A jornada contra o câncer empreendida pelo promotor Marcelo Menna Barreto, 30, é marcante. Diagnosticado com um tumor pancreático avançado e metástase no fígado em agosto de 2019, ele se submeteu a sessões de quimioterapia que debelaram a proliferação de células cancerosas no órgão vizinho ao pâncreas. Nesta região, no entanto, o tumor só diminuiu de tamanho e se tornou operável graças ao uso de um dispositivo acoplado a um braço robótico: o chamado CyberKnife.
Ele se vale da emissão concentrada de fótons no local da doença de forma a preservar os tecidos saudáveis nas imediações. O tratamento foi realizado no Hospital Vila Nova Star, único do País a dispor da tecnologia. Em fevereiro de 2020, Menna Barreto passou por uma cirurgia no mesmo centro médico para extirpar o tecido acometido pelo mal.
O tratamento prosseguiu com sessões de quimioterapia na sua cidade natal, Araçatuba, no interior paulista, já com a covid-19 se propagando no País. “Ficava isolado em casa. Era do quarto para a cozinha”, recorda-se ele, que hoje mora em Umuarama, no interior paranaense – mesmo em uma situação pré-pandêmica, esses pacientes precisavam evitar aglomerações e ambientes fechados.
As sessões se encerraram em junho do ano passado, durante um dos picos da infecção do novo coronavírus no País. Nem todos os pacientes oncológicos no Brasil, no entanto, conseguiram dar andamento aos procedimentos terapêuticos ou cirúrgicos como Menna Barreto. E o pior: talvez muitos casos sigam sem terem sido ainda diagnosticados. Eis o impacto da pandemia em doentes que muitas vezes não podem esperar para receber um atendimento.
Um levantamento da Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT) mostra que seis em cada dez serviços apresentaram queda no número de tratamentos durante a pandemia. “Não houve uma redução de casos, mas no número de pacientes nesse período”, diz o rádio-oncologista Harley Francisco de Oliveira, diretor da SBRT e coordenador da Radioterapia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-Ribeirão Preto.
O trabalho contou com a participação de 126 serviços de radioterapia de 24 unidades federativas do País. Em 61,1% deles, o atendimento a pacientes despencou 20% — em 18, essa diminuição ficou acima de 50%. Somente em 15 serviços, ou 11%, não ocorreu um declínio e em 34 (27%) isso ficou abaixo de 20%. O estudo foi publicado na revista científica Advances in Radiation Oncology.
Existem três justificativas principais que explicam o quadro revelado pelo estudo. O não encaminhamento dos pacientes pelos médicos para a radioterapia, temor da pessoa e de seus familiares de realizar a rádio e redução do diagnóstico de novos casos de câncer. “Por medo, alguns pacientes resolveram postergar o tratamento”, afirma Oliveira. O levantamento, do qual o rádio-oncologista é um dos autores, levou em conta os serviços que atendem pelo Sistema Único de Saúde e pela saúde suplementar – privados.
A taxa de queda de atendimentos não teve diferença estatisticamente significativa entre o sistema público e o particular. “Os serviços de radioterapia não pararam durante a pandemia, mas as cirurgias eletivas foram adiadas em alguns períodos”, diz o especialista. Em outras palavras, o indivíduo não foi operado e não se submeteu às sessões de radioterapia. Ele cita dados sobre a aplicação de rádio em tumores de pele. Até fevereiro de 2020, eram realizados de 40 mil a 45 mil tratamentos por mês no Brasil. Com o advento da pandemia, esse número chegou a 30 mil. Houve uma retomada em setembro do ano passado, com 40 mil e queda para 35 mil em dezembro. “Mas ainda não aconteceu um retorno ao patamar de 45 mil”, diz o especialista.
O deslocamento para chegar até os centros de saúde também pode ajudar a explicar o panorama. Quando o importante é ficar em casa sempre que possível, os pacientes precisam se deslocar. Os dados mostram que no Brasil, em média, uma pessoa percorre 76 km até a radioterapia. No Estado de São Paulo, esse número cai para 33 km. Na gigante Amazônia, chega-se a 1,6 mil km em Roraima. Uma saída para evitar o périplo é o hiperfracionamento: encurta-se o número de sessões e aumenta-se a dose de radiação aplicada em cada uma. “É uma indicação para diminuir o total de dias em que a pessoa precisa ir ao serviço de radioterapia”, detalha Oliveira.
Explosão de casos
Os médicos preveem que uma bomba-relógio oncológica esteja prestes a explodir no País. “É uma tragédia anunciada”, diz o cirurgião oncológico Alexandre Ferreira Oliveira, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO), sobre o provável represamento de casos de câncer devido à pandemia. “Alguns trabalhos têm indicado uma queda de 47% nas colonoscopias (exame que identifica pólipos no intestino grosso e no reto), 46% nas mamografias e um terço nos casos de câncer, cerca de 200 mil, em comparação entre os registrados no ano passado e em 2019. “No intervalo de seis a oito meses, perde-se a chance de curar um paciente”, revela o médico.
A fala corrobora o que diz o urologista Miguel Srougi, da Rede D’Or São Luiz, em São Paulo: “A possibilidade de curar um tumor de próstata diagnosticado na fase inicial é de 80% a 90%”. Quando ele se expande para fora da glândula, essa porcentagem cai para cerca de 40%. Dados de um estudo da Sociedade Brasileira de Urologia revelam que o número de diagnósticos de câncer de rim, próstata e bexiga despencou, em média, 26% ao longo da pandemia em 2020, comparado com o de 2019.
“O maior problema foi não poder tratar de forma adequada o paciente oncológico”, diz o patologista Clóvis Klock, presidente do Conselho Consultivo da Sociedade Brasileira de Patologia (SBP).
Isso porque geralmente, antes de um procedimento para extirpar um tumor, a pessoa pode ser submetida a ràdio ou a quimioterapia. A falta de medicamentos para sedação, devido ao grande número de indivíduos intubados nas UTIs, prejudicou a realização de exames como a endoscopia, usada para averiguar a probabilidade de ocorrência de tumores gastrointestinais. No fim das contas, isso impossibilita que uma biópsia seja feita. “Perdeu-se o timing para muitos pacientes”, segundo Klock. “No Reino Unido, prevê-se o aumento de 20% na mortalidade por cânceres como de mama, intestino e pulmão devido à pandemia”, completa. “Muita gente deixou de fazer exame desde o ano passado.” Para ele, o impacto da pandemia foi igual no SUS e na rede privada. “Estamos vendo casos de câncer em estágios mais avançados.”
O oncologista Paulo Hoff, que é presidente da Oncologia D’Or, da Rede D’Or São Luiz, lembra da resposta que o SUS foi capaz de dar à covid, com a ampliação de leitos de UTI. “O modo como o Brasil se estruturou tendo o SUS e a saúde suplementar funcionou bem durante a pandemia. A saúde suplementar desafoga o SUS atendendo 25% dos pacientes e os hospitais privados ajudaram com recursos”, pondera Hoff. “Talvez devamos estudar essa lição para ver se não podemos usar tal modelo em outras áreas importantes, como a do câncer.” Diante de sintomas e sinais suspeitos, vale procurar o médico, nem que seja por meio de telemedicina.
Não houve uma redução de casos, mas no número de pacientes nesse período
Harley Francisco de Oliveira, Diretor da SBRT e coordenador da Radioterapia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-Ribeirão Preto
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.