Ouvir música e ver vídeo acelerados: como isso afeta o nosso cérebro?

Especialistas veem risco de mais ansiedade e dificuldades de atenção; ritmo mais veloz ajuda em tarefas cotidianas, mas buscar equilíbrio é saída para evitar problemas

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Foto do author Leon Ferrari
Atualização:

Troca rápida de planos, cores vibrantes, sons explosivos e personagens “ligados no 220V″. O sucesso do filme Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo não é à toa. A rotina moderna tem sido cada vez mais acelerada e fragmentada.

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Os sintomas desse ritmo são evidenciados pelo que consumimos - e pelo modo que fazemos isso. Desde que o aplicativo WhatsApp permitiu acelerar mensagens de áudio e as plataformas de streaming, como o YouTube, fizeram o mesmo com vídeos, há quem só ouça e assista na velocidade 2x. Pesquisas já alertam sobre o risco desses hábitos terem efeitos na saúde, principalmente ligados a dificuldades de atenção e ansiedade.

Músicas em rotação acima do normal, que deixam mais aguda a voz de quem canta, os “sped up songs” ou “speed-up songs” se popularizaram no TikTok e ganham o topo das paradas. Artistas pop, como Lady Gaga, já lançaram versões aceleradas de suas músicas.

No fim de 2022, o streamer de futebol Casimiro se deparou com a seguinte mensagem em uma transmissão: “Estou pela primeira vez assistindo ao vivo, normalmente assisto no 2x. A voz é ‘mó’ diferente.” O influenciador reagiu: “Não faz isso, não. A vida é em 1x’”.

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A apresentadora Déia Freitas, do podcast Não Inviabilize, entrou na brincadeira, mas conta ao Estadão que se sentia ofendida quando ouvintes diziam acelerar sua voz. Comentários assim vinham pelo Instagram, onde ainda não é possível acelerar vídeos. Na maioria, eram jovens na faixa dos 20 anos.

“O contador de histórias gosta que prestem atenção nos detalhes. Ao acelerar, talvez percam algo nas pausas, que é parte do contexto da história.” Mas hoje isso não a incomoda mais. Ela própria, de 48 anos, passou a acelerar vídeos mais técnicos e maçantes, como tutoriais de montar móveis. “Paguei língua”, brinca.

'Quando você é contador de histórias, gosta que as pessoas prestem atenção nos detalhes', diz Déia Freitas, do podcast 'Não Inviabilize' Foto: Déia Freitas/Autorretrato

Pesquisadores ouvidos pelo Estadão dizem que vivemos, de fato, em velocidade sem precedentes. Segundo eles, isso está ligado à tecnologia e teve como catalisador a pandemia, quando nos isolamos e usamos as telas para comunicação.

Foi na quarentena que o gerente de consultoria tributária, Gabriel Schneider, de 32 anos, começou a ver vídeos e ouvir podcasts em velocidade superior a 1x. “Nunca achei o recurso interessante. Foi necessidade. Tinha coisa demais para fazer. Queria consumir conteúdo, saber o que acontecia, sobre cuidados, ouvir artistas. Dentro do tempo que tinha, precisei acelerar.”

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Por um lado, o ritmo veloz economiza tempo em tarefas mecânicas, dizem. Por outro, perde-se espaço de escuta e contemplação, importante para a criatividade. Para evitar adoecimento mental e que as relações fiquem superficiais, os especialistas apontam que devemos definir a hora de acelerar e a de apertar a tecla de pausa.

Esse equilíbrio é complexo. “Não é que a velocidade seja inevitável, mas a aceleração social do tempo é condição da nossa época”, afirma Michelle Prazeres, pesquisadora em comunicação, velocidade e tecnologias.

Sociólogo, antropólogo e psicanalista, Tiago Pereira Andrade cita o conceito de modernidade líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. “A ideia do líquido é o que vem, preenche todo o espaço e se esvazia rapidamente”, diz o coordenador do curso de Ciências do Consumo da ESPM.

Gabriel Schneider, de 32 anos, sentiu a necessidade de ver vídeos e ouvir podcasts acelerados na pandemia Foto: Jefferson Bernardes/Estadão

Como e por que aceleramos?

E o que veio primeiro: a aceleração da vida ou a tecnologia que permite acelerar? Não dá para dizer exatamente, mas os especialistas são unânimes em destacar que equipamentos e plataformas são o tecido da aceleração.

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Para se ter ideia, já em 2011, dois pesquisadores americanos, Martin Hilbert e Priscila López, concluíram, em artigo na revista Science, que a capacidade de comunicar, com o avanço da internet, cresceu 28% ao ano entre 1986 a 2007. Cada pessoa, em 1986, poderia enviar o equivalente informativo a duas páginas de jornal por dia. Em 2007, a taxa sobe para 360 páginas.

“O algoritmo é feito pra consumir de maneira super volátil, para ir para o próximo conteúdo”, afirma Carolina Terra, pesquisadora em comunicação digital e professora na Faculdade Cásper Líbero. O modelo de recompensas rápidas das redes, como mostrou o Estadão, tem efeitos na saúde mental e já ganhou até nome: “ansiedade algorítmica”.

Sozinha, porém, a tecnologia não explica tudo. Há ligação com a forma de encarar o trabalho. “Nossa noção de progresso e futuro também é aceleratória”, afirma Michelle, idealizadora do movimento Desacelera SP, que articula projetos sobre reduzir o ritmo da vida na cidade. “Todos querem ser hiperprodutivos: seja no marketing pessoal nas redes ou no videogame, todo mundo quer destaque”, completa Andrade.

Cérebro

Ainda faltam estudos mais robustos sobre como isso afeta o cérebro, segundo Vanessa Clarissa Marchesin, doutora em Neurociência Aplicada e professora da ESPM. Mas ela diz que pesquisas feitas no exterior já alertam para o risco de problemas, como de ansiedade e atenção.

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“Ensinamos o cérebro a perceber a realidade de modo acelerado, mas a vida não é assim”, afirma. . “Ao falar com um amigo, ele não será rápido como o computador, e isso pode provocar ansiedade”, continua. “O cérebro tende a simular a reação atencional da internet para o mundo analógico.”

Para especialistas, isso cria um risco de superficialidade: não ter mais paciência para ouvir o desabafo um amigo, o sermão da mãe ou participar discussões mais densas. “Em reuniões, quando alguém é um pouco prolixo ou demora numa explicação, bate a ansiedade”, conta Gabriel Scheneider. “Penso que se a pessoa tivesse gravado áudio, eu poderia ouvir acelerado.”

Maria Suzana Pereira, de 22 anos, começou a ver vídeos acelerados ainda no ensino médio, quando estudava para o vestibular Foto: Sergio Lima/Estadão

Maria Suzana Pereira, estudante de 22 anos, diz ser acelerada por natureza, mas acredita que a velocidade aumentou ainda mais depois que passou a consumir conteúdos acelerados. “Quem que me conhece não acha ruim quando (corto e) falo: ‘o que aconteceu no final?’. Mas na construção de relações - de amizade ou amorosas -, tenho de me policiar para não ser essa pessoa apressada.”

A recomendação dos especialistas é buscar equilíbrio: descobrir quando acelerar ou não. Para Carolina Terra, isso passa por um processo de alfabetização e letramento digitais. Isso, segundo ela, envolve desenvolver essa “consciência sobre como funcionam as plataformas”.

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