Ozempic: Demora da Anvisa em decidir sobre retenção de receita prejudica pacientes, dizem médicos

Em reunião na segunda, 17, discussão foi adiada pela segunda vez; diretor-presidente avaliou ser necessário um maior ‘aprofundamento técnico’ para propor uma decisão

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Foto do author Leon Ferrari

Na última segunda-feira, 17, o diretor-presidente substituto da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Rômison Rodrigues Mota, removeu de pauta a discussão sobre a retenção de receitas nas farmácias de medicamentos como Saxenda, Ozempic e Wegovy. A decisão foi comunicada aos demais membros da diretoria colegiada da Anvisa, composta também por Daniel Pereira e Danitza Buvinich, logo no início do encontro, quando os temas da reunião são revistos.

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A obrigatoriedade da retenção da prescrição para remédios da classe dos agonistas do receptor do peptídeo-1 semelhante ao glucagon (GLP-1), usados para tratar diabetes tipo 2 e obesidade, começou a ser debatida em novembro do ano passado. À época, Mota pediu vista e a questão foi adiada para esta segunda-feira – mas novamente o tema não avançou.

Segundo Mota, várias informações adicionais foram recebidas, sobretudo nas últimas semanas, o que, na visão dele, demonstra que o tema exige mais “aprofundamento técnico”. “Em respeito ao princípio da cautela e da responsabilidade, que este colegiado deve zelar, e para que eu possa revisar essas informações e trazer para a deliberação deste colegiado uma proposta não apenas fundamentada, mas também justa e tecnicamente exequível, informo aos diretores e aos demais que estou retirando este item de pauta”, informou.

Ele não informou quando o tema voltaria a ser discutido. O Estadão entrou em contato com a Anvisa por e-mail, questionando os prazos. Na resposta, a agência também não estipulou datas.

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Ozempic integra a classe dos agonistas do receptor do peptídeo-1 semelhante ao glucagon (GLP-1) Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Muitos médicos e entidades de classe ouvidos pela reportagem não entendem os motivos da demora da agência em tomar a decisão, e afirmam que a indefinição prejudica pacientes – especialmente os que mais precisam dessas medicações – e a sociedade como um todo. Para eles, a retenção da receita seria uma atitude bem-vinda. Já as entidades que representam as farmacêuticas se mostram contrárias à medida.

No Brasil, 11 medicamentos da classe foram aprovados para tratar diabetes tipo 2 e obesidade — sete deles já são comercializados por aqui. Eles pertencem a três farmacêuticas: Novo Nordisk, Eli Lilly e Sanofi.

Entenda o processo

Esses medicamentos têm a tarja vermelha, que, segundo a Anvisa, significa que “oferecem risco intermediário de efeitos adversos ao usuário e devem ser prescritos pelo profissional de saúde”. No entanto, não há, até agora, exigência de retenção de receita (ou seja, ela não fica em posse da farmácia após a compra).

Alguns desses remédios promovem perda de peso e, por isso, têm atraído pessoas que, mesmo sem necessidade clara, buscam e adquirem as medicações para fins de “emagrecimento cosmético”, uso não aprovado em bula. Isso popularizou os medicamentos e resultou em uma curva ascendente de vendas.

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Temendo o que chama de “abuso de medicamentos”, que define como o “uso excessivo intencional de um ou mais medicamentos sem finalidade terapêutica e sem prescrição, que pode ser persistente ou esporádico, acompanhado de efeitos físicos ou psicológicos prejudiciais”, a Gerência de Farmacovigilância (GFARM) da Anvisa solicitou à Câmara Técnica de Farmacovigilância (CTFARM), instituída em junho de 2023, a revisão da segurança dos agonistas do GLP-1.

Segundo o relator do processo, o então diretor Frederico Augusto de Abreu Fernandes, na revisão da segurança não foram identificados novos riscos. Contudo, uma coisa chamou a atenção: uma combinação entre suspeitas de efeitos adversos e uso off-label (aqui, um médico decide prescrever um medicamento para uma finalidade, dose ou faixa etária não aprovada pela agência reguladora) e, especialmente, para o uso de produto em indicação não aprovada (aqui não há necessariamente prescrição de um médico).

Conforme relatório do relator, só para semaglutida, molécula do Ozempic e do Wegovy, de 2019 a setembro de 2024, a Anvisa recebeu 524 notificações de suspeitas de eventos adversos. Dessas, 169 (32,2%) corresponderam a “uso não descrito em bula (off label)” e “uso de produto em indicação não aprovada”.

No mesmo período, diz o relatório, a base global da Organização Mundial da Saúde (OMS) recebeu um total de 52.590 de notificações de suspeitas de eventos adversos da semaglutida, de 2011 a setembro de 2024. Do total das notificações, 10,2% das notificações corresponderam a “uso não descrito em bula (off label)” e “uso de produto em indicação não aprovada”.

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Observando essa discrepância, Fernandes deu um voto favorável ao pedido feito por Flavia Neves Rocha Alves, gerente de farmacovigilância da Anvisa, e Simone de Oliveira Reis Rodero, gerente-geral de monitoramento de produtos sujeitos à vigilância sanitária.

Durante a reunião de 13 de novembro, a primeira a pautar o tema, representantes do setor farmacêutico se mostraram preocupados se o processo colocaria em dúvida o perfil de segurança dos medicamentos. Fernandes argumentou que não se discutia a segurança e eficácia dos produtos quando utilizados da forma com que foram avaliados. Entretanto, notou que foi percebido “um risco do uso sem o devido acompanhamento e indicação médica”, conforme consta na ata da reunião.

‘Negligência’

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A maioria dos especialistas ouvidos pela reportagem, alguns representantes de importantes sociedades médicas, se mostram favoráveis ao endurecimento das regras e declaram não entender a demora da Anvisa em tomar uma decisão.

“O que estamos assistindo hoje são as pessoas olhando em blogs, internet, e indo comprar essas canetas para perda de peso. E elas, muitas vezes, não têm noção de que os análogos de GLP-1 possuem algumas contraindicações, e que a dose precisa ser individualizada”, afirma Fabio Trujilho, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso). Gestantes, por exemplo, não podem usar essa classe de remédio.

“Já conhecemos muito bem esses medicamentos, seus efeitos colaterais, suas indicações, suas contraindicações e também sabemos que está existindo um uso indevido e abusivo das substâncias. E isso tem levado as pessoas a se sentirem mal, ficarem doentes ou simplesmente jogarem dinheiro fora. Acredito que a Anvisa já tenha os dados necessários para tomar essa decisão”, avalia o endocrinologista.

O endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto (FMRP-USP), concorda. “Qual é o papel primordial da Anvisa? Proteger a sociedade. Esse atraso está negligenciando essa proteção à sociedade civil, e prejudicando os pacientes.”

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Couri aponta que o principal problema é que os indivíduos que realmente têm a indicação para usar essas medicações acabam com dificuldades para adquiri-las, já que a popularização levou a uma corrida às farmácias.

Além disso, na visão dele, a falta de receita significa a ausência de acompanhamento médico. Ou seja, há uma preocupação de a pessoa vivenciar efeitos adversos, como pode ocorrer com qualquer medicamento, mas sem receber o devido cuidado.

A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) também pensa dessa forma. “Muitas vezes, as pessoas recorrem a esses medicamentos sem a devida orientação médica, o que pode acarretar em riscos à saúde, com efeitos colaterais indesejados e complicações potencialmente severas”, afirmou, em nota enviada ao Estadão.

‘Uma lei para fazer outra funcionar’

O endocrinologista Bruno Geloneze, pesquisador principal do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), avalia, por outro lado, que a retenção da receita não é necessária. “Todos esses remédios têm uma tarja vermelha, na qual está escrito ‘venda sob prescrição médica’. Isso já basta, ou já bastaria, caso a regra fosse simplesmente cumprida.” Para ele, caso aprovada, a nova medida seria como “criar uma lei para fazer outra funcionar”.

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Geloneze se preocupa com a possibilidade de a medida burocratizar e, por conta disso, prejudicar alguns pacientes com essas doenças crônicas, especialmente aqueles com diabetes tipo 2, que historicamente têm um perfil de menor adesão ao tratamento.

Os médicos favoráveis à retenção também se preocupam com essa possibilidade, mas, na visão deles, a solução reside em estipular uma validade razoável para as receitas. “Outros critérios, como tempo de validade da receita, tanto para emissão/aviamento a contar da data da prescrição, quanto para possíveis períodos de renovação (quantidade a ser prescrita) precisam ser bem estabelecidos de forma que não promovam a descontinuidade do tratamento”, defende a SBEM, em nota.

O que dizem as farmacêuticas

O Estadão entrou em contato com as farmacêuticas detentoras de todos os medicamentos que seriam impactados pela nova medida.

A dinamarquesa Novo Nordisk, detentora de Wegovy, Rybelsus, Ozempic, Saxenda e Victoza, avalia que a medida não resolverá os problemas de automedicação, uso off-label e falsificação. “Além disso, pode colocar em dúvida o perfil de segurança dos análogos de GLP-1, desestimulando pacientes que dependem deles cotidianamente com orientação médica e aumentando o estigma que existe sobre o tratamento contínuo de doenças crônicas como o diabetes e a obesidade”, disse, em nota. A empresa acredita que precisamos de mais discussões para chegar a medidas que resolvam essas questões de forma eficiente e duradoura.

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A Eli Lilly limitou-se a dizer que o Mounjaro ainda não é comercializado no Brasil e que segue as regras da Anvisa. “Não endossamos o uso off-label de nossos medicamentos e reforçamos a importância de que todo o tratamento seja acompanhado e prescrito por um médico após a avaliação do caso de cada paciente.”

A Sanofi apenas declarou que: “reafirma seu compromisso em trabalhar com todos os atores do sistema de saúde por meio do diálogo contínuo em prol de decisões que sejam baseadas em evidências científicas e no melhor benefício aos pacientes”.

Pressão da indústria?

Em meio a acusações de lobby do setor farmacêutico, Mota, diretor-presidente substituto da Anvisa, disse que recebe todos que solicitam reunião com ele.

“Não raramente saem notícias de que a Anvisa recebeu A, B ou C. Especificamente no meu gabinete, recebo todos aqueles que solicitam a reunião. Raramente solicito reunião com alguma entidade. Não há como a gente receber aqueles que não solicitam para serem recebidos”, disse.

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Os médicos ouvidos pelo Estadão apontaram que sempre foram ouvidos quando marcaram reunião. “O problema não é ser recebido, o problema é a falta de ações concretas”, aponta Trujilho, presidente da Abeso.