pacientes com demência leve ou idosos que tenham restrições não tão graves, oferecer uma equipe multidisciplinar de atendimento domiciliar, de saúde até gestão da casa, é uma possibilidade. Nesse meio termo, a médica também cita os centros-dia.
De acordo com o governo federal, o centro-dia é “uma unidade pública destinada ao atendimento especializado a pessoas idosas e a pessoas com deficiência que tenham algum grau de dependência de cuidados”. A ideia é dividir os cuidados com os familiares e, ao mesmo tempo, evitar o isolamento social e o abandono. Há também iniciativas do tipo na iniciativa privada.
Segundo especialistas, as unidades ainda são pouco difundidas, e não há nenhuma específica para acolher pessoas com demência. O MDS informou que, no País, atualmente existem 1.131 unidades que atendem 22.871 pessoas idosas.
Olhar para o cuidador também é essencial. “No Chile e Uruguai, as famílias que cuidam de um idoso com demência em casa recebem o subsídio do governo para ou contratar um cuidador, ou se for um familiar que preste o cuidado, garantem que ele receba um treinamento para que saiba cuidar da maneira adequada, tanto para que o cuidador não adoeça, quanto para que ele possa prestar um cuidado de qualidade”, conta Wachholz.
Ele lembra que na transição de níveis de cuidado, antes das ILPIs, ainda existem as comunidades assistidas. “O idoso mora numa casa dele dentro de algo como se fosse um um condomínio de pessoas que são idosas e moram todas juntas. E uma vez por dia, elas recebem a visita em casa para ver se estão bem.”
É uma ideia parecida com o “conceito Hogeweyk” que começou na Holanda. Ele é uma espécie de bairro para pessoas com demência avançada. Por lá, há casas para moradores com estilos de vida parecidos, mercado, teatro, restaurante e pubs.
4 - ILPIs estarão abertas para mundo externo?
Quando pensamos nas ILPIs e também nas comunidades assistidas, precisamos refletir sobre questões éticas e de direitos humanos. A principal delas: a porta para o mundo exterior estará fechada?
Do ponto de vista médico, segundo especialistas, isso ajuda na oferta de cuidados específicos para uma população com necessidades específicas. No entanto, explicam que o contato intergeracional, com indivíduos de diferentes idades, é importante para pessoas com demência, o que pode ficar difícil nesse modelo.
A maioria destaca que é necessário garantir que os residentes tenham mobilidade para sair quando tiverem vontade, desde que tenham segurança, seja por terem um grau de dependência maior ou porque estarão acompanhados por um cuidador.
“Estamos criando guetos para pessoas com demência. Essas pessoas são excluídas da sociedade por causa da demência”, alertou o ativista holandês Teun Toebes ao Estadão. Ele admite que algumas pessoas com a condição, de fato, precisam de cuidados mais intensivos, mas defende que não podemos acreditar que nossa maneira de pensar e cuidar de todos possa ser baseada nos com quadros mais graves.
Ao Estadão, Iris van Slooten, hoje consultora e especialista no The Hogeweyk Care Concept, disse que Hogeweyk nunca quis ser um gueto, mas um bairro inclusivo. No entanto, quando ele foi criado, havia uma lei na Holanda que exigia que houvesse um portão, ou seja, os lares eram proibidos de permitir que os residentes saíssem sem autorização. Há dois anos, conta, uma nova lei entrou em vigor e impede que “as pessoas sejam trancadas, mesmo as com demência severa”, pois isso representaria uma infração aos direitos humanos.
“Mas quem é responsável (se algo acontecer com eles quando saírem)? Oficialmente, ainda é o lar de idosos. É uma discussão que está acontecendo hoje em dia”, explica.
5 - De onde virão os recursos?
De acordo com o Estatuto do Idoso, que define que esse grupo é formado por brasileiros com 60 anos ou mais, os cuidados destinados a eles são uma responsabilidade compartilhada.
Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Estatuto do Idoso
Segundo Wachholz, nem o projeto de lei do Plano Nacional de Cuidados, enviado pela presidência ao Congresso Nacional no início deste mês, nem a Política Nacional de Enfrentamento ao Alzheimer e Outras Demências, sancionada no início de junho, deixam claro quem vai arcar com os recursos necessários para garantir cuidados adequados. “De onde esse dinheiro vai vir? Você vai aumentar a carga tributária para criar uma fonte? Vai tirar isso de dotações orçamentárias que já existem de fontes específicas? Esse dinheiro vai sair do município, vai sair dos Estados ou vai sair da União?”
O Estadão levou esses questionamentos ao MDS, que respondeu que o Plano Nacional de Cuidados está na fase final de elaboração e pactuação política.
6 - Devemos copiar modelos do exterior?
Para Toebes, que já visitou ao menos 11 países e esteve recentemente no Brasil, é importante que não simplesmente copiemos modelos de outros países, mas pensemos em nossa própria cultura.
“Muitas vezes parece que os países tentam copiar sistemas europeus sem valorizar a sua própria cultura, por favor não façam isso. O Brasil tem muitos desafios, obviamente, e há uma enorme desigualdade, mas, ao mesmo tempo, para mim, parece que vocês estão sentados em ouro quando se trata da forma como as pessoas vivem juntas: o senso de comunidade é reconfortante, e é o que mais falta nos Países Baixos. Não se trata apenas da quantidade de produtos e de dinheiro, trata-se principalmente de como as pessoas convivem, se relacionam e se mantêm próximas, mesmo em tempos difíceis”, disse. “Se continuarmos vendo um ser humano, você nunca desaparecerá.”
*O repórter viajou a convite do Congresso Brain 2024: Cérebro, Comportamento e Emoções
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