Diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) há três anos, Luiz Gustavo Batista, de 5 anos, vivia uma rotina intensa de tratamento com sessões de psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicomotricidade. O ritmo de desenvolvimento, no entanto, foi interrompido no início de maio, quando a operadora responsável pelo plano de saúde da família cancelou o contrato unilateralmente.
O pai da criança, Ronaldo Batista, entrou na Justiça para cobrar o direito de o filho continuar o tratamento por meio do plano e venceu, mas, até o momento, o serviço não foi retomado. Em um recurso, a empresa argumentou que a condição de Luiz Gustavo “não pode ser caracterizada como grave” e que, por ser incurável, proibir a rescisão do contrato era uma medida desproporcional, “caracterizando desequilíbrio contratual.”
“O caso do Luiz é grave, porque é uma criança que não fala. Agora, graças ao tratamento, está conseguindo se relacionar com pessoas, fazer alguma coisa na escola. Percebemos evoluções pequenas e, sem tratamento, a evolução seria zero”, afirma Ronaldo Batista. “Desde a interrupção do tratamento, a evolução dele está estagnada. O estímulo tem que ser constante, ele está na fase na qual a personalidade se modula. O nosso grande medo é que, por conta disso, ele regrida.”
O relato é um exemplo cada vez mais frequente entre famílias com pacientes autistas que utilizam planos de saúde. O número de reclamações relacionadas à assistência a autistas recebidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) explodiu no último ano. Um levantamento feito pela agência a pedido do Estadão mostra que 5 795 notificações de intermediação preliminar (NIP) foram recebidas pelo órgão até julho deste ano. O número representa seis vezes o que foi registrado em 2019, quando a ANS recebeu apenas 965 reclamações. As notificações dos primeiros sete meses de 2023 já representam quase o total registrado no ano passado, quando 5 897 queixas foram reportadas.
Confira a quantidade de reclamações recebidas pela ANS entre janeiro de 2019 a junho de 2023, considerando as palavras “autistas”, “TEA”, “autista”, “autismo”:
- 2019: 965
- 2020: 1 262
- 2021: 2 954
- 2022: 5 897
- 2023: 5 795
As reclamações são variadas e incluem desde problemas relacionados à carência até o rol de procedimentos cobertos. Neste ano, a maior parte das reclamações está relacionada a atrasos nos prazos para autorizar atendimentos (1 851) e reembolso (1 398).
No ano passado, a ANS tornou obrigatória a cobertura de qualquer método ou técnica indicado para pacientes com autismo e com transtornos globais de desenvolvimento. A agência também derrubou o limite de sessões de fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais. As regras vigentes permitem o cancelamento unilateral de planos coletivos, mas proíbem a chamada “seleção de riscos”, ou seja, quando a empresa exclui ou se nega a aceitar beneficiários por conta de suas condições de saúde.
De acordo com especialistas, tanto o caráter permanente do tratamento dos autistas quanto os custos envolvidos nessas terapias fazem com que os planos tenham resistência em fornecer os serviços a esse público.
Os custos do tratamento
Atualmente, uma das terapias mais recomendadas é o modelo de Análise do Comportamento Aplicado, ou Applied Behavior Analysis (ABA), em inglês. Essa modalidade inclui uma avaliação ampla do comportamento do paciente para identificar tanto as questões que precisam ser desenvolvidas, como a capacidade de interação, quanto aquelas que precisam ser administradas, como o hiperfoco em atividades específicas. A terapia ABA inclui um acompanhamento intensivo – e não só na clínica, mas também em casa e até na escola, com fornecimento de até 40 horas por semana. Os pais também devem ser orientados sobre como utilizar a abordagem no dia a dia em circunstâncias nas quais os terapeutas não estejam presentes. A intenção é potencializar comportamentos positivos do paciente e minimizar os indesejáveis.
“Os planos têm rescindido com autistas porque os tratamentos são caros. Além do tratamento ser multidisciplinar, a ABA é uma especialidade que tem pouca mão de obra. Uma sessão de ABA custa, em média, de R$190 a R$ 200. Há pacientes que fazem cerca de seis sessões por semana. Os planos têm obrigatoriedade de pagar, mas estão rescindindo unilateralmente e deixam as pessoas completamente desamparadas”, explica a advogada Marlla Mendes de Sousa, ex-presidente da primeira Comissão dos Direitos da Pessoa com Autismo da OAB Nacional.
Daiana Campos também teve de entrar na Justiça para garantir os direitos do filho autista. A primeira ação movida contra a operadora foi para impedir a limitação do número de sessões de terapia ABA fornecidas a Arthur, de 8 anos. O filho tinha indicação de fazer de 15 a 20 horas semanais, mas fazia apenas 7.
No mesmo processo, havia a determinação para que a empresa pagasse o tratamento diretamente para os prestadores de serviço, evitando que a família tivesse de pagar, mas a medida não foi cumprida. A família começou a ter problemas com o reembolso do tratamento, que custa, em média, R$ 7 mil por mês. Segundo Daiana, a operadora demora quase dois meses para fazer o pagamento, tempo este em que seu filho está sem terapia.
Após diversas reclamações devido à situação, ela recebeu uma carta informando que seu plano seria cancelado. Diante dessa situação, além das medidas judiciais, criou um abaixo-assinado na plataforma Change.org na tentativa de fazer o tema chegar às autoridades. Enquanto isso, a Justiça também concedeu liminar determinando que o plano retomasse os serviços da família. Após essas medidas, e com mais de 50 mil assinaturas e devido à repercussão do caso, a operadora voltou atrás no cancelamento do plano.
“Mesmo depois de ganhar a ação vou continuar com o abaixo-assinado, porque quero que se torne uma lei federal. A ANS entrou em contato dizendo que é proibido o cancelamento se as pessoas estão em tratamento de doenças ou internadas. Mas não se fala em nenhum momento de pacientes com autismo em tratamento. No caso do TEA, a terapia é contínua”, afirma. Cabe reforçar que o autismo não é considerado uma doença, e sim uma condição. Daí a luta para ter uma lei específica em relação ao transtorno.
Em maio, a Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública para tratar sobre o impasse entre as operadoras e os pacientes com autismo. O tema foi levado à Casa após centenas de relatos de cancelamentos feitos por operadoras colhidos pela Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Atualmente, tramita no legislativo federal um projeto de lei que vai alterar as regras relacionadas aos planos de saúde. Uma das propostas do relator, o deputado Duarte Júnior (PSB-MA) , é suprimir a cláusula que permite o cancelamento unilateral.
Entidades do setor, no entanto, argumentam que a medida é prevista na legislação. Em nota, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) justificou que a regra permite a rescisão unilateral em contratos coletivos e argumentou que “quando acontecem, as rescisões são comunicadas com antecedência aos beneficiários e jamais são feitas de maneira discricionária, discriminatória ou com intuito de restringir acesso de pessoas a tratamentos”.
Representantes das operadoras reclamam da falta de regulação em relação às terapias prescritas. Outra queixa é relacionada à obrigatoriedade de os planos de saúde custearem tratamentos fora do ambiente clínico. Segundo Cassio Ide Alves, superintendente médico da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), a questão não tem a ver apenas com a sustentabilidade financeira do setor. “É muito mais complexo do que isso”, diz.
“O TEA prevê três linhas de tratamento: em ambiente clínico, escolar e familiar. As crianças devem ser estimuladas em todo tempo de vigília delas. O tratamento em ambiente clínico, que as operadoras devem fornecer, tem que ter protocolos, linhas de cuidado e não devem ultrapassar 10 a 20 horas por semana. E muitas vezes está se confundindo o tratamento em ambiente clínico com o tratamento em ambiente escolar e em ambiente familiar”, afirma.
De acordo com Alves, quando isso acontece, os custos aumentam para todo mundo. “Mas, quando a gente está falando do tratamento correto, dentro de um protocolo e uma linha de cuidado adequada, o custo não importa. O importante é que a criança tenha o tratamento correto. O que a gente sente falta é de linhas de cuidado. As grandes operadoras e as médias estão tentando fazer isso, mas é uma uma iniciativa individual.”
Em entrevista ao Estadão na última quinta-feira, a diretora-executiva da FenaSaúde, Vera Valente, afirmou que “essa percepção do abuso no uso das terapias é generalizada entre as operadoras da FenaSaúde”. O argumento é de que, muitas vezes, há prestadoras de serviço que se aproveitam de pacientes autistas para obter recursos ilicitamente.
Para o conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Mário Goulart Maia, o argumento econômico das operadoras de saúde não é válido. Ele defende que, nos últimos anos, as empresas do setor têm lucrado exponencialmente. Segundo dados da ANS, o setor de planos registrou lucro líquido de R$ 968 milhões no primeiro trimestre de 2023.
“Não vejo como sustentar esse argumento de impossibilidade (de custear tratamentos para essas pessoas), de que iria quebrar os planos de saúde. Não é crime obter lucro com atividade lícita. As empresas devem obter lucro, mas têm que dar a contraprestação. É um contrato. O paciente paga, então, tem direito a receber a prestação do serviço”, raciocina.
Maia, que tem um filho autista, elaborou um manual para orientar o Poder Judiciário na promoção dos direitos das pessoas dentro do espectro. A cartilha inclui orientações para tornar o ambiente mais acolhedor a pessoas com TEA, como redução das luzes, sons e outros tipos de estímulo. O documento também indica a necessidade de flexibilizar exigências a respeito da roupa das pessoas e limitar presença nas salas onde ocorram os atendimentos. O “Manual de Atendimento a Pessoas com Transtorno do Espectro Autista” traz ainda um capítulo dedicado às normas nacionais e internacionais para atender pessoas com essa condição.
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